• Nenhum resultado encontrado

Os papéis das mulheres em Uidá constituem um tema amplo abor- dado tanto por Bosman quanto por Des Marchais e Labat. Nos rela- tos desses viajantes, aparecem descrições a respeito da participação

da mulher no trabalho, na relação com seus respectivos mari dos, na relação conjugal com o rei e, finalmente, no culto a Dangbe. O cul to da serpente é um dos principais contextos em que a temática de gênero se faz presente. O interesse principal dos viajantes sobre a participação das mulheres no culto diz respeito às mudanças sociais ocorridas a partir dos ritos de iniciação, com foco na relação conju- gal das sacerdotisas.

Tanto Bosman quanto Labat reforçam a questão da desigualdade de gênero na relação matrimonial, isto é, da submissão das mulhe- res no casamento, das punições severas às mulheres acusadas por adultério e do poder aquisitivo dos homens relacionado ao número de esposas, destinadas especialmente ao trabalho e à manutenção dos bens do marido. O assunto da poligamia, especialmente, atraía o interesse dos europeus. Como consequência, o número de esposas de cada homem é destacado por ambos. É interessante notar a di- ferença entre esses números apresentados por Bosman (1705) e La- bat (1730). Dessa vez, Bosman é quem parece cometer exageros, os quais Labat não reproduz, se mantendo fiel aos dados apresentados por Des Marchais (1726).

Segundo Bosman (1705), em Uidá os homens eram casados com 40 ou 50 mulheres, um número extremamente alto em comparação com outras localidades da Costa da Guiné, onde se costumava en- contrar oito ou dez esposas para cada homem. O número de espo- sas, de acordo com os relatos do viajante, era equivalente ao poder aquisitivo do respectivo marido. Bosman afirma que os principais capitães, por exemplo, podiam ser casados com 300 ou 400 mulhe- res, mas a depender do caso, chegavam até a mil esposas. Já o rei, no topo da escala hierárquica, tinha no seu serralho entre quatro e cin- co mil mulheres. Em relação à quantidade de esposas dos homens comuns e do rei, Labat cita números consideravelmente menores que os de Bosman. Segundo Labat, o homem comum costumava ter

entre 12 e 24 esposas, e o rei teria até duas mil. (DES MARCHAIS, 1726; LABAT, 1730, t. 2)

De acordo com Labat, era vantajoso ao homem ser casado com muitas mulheres, pois elas se ocupavam da lavoura, da semeação, da colheita e da venda e compra de produtos. Segundo Labat, como o trabalho das mulheres casadas era muito duro, muitas vezes elas escolhiam a “devassidão” e a “libertinagem”, ao sair da casa dos pais para viverem sozinhas e comerciar por conta própria. No entanto, quando desejavam se casar e se “submeter às duras leis do casamen- to”, essas mulheres, sendo capazes de ter filhos e sendo bonitas, não tinham dificuldade para encontrar um marido. (LABAT, 1730, t. 2, p. 226-227)

Segundo Bosman e Labat, o grande número de esposas não era decorrente apenas do poder aquisitivo. O rei sempre herdava as mu- lheres do seu antecessor e, no caso do homem comum, o primogê- nito herdava as mulheres do pai, com exceção de sua mãe biológica. Sobre esse assunto, Labat sugere que herdar as mulheres do pai não significava que as mesmas tornavam-se suas esposas. No entanto, de acordo com o viajante, havia a possibilidade do primogênito se casar com elas. (LABAT, 1730, t. 2) A herança e o acúmulo de mulheres, sobretudo no caso do rei, muitas vezes tinham como consequência a possibilidade da venda de esposas aos comerciantes de escraviza- dos. Os relatos de Labat apontam para a mesma direção. Segundo o viajante, a esposa era vista pelo seu marido como uma mulher escravizada, e podia ser vendida como tal. (LABAT, 1730, t. 2) Tan- to Bosman quanto Labat apontam para a representação da mulher como moeda de troca. Ambos os autores citam que nos jogos de azar, bastante recorrentes em Uidá, quando os jogadores perdiam todos os seus bens, apostavam suas mulheres e filhos. (BOSMAN, 1705; LABAT, 1730, t. 2)

Segundo Bosman, o rei costumava vender aos comerciantes de escravizados “uma vintena de esposas”, que lhe provocasse o menor desgosto, algumas vezes por um preço irrisório. Mesmo com a venda frequente de mulheres, o seu número não diminuía, já que os capi- tães do rei selecionavam regularmente as mais bonitas para lhe ofe- recer. quando o rei aprovava a escolha, ele tinha relação sexual com a nova esposa duas ou três vezes e a partir de então ela era obrigada a “passer sa vie en religieuse”. Tal expressão remete, provavelmente, ao celibato ou à abstinência sexual e ao recolhimento quase absoluto das esposas do rei perante a sociedade como um todo, em oposição à suposta vida libertina das mulheres do reino, citada também por Des Marchais (1726, p. 108). De acordo com Bosman (1705, p. 363), elas “preferiam escolher a morte a uma vida como essa”, sem poder se relacionar com nenhum homem.

Como citado no primeiro capítulo, as mulheres costumavam tra- balhar na agricultura, na produção de cerveja, no tratamento das carnes e no comércio desses dois produtos, juntamente com os ar- tefatos produzidos pelos seus respectivos maridos. Estes, segundo Bosman, trabalhavam com a forja, produziam lanças, dentre outras ferramentas, fiavam o algodão, faziam vestimentas no tear, constru- íam barcos de madeira e trabalhavam na agricultura. De acordo com o viajante, as mulheres mais bonitas trabalhavam em casa, servindo e cuidando de seu marido. Aqueles mais poderosos impediam que qualquer outro homem entrasse em suas casas enquanto estivessem na companhia de suas esposas. (BOSMAN, 1705)

De acordo com Bosman e Des Marchais, os homens de Uidá eram extremamente ciumentos, e caso houvesse alguma suspeita de adultério, a mulher, supostamente infiel, era vendida aos comercian- tes de escravizados europeus. Já o amante era morto, e, em alguns casos, toda sua família era escravizada. Com as esposas do rei, o controle era ainda mais rigoroso. Segundo Bosman, caso um ho-

mem tocasse na mulher do rei, era decapitado ou vendido como escravizado. Bosman e Des Marchais afirmam que se um homem precisasse fazer algo nas proximidades da casa do rei, ele gritava, à distância, para que as mulheres ficassem em alerta e se protegessem. De acordo com Bosman, chegava a ser proibido olhar para as “mu- lheres mais consideráveis do rei”. Caso fosse necessário entrar na casa do rei para se fazer um serviço, elas se deslocavam para outro ambiente. Normalmente, os homens eram proibidos de entrar na casa do rei e de outras “pessoas poderosas do seu reino.” (BOSMAN, 1705, p. 362; DES MARCHAIS, 1726, p. 92)65

Segundo os relatos de Bosman, Des Marchais e Labat, as jovens escapariam das relações de gênero assimétricas no casamento, des- favoráveis a elas, após se iniciarem66 no culto da serpente. Com a ini-

ciação, os três viajantes apontam para a inversão da assimetria dessa relação, a partir de então, desfavorável aos homens. Entretanto, os mesmos relatos sugerem que na esfera religiosa, as iniciadas, em al- guns casos, passariam a se submeter a outros homens – nesse caso, aos sacerdotes. (BOSMAN, 1705; DES MARCHAIS, 1726; LABAT, 1730) Embora esse tipo de suspeita fosse comum entre aqueles que pretendiam depreciar esses cultos, observa-se de fato que, na inicia- ção ao culto da serpente, a relação da devota com o vodum ao qual

65 quando Des Marchais esteve em Uidá, um homem foi visto com uma das mulheres do

rei na cidade de Savi e, como punição, ele fora executado na porta de sua casa, a mando do rei. Des Marchais também relata que se um homem tocasse, por acaso, na mulher do rei, ambos eram vendidos no mercado. Mas se houvesse a intenção de tocar, vendia-se a mulher, o homem era morto e seus bens confiscados ao rei. Segundo Labat, se alguma das mulheres do rei fosse estuprada, o criminoso era queimado vivo. (DES MARCHAIS, 1726; LABAT, 1730, t. 2)

66 Nos relatos estudados, os autores não utilizam o termo “iniciação”, mas “consagração” (consecration) ou “confinamento” (prison). A denominação para esse processo, no entanto, é algo raro e sem destaque nos referidos relatos. A ênfase, dada pelos autores, encontra-se nos resultados do processo iniciático. Etnografias de processos de iniciação aos cultos dos voduns foram escritas por Herskovits (1938) e Verger (1999), dentre outros autores.

ela é consagrada reproduz o modelo da relação marital. O deus pas- sa a ser concebido como o marido e a iniciada como a esposa (asi), daí o nome de vodunsi que ela recebe nos cultos aos voduns.

Bosman (1705) destaca o grande respeito pelo sacerdote e sacer- dotisa67 do culto da serpente entre os habitantes de Uidá. A distinção

seria tamanha que, segundo o viajante, eles não podiam ser con- denados à morte por nenhum crime.68 Labat, por sua vez, a partir

dos relatos de Des Marchais, explica que a organização do corpo sacerdotal do culto era confiada a uma grande família, cujo grande sacrificador, um dos grandes do Estado, era o chefe. Todos os outros marabus dependiam dele, recebiam suas ordens e lhe obedeciam. Segundo Labat, essa família era dividida em diversas ramificações, nas quais os homens tinham o privilégio de ser do corpo sacerdo- tal hierarquicamente superior. Os marabus, de acordo com Labat, eram identificados facilmente devido às cicatrizes, que cobriam todo o corpo, feitas quando jovens com a ponta de uma faca ou com as mesmas ferramentas utilizadas para marcar as meninas no rito de iniciação ao culto. Labat afirma que os marabus com maior po- der aquisitivo e o grande sacrificador se vestiam como os grandes e participavam do tráfico de escravizados. (DES MARCHAIS, 1726; LABAT, 1730, t. 2)

Nos relatos estudados, Bosman, Des Marchais e Labat enfatizam, especialmente, as descrições a respeito das sacerdotisas da grande serpente, as quais passariam por ritos iniciáticos, comandados pelo grande sacrificador e seus assistentes. O processo de iniciação, além do prestígio conferido às sacerdotisas e à relação conjugal das mes-

67 Nas traduções do holandês para o francês: prêtre e prêtresse; e para o inglês: priest e

priestesse.

68 Apesar disso, segundo Bosman, quando ele estava em Uidá, o rei violou essa lei com o consentimento dos grandes de seu reino. Ele mandou executar um sacerdote e seu irmão, que teriam cometido um atentado contra o reino e a sua vida. Bosman não entra em detalhes ao citar o episódio. (BOSMAN, 1705)

mas, são os assuntos tratados pelos três autores citados, como vere- mos a seguir.