• Nenhum resultado encontrado

Os viajantes Bosman e Des Marchais explicam a origem do culto da serpente no reino por meio de um mito narrado pela popula- ção local. A narrativa mítica de origem do culto, citado por Bosman (1705), Des Marchais (1726) e Labat (1730), descreve certo desloca- mento do animal cultuado, de Aladá para Uidá, por ocasião de uma batalha entre os dois reinos. Tal narrativa pode estar relacionada com a dispersão dos hulas, já que, segundo tradições recentes, Aladá corresponde a uma das localidades por onde passaram na primeira fase de migração e onde fundaram uma dinastia real. No entanto, o mito também pode estar pautado na rivalidade entre Uidá e Aladá, lembrando que sua narrativa traz à tona uma vitória em relação a Aladá, provocada pela serpente que a partir de então passa a ser cultuada.

Diferente de Bosman, Des Marchais e Labat descrevem alguns detalhes desse enfrentamento e do encontro com a serpente especial que provocara a vitória de Uidá. Um dos detalhes é a identificação do reino de origem da serpente: Aladá. (DES MARCHAIS, 1726; LABAT, 1730, t. 2) O elemento em comum entre as narrativas apre- sentadas por Bosman (1705), Des Marchais (1726) e Labat (1730) é a serpente como representação de uma divindade estrangeira, mi- grante de outro povo, o qual se contrastava com o de Uidá.

Bosman (1705) narra o mito de origem do culto da serpente em Uidá de maneira breve, sem citar os detalhes expostos por Des Marchais (1726) e Labat (1730), e expõe basicamente a noção da serpente como uma divindade estrangeira, cujas práticas religiosas iniciaram-se a partir de um deslocamento. A respeito da divindade e da origem do culto, Bosman (1705, p. 396) afirma:

Ela já deve ser velha, pois eles dizem que a encontraram há muitos anos, e que, por causa da malevolência dos homens, ela saiu de um outro país e veio a eles, o que lhes havia dado alegria; de maneira que eles receberam esse novo Deus com muitas marcas de respeito e de estima e o levaram em um tapete de seda a essa casa, onde ela ainda vive [...].

Ainda a respeito do deslocamento da divindade, Bosman faz o que ele próprio denomina de conjecturas e afirma em tom irônico: “Essa serpente talvez tenha as mesmas fantasias que tinham antiga- mente as Divindades dos Pagãos, que às vezes, como para mudar de ar, passavam de um povo para outro, de maneira que eram obriga- dos a prendê-las para transportá-las.” (BOSMAN, 1705, p. 397)

O tema da oposição entre Uidá e o reino de onde teria vindo a serpente é destacado principalmente por Des Marchais (1726). O diá rio do viajante apresenta a peculiaridade de retratar, como testemu nha ocular, o momento do coroamento de um novo rei de Uidá que, por sua vez, trazia à tona a rivalidade com o reino de Ala- dá. Esse conteúdo não é encontrado nos relatos dos outros viajantes. A respeito do coroamento do rei de Uidá, Des Marchais conta que interrogou aos grandes quanto à razão para que o rei fosse “obri- gado a restabelecer a porta principal da cidade de Ardra”, naquela ocasião. Essa pergunta é a chave para o assunto que se desenvolve na sequência: a guerra entre Uidá e Aladá e a origem do culto da serpente no reino de Uidá. Os informantes responderam a Des Mar-

chais que o reino de Uidá havia pertencido ao rei de Aladá e que a população de Uidá e os grandes, ao se oporem às injustiças provoca- das pelo rei de Aladá, guerrearam contra ele. Essa guerra resultou na nomeação de um rei para Uidá e na liberação da obediência ao rei de Aladá. No entanto, para marcar que Uidá continuava dependendo de Aladá desde essa guerra, seus reis obrigaram a população de Uidá a restabelecer a porta principal da cidade de Aladá como uma forma de tributo. (DES MARCHAIS, 1726) A reconstituição da referida porta marca uma espécie de dívida de Uidá com o reino de Aladá, confrontado e vencido pelo primeiro. Reconstruir a porta de Ala- dá, provavelmente sagrada, a cada coroamento de um novo rei de Uidá representaria uma sujeição simbólica e religiosa como forma de compensação ou pacto social com o povo vencido.54 (AMSELLE;

M'BOKOLO, 1985)

Embora Labat não reescreva os relatos de Des Marchais perti- nentes ao processo de independência e sujeição de Uidá em rela- ção a Aladá, os dois autores abordam a origem do culto da serpente como uma consequência da rivalidade entre os dois reinos. De acor- do com os manuscritos de Des Marchais, os grandes relataram que, em uma das guerras contra Aladá, uma grande serpente atravessou até o lado do exército de Uidá e foi a responsável pela vitória deste:

Eu perguntei a eles por que todos tinham respeito pela ser- pente. Sobre o assunto eles me responderam que no tempo das guerras contra o país de Ardra, quando eles estavam prontos para o combate, uma grande serpente veio se insta- lar ao lado deles sem fazer mal a ninguém. O grande sacri-

54 No século XIX, a porta fortificada e consagrada de Ketu foi levada como um troféu a Abomé durante uma das invasões do reino de Daomé. Os antigos de Ketu contam que a porta, ao chegar a Abomé, ergueu-se por uma mão invisível, devido à irritação do espírito que a acompanhava. Para pacificá-lo e finalmente fixar a porta no solo, o rei Glele foi aconselhado pelos adivinhos a aspergir sobre ela sangue de um boi sacrificado, realizado com sucesso. (DUNGLAS, 2008)

ficador pegou a serpente com as mãos para que os de Uidá a vissem e eles se abaixaram diante da mesma. Em seguida, atacaram os inimigos, os venceram e concederam o triunfo a essa pretendida protetora. Construíram-lhe um templo onde, a partir de então e até o presente, ela é adorada. (DES MARCHAIS, 1726, p. 48)

A explicação sucinta e direta de Des Marchais ganha, na obra de Labat, uma versão mais elaborada e emotiva, a partir do acréscimo de adjetivos e de um prolongamento da narrativa:

A população de Uidá estava pronta para guerrear com a de Ardra, quando uma grande Serpente saiu do exército inimi- go e veio se entregar ao de Uidá. Mas ela parecia tão doce que longe de morder, como os outros animais de sua espécie, ela afagou e acariciou todo mundo; o grande Sacrificador arriscou pegá-la e levantá-la ao alto para que ela visse todo o exército, que espantado com esse prodígio, se prosternou diante desse animal manso e seguiu contra os inimigos com tanta coragem, que se livraram deles arrasando-os. Eles não deixaram de atribuir sua vitória a essa Serpente. Eles a le- varam com respeito, lhe construíram uma casa, lhe levaram comida, e em pouco tempo esse novo Deus eclipsou todos os outros, mesmo os Fetiches que eram os primeiros e mais antigos Deuses do país. (LABAT, 1730, t. 2, p. 165-166)

Labat parece romantizar as memórias de Des Marchais ao es- tender as descrições e apresentá-las com um caráter mais emotivo. Ainda no relato sobre a origem do culto a Dangbe, pode-se ilustrar esse mesmo tipo de adaptação. Sobre a relação entre a serpente res- ponsável pela vitória de Uidá com a serpente cultuada até o momen- to da produção do manuscrito, Des Marchais afirma: “O que há de particular é que eles dizem que é a mesma [serpente da guerra com Aladá] que vive hoje [...]” (DES MARCHAIS, 1726, p. 48) Labat, a partir desta frase, escreve:

O que há de particular é que os Negros mais razoáveis di zem muito seriamente que a Serpente que eles reverenciam hoje é realmente a mesma que veio encontrar seus ancestrais, e que lhes fez conquistar essa vitória célebre que os livrou da opressão do Rei de Ardra. (LABAT, 1730, t. 2, p. 167)

Bosman (1705) também cita que a serpente cultuada era a mes- ma que dera origem ao culto. Esse fato, na opinião do viajante, ex- plicaria as ricas oferendas à divindade.

Tais narrativas estão diretamente relacionadas com a memória e identidade coletiva da população de Uidá. De acordo com Gual (2006), mediante a rememoração de episódios relevantes para deter- minado grupo social e a evocação de proezas heroicas e divinas re- lacionadas a tais eventos, a narração mítica explica por que as coisas são de determinada maneira e situa as causas de processos originais em um tempo primordial. A batalha entre Uidá e Aladá mencionada na narrativa mítica de origem do culto da serpente, de acordo com os relatos citados, provavelmente diz respeito à disputa que marcou a independência de Uidá em relação a Aladá na década de 1660. (ZAMORA, 1675)

É possível identificar no culto a Dangbe e nas narrativas míticas a respeito de sua origem uma relação direta com um lugar determina- do e uma população específica, que evitou a dominação de um reino poderoso, o qual era seu principal inimigo. Vale destacar que Aladá tinha uma intensa participação no comércio transatlântico desde o século XVI e exercia uma forte coerção sobre outros reinos. As re- lações de força e poder assimétricas entre Aladá e Uidá sinalizam que a batalha bem-sucedida contra o primeiro foi considerada uma proeza heróica e divina. O culto a Dangbe como principal prática religiosa a partir de então reforça o poder monárquico de Uidá, que possuía um papel fundamental na realização de grandes cerimônias à divindade e na continuidade do culto. Essa relação retroalimenta-

da entre as esferas religiosa e política torna-se fundamental para o fortalecimento do poder estatal e da coerção social. (PARÉS, 2006b)

A narrativa mítica referente à origem do culto, embasada na di- vergência, enfrentamento e vitória de Uidá contra Aladá, remete a uma identidade e pertencimento nacionais pautados em condições e processos políticos e históricos. (BARTH, 1969) O mito reforça e perpetua as diferenças políticas entre os dois reinos, assim como a imagem de Uidá como um reino forte e coeso, capaz de vencer seu principal inimigo. A serpente em Uidá seria uma divindade “de toda a nação” (LABAT, 1730, t. 2), um verdadeiro símbolo do reino de Uidá, e a origem do culto coincidiria com a independência em rela- ção a Aladá e com o surgimento do reino de Uidá.