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Entre os séculos XVI e XVIII, a leitura e a fé estiveram diretamente ligadas. Em meados do século XVI, Martinho Lutero foi responsá- vel pela primeira tradução da Bíblia (do grego para o alemão) a ter grande circulação na Europa. A partir dessa tradução, outras foram realizadas, tornando o livro sagrado mais acessível àqueles que não dominavam o latim, língua oficial do Vaticano. A devoção privada, pautada na leitura e no estudo da Bíblia, em oposição aos grandes cultos coletivos e passivos do catolicismo,41 foi extremamente valori-

41 De acordo com Castan, Lebrun e Chartier (1991), no século XVI e parte do século XVII, os fiéis do catolicismo eram espectadores passivos, que muitas vezes nem conseguiam ver o que acontecia no altar. Essa situação começa a mudar a partir da segunda metade do século XVII, quando sacerdotes católicos passam a valorizar a participação dos devotos e publicam obras que instruíam os fiéis a assistir e a celebrar as missas.

zada na reforma da Igreja Católica liderada por Lutero, e mais tarde no protestantismo. O desenvolvimento do Estado moderno, assim como o de uma religião mais individual, baseava-se na maior fami- liaridade com o escrito. O novo hábito da leitura abalou os valores antigos atrelados à palavra oral, utilizada para a declaração de direi- to e justiça, o comando, o exercício do poder e para representar a ligação com Deus. (CASTAN; LEBRUN; CHARTIER, 1991)

Embora a alfabetização e a prática de leitura tenham aumenta- do consideravelmente entre os séculos XVI e XVIII, a fronteira re- ligiosa é um fator decisivo na questão da posse do livro. Pesquisas realizadas nos inventários daquele período concluem que as cidades protestantes, mesmo pequenas, eram as que mais tinham livros em seus domicílios, em comparação com as cidades predominantemen- te católicas, incluindo Paris, por exemplo. No entanto, tal quantida- de de livros nas cidades protestantes não representava uma variação da natureza das obras. Predominavam nessas bibliotecas, além da Bíblia, livros de devoção e espiritualidade, manuais de preparação à ceia ou à confissão e coletâneas de cânticos destinados ao coral. (CHARTIER, 1991)

Apesar da supremacia dos escritos de caráter religioso, a partir do século XVII se intensificou a produção de outros gêneros lite- rários que correspondem aos relatos estudados, ou pelo menos se aproximam deles. A memória, o diário e a escrita romanesca são os três gêneros em questão, os quais, contudo, não deixam de abarcar um conteúdo religioso. (LUKÁCS, 2000)

A incumbência de se produzir memórias de viagem e a sua expansão no século XVII dialogam com o que Foucault denomi- na de vontade de saber e vontade de verdade. Segundo Foucault, essas vontades, no século XVII, a partir de um apoio institucional excludente, buscavam produzir conhecimentos verificáveis e úteis por meio da observação, da mensuração, da classificação etc. (FOU-

CAULT, 2008) Esse período, denominado por Foucault como a ida- de da representação, marca o “desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada, enfim, da natureza na ordem científica”. (FOUCAULT, 2000, p. 75)

No caso desse estudo, o apoio a tais produções – à época, consi- deradas científicas –, era realizado pelos mercadores de escraviza- dos autônomos (no caso de Barbot) ou pelas empresas de comércio, como a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais e a Compa- nhia das Índias, contratantes de Bosman e Des Marchais, respec- tivamente. Posteriormente, as editoras apoiavam a publicação dos relatos elaborados a partir das viagens.

A memória, o diário e a escrita romanesca, os quais se relacio- nam com os diferentes tipos da literatura de viagem, fazem parte do gênero épico, mais abrangente e correlativo às narrativas empí- ricas, normalmente em prosa. De acordo com Lukács (2000, p. 44), o conteúdo da épica é histórico, visto que tem como objeto a vida imanente e, como sujeito, o eu empírico. Nessa perspectiva, a partir da forma, a épica nunca poderia “superar a amplitude e a profundi- dade, a perfeição e a sensibilidade, a riqueza e a ordem da vida histo- ricamente dada”, caso contrário, se transcenderia aos gêneros lírico e dramático. Estes, por sua vez, dialogam especialmente com a utopia, o mundo inteligível, o homem como essência e os arquétipos.

A produção do gênero literário denominado memória, citado algumas vezes por Labat como suas fontes, tornou-se moda na Eu- ropa a partir do século XVI. Normalmente, quem as escrevia eram os representantes mais ilustres da elite social, como marechais, che- fes de facção e parlamentares. De acordo com Goulemot (1991), as memórias representavam um gênero aristocrático, implicitamente codificado. A sua produção estava associada a pessoas que partici- pavam da história pública e seus autores assumiam e justificavam o próprio papel de testemunhas oculares ou até mesmo de atores. Es-

ses autores escreviam, no entanto, para se valorizar como indivídu- os, já que comumente representavam apologias ou uma divulgação de ações empreendidas com sucesso. O gênero literário da memória se aproxima da produção em forma de cartas de Barbot (1688) e Bosman (1705) e se diferencia da obra de Labat (1730), baseada nas observações e ações de outros viajantes, e dos relatos do diário de Des Marchais (1726).

O diário corresponde a outro gênero, cuja produção poderia vi- sar à publicação e muitas vezes se tornou fonte de informação para o historiador e o etnólogo, como foi o caso de Des Marchais (1726). (FOISIL, 1991) Em seu diário, Des Marchais faz referência ao des- tinatário de seus escritos e, em uma nota, faz alusão a uma possível publicação ou divulgação do seu trabalho. Para Goulemot (1991), no diário haveria uma ênfase ainda maior no sujeito à custa do co- letivo. Contudo, no caso de Des Marchais, em relação a Bosman, percebe-se o oposto. Embora Des Marchais narre experiências pro- tagonizadas por ele e ações testemunhadas pelo mesmo, o viajante não se expõe tanto quanto Bosman e não descreve com muita ên- fase questões do âmbito privado, como faz este autor, por exemplo, ao tratar dos costumes do rei dentro do palácio. A posição de Des Marchais é mais neutra do que a de Bosman, e o que mais se destaca nos seus relatos pertence à esfera pública. As características da inti- midade e da subjetividade, comuns aos diários e presentes em Des Marchais, predominam, contudo, nas obras de Bosman e Labat, as quais objetivam a publicação. Possivelmente, tais características se apresentam nas referidas publicações como estratégia literária para atingir a atração do leitor e a circulação da obra.

A obra de Labat, por sua vez, se aproxima da escritura romanesca produzida no século XVII e XVIII, na qual se evocavam manuscri- tos, memórias e diários para provocar o efeito de verdade do texto. A negação do romance, por parte do autor, e a ênfase na suposta

reprodução de um diário de viagem, realizada por um não escritor, como faz Labat, passa ao leitor a ideia de se tratar de uma escrita não ficcional, confiante e legítima – aspectos comuns aos diários e às memórias. (GOULEMOT, 1991) Sob esse ponto de vista, pode-se afirmar que os quatro autores estudados, em graus distintos, lançam mão do íntimo e do privado para fundamentar a verdade dos seus respectivos relatos.

o desvelAr dA divindAde: