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Aos meus olhos: o evento e seus sentidos

2 PARA COMPREENDER O CAMINHO DE TELLUS: argila, ser humano, performance e

2.5.1 Paso Doble: Miquel Barceló, Josef Nadj e a argila

2.5.1.1 Aos meus olhos: o evento e seus sentidos

Figura 6 – Paso Doble – Tomada geral, vista frontal

Fonte: MallorcaWeb. Disponível em: <http://www.mallorcaweb.com/noticias/2007/02/paso-doble-barcelo- nadja/>

Inerte, úmido, rico em elementos inorgânicos e fértil em organicidade e microvidas. Cobrindo, em escala humana, chão e parede frontal de maciez terrosa laranja pôr de sol, um espaço se faz cena. Nosso olhar é capturado por seu enigma, sua beleza e simplicidade naturais.

Como tábula rasa, ou folha de papel a espera do gesto gráfico criador, a cena feita de argila aguarda devires...

A luz incide no espaço e contribui para o suspense que provoca um vazio a ser preenchido.

O silêncio inicial é quebrado pelo ritmo de uma pulsação de terra que, reagindo a pancadas anônimas, avoluma-se, de trás para frente, e se abre em fendas.

A aceleração ritmada do som é concomitante ao surgimento de uma superfície enriquecida pela formação de inúmeras pequenas e médias protuberâncias, convexidades e perfurações, lembrando-nos a crosta terrestre, sua formação e transformação geológica.

No princípio era terra e som, forma e cor.

Somente após a argila expressar desempenhos geológicos, a figura humana se faz presente explicitamente.

Entram em cena, pela lateral, vindos do fundo do espaço, lugar onde a vista não pode alcançar, dois homens de aparência urbana, trajados com ternos negros e sapatos de igual cor, engraxados e lustrosos. Embora se apresentem como signos de urbanicidade, carregam consigo espécie de foices, ferramentas de corte que os auxiliam a ferir a terra, abrir sulcos, levantar camadas, cavar e construir buraco para guardar água. Sobre o chão de argila iniciam movimentos agressivos contra o entorno de barro.

Figura 7 – Paso Doble – Tomada geral, vista frontal

Fonte: MallorcaWeb. Disponível em: <http://www.mallorcaweb.com/noticias/2007/02/paso-doble- barcelo-nadja/>

Os dois homens esmurram a matéria dócil, escalam seus planos verticais, arranham e perfuram sua parede e seu solo, chutam-na, cortam-na, rodopiam cotovelos e joelhos deixando suas marcas, forma e contra-forma de diversas partes de seu corpo, sua luta impressa, registros de sua ação, de seu desejo de transformar o real marcando, por força, a maciez do espaço, desenhando, construindo, destruindo e reconstruindo sob a resposta da matéria que recebe e devolve-lhes, através de sua fala própria, formas e texturas sempre passíveis de transformações contundentes. No palco surgem aberturas verticais e horizontais que indicam haver ali espaços onde não se penetra com o olhar.

Os artistas decidem o que permanece e o que deve ser sobreposto por outra ação modeladora, mas o barro não aceita seus ditames sem mostrar-se em seus limites. Em suas manifestações próprias de matéria modelável, mostra suas entranhas e docilmente apresenta possibilidades para aquilo que deve ser modificado, mantido e\ou substituído.

Posteriormente, a argila plástica aparece em forma de potes, úmidos e ainda modeláveis. Esses objetos, signos da cultura, são trazidos à cena para protagonizarem um duelo de resistência, um esforço corpo a corpo que implica em quem se dobra e como se dobra. Os homens sentados sobre os potes fazem-nos perceber o peso de seus corpos e suas capacidades de autocontrole e domínio sobre si mesmos e sobre a matéria com quem contracenam. A argila os recebe, mas não sem expressar seus limites como corpo suporte.

Figura 8 – Paso Doble – Tomada geral, vista frontal

Fonte: MallorcaWeb. Disponível em: <http://www.mallorcaweb.com/noticias/2007/02/paso-doble- barcelo-nadja/>

Num segundo momento, o pote de argila crua é utilizado e modificado, um após o outro, quando arremessado pelos performers contra seus próprios rostos, e em seguida modelados com gestos rápidos e transformados em máscaras, monstruosas formas que encobrem a face de carne, dando vazão às possibilidades formais da matéria e à imaginação humana. Retiradas de sobre suas faces os dois atuantes\artistas atiram-nas contra a parede que se configura como um mural mutante em sua aparência e cores que se sobrepõem. Gestos do fazer artístico de modelar e pintar se mesclam e se diluem aos gestos de luta e relações corpo a corpo.

A repetição, uma das características mais marcantes das performances, também em Paso Doble apresenta-se como elemento constitutivo da cena, da mesma maneira que é presente de forma incontestável e imprescindível no ato de criação de uma obra plástica que se faz com barro. Neste momento o que ocorre? Uma expressão cênica? Uma obra plástica? Provavelmente ambas. Uma se constrói do gesto da outra.

O embate com a matéria resulta numa visualidade plástica que compõe a cena de formas, cores e sonoridades próprias da criação de uma obra de arte feita com barro, corpos em ação e reação, homens e argila expondo-se em suas possibilidades corpóreas de movimentos, resistência e transformação.

Figura 9 – Paso Doble – Vista frontal

Fonte: MallorcaWeb. Disponível em: <http://www.mallorcaweb.com/noticias/2007/02/paso-doble- barcelo-nadja/>

Na sequência, um dos atuantes constrói com as formas utilitárias e movimentos bruscos, largos e definidores, sobre suas próprias cabeças e a do outro, encobrindo-a, novas figuras, uma sobre a outra, possibilidades múltiplas da matéria/forma se sobrepondo. Seu peso

e sua densidade vão tomando conta do corpo humano que procura resistir àquela espécie de massacre até não mais suportar e então, subjugado pela força da ação performática do colega atuante somada ao peso da terra, ele cai. A forma ofegante, meio humana, meio coisa, se acopla ao quadro, quase se misturando à parede de terra, respira com ela e, finalmente após receber um golpe que nos remete ao gesto do toureiro, desvencilha-se da carga pesada da argila, levanta-se e penetra de cabeça a parede, pintura escultórica, como que processando passagem ou voltando para a terra mítica de origem, um misto de nascer e morrer.

Figura 10 – Paso Doble – Vista frontal

Fonte: MallorcaWeb. Disponível em: <http://www.mallorcaweb.com/noticias/2007/02/paso-doble- barcelo-nadja/>

Ambos mergulham no quadro através das perfurações existentes no painel, e assim retornam através da terra ao espaço que não podemos desvelar.

Figura 11 – Paso Doble – Vista frontal

Fonte: MallorcaWeb. Disponível em: <http://www.mallorcaweb.com/noticias/2007/02/paso-doble-barcelo- nadja/>

E o espaço de argila modificado retorna à sua solidão inicial.

Paso Doble ocupa uma espécie de terreno fronteiriço. A obra se processa a partir do relacionamento entre os atuantes, suas dimensões humanas, físicas, psicológicas e filosóficas e o comportamento da matéria terrosa, caracterizando assim um topos próprio da expressão cênica construída pela performatividade do fazer com barro. Por ocupar esse lugar que transcende as características espaciais, físicas e tridimensionais, conceitualmente, pode ser definido como performance. É obra construída no limiar das artes cênicas com as artes plásticas e por isso sua linguagem é híbrida de características, desta enquanto origem e daquela enquanto finalidade, pois Paso Doble é o acontecimento do processo de construção física de uma obra plástica que se mostra, portanto que visa uma audiência presencial como cúmplice de seu acontecimento e se estrutura sob a base do tripé característico do teatro.

De acordo com a definição de performance de Schechner (2006)88, Barceló e Nadj são seres que, sendo no sentido do existir, realizam ações geradoras de uma obra plástica – fazer – e mostram esse processo do fazer a um público. Portanto, colocam sua excelência num show. Segundo Cohen (2007, p.102), o performer é apenas uma parte do espetáculo e em Paso Doble a presença veemente da argila endossa essa afirmação.

O barro em Paso Doble não poderia ser considerado também um elemento “vivo” da cena em questão? No ato do acontecimento, a argila, que é material formante, isto é, que se ajuda a formar, também se comporta, no sentido de reagir de determinada forma à estimulação. Portanto, entendemos aqui que não só o ator está vivo na apresentação. Aí se pode presenciar a matéria orgânica a qual, miticamente, originou o ser humano, expressando-se e devolvendo a dramaticidade que lhe impõem os performers. Afinal, sua ação, embora se faça na reação ao contato com o corpo do artista, também imprime nele uma resposta à sua ação anterior. A massa inerte vivifica-se nesse encontro. A fala da matéria promove um diálogo com os elementos humanos e, consequentemente, atua também como construtora do texto paisagístico. Considerando que, se numa obra visual matéria e artista, juntos, desenvolvem o processo e constroem o resultado, presencialmente, em Paso Doble, assiste-se a duas qualidades de atuação. São dois os tipos de manifestações que, juntos e de forma inter-relacional, determinam os movimentos, as transformações, os encaminhamentos do processo cênico e plástico que geram o transporte de signos que se resignificam em nossas retinas e reverberam em nossas compreensões existenciais. Nessa inter-relação de intercorporeidades e formatividade, assistimos à conciliação

88 Lembrando que a performance, segundo Schechner (2006), conjuga três elementos: ser, fazer e mostrar

de desenvolvimento espontâneo e direção consciente, desenvolvimento homogêneo e múltiplas possibilidades, crescimento e amadurecimento versus construção e composição, num processo no qual os artistas colocam-se no ponto de vista da obra que estão realizando, como esclarece Pareyson (1993) à respeito do processo criativo. Assim sendo, é possível enxergar o protagonismo da argila que em Paso Doble contracena com a ação dos corpos que se lançam ao corpo de barro, assumindo a mesma importância no desenrolar do destino da obra. A argila aqui é corpo cênico, é máscara, é prótese, é expressão humana encarnada em barro.

Paso Doble não é exatamente um trabalho formalizado, ensaiado com rigor, pois embora tenha marcações não há como prescindir da espontaneidade no ato de sua construção, portanto aqui o acaso participa na feitura da obra e na vivência da performance, mas não como um acidente puro, pois como afirma Merleau-Ponty (1971, p.17), eles “não existem na existência, nem na coexistência, posto que uma e outra assimilam os acasos para deles fazer sua explicação”. Paso Doble é também obra ritualística (e ao mesmo tempo estética) por constituir-se pela repetição de gestos próprios do fazer cerâmico, assim como pela utilização de gestos rituais de domínio cultural como os usados nas touradas. O corpo em ação é também corpo cultural e, junto à matéria terrosa, constrói um processo artístico, pleno de efemeridades, rico de sentidos relacionados à característica do ser humano de estar sempre diante do limiar do mundo e de si mesmo. O corpo da sensorialidade no contato com a matéria que transforma, provoca modificações em si mesmo e reflete também a interioridade ao nos remeter a questões existenciais.

Comparo o processo de Paso Doble às touradas, com a diferença que neste trabalho artístico o ser humano não está exposto ao perigo de ser morto por seu parceiro de obra. Mas terra e performer, identificados, são golpeados, dominados, subjugados, para então resultar na imagem que vemos. A presença de ambos pode ser comparada ao papel do touro, pois embora nos dois casos suas manifestações sejam imprescindíveis para o acontecimento e tenham um comportamento muito próprio e de franca presença, são dominados por uma figura humana mais agressiva, por sua brutalidade e inventividade.

Como na performance arte a intenção principal é a expressão, Paso Doble vai buscar a teatralidade que pode haver na criação de uma obra plástica gerada pela combinação de elementos humanos em ação e argila em resposta, tendo o público como cúmplice por ser testemunha do acontecido. A teatralidade que se instaura em seu espaço/tempo é então resultado da ação intencionada dos artistas que manifestam, com a força de suas presenças, uma rica expressão e movimentação corporal, o drama de seus corpos vivendo a exaustão, a encenação de atos culturais e a utilização de máscaras modeladas no momento e sobre seus rostos, além da potência de suas ações sobre uma matéria mutante, que também se prontifica a ser outro e que, portanto, possui em

si, da mesma forma, uma condição bastante favorável à teatralidade. Nesse caso a própria argila é capaz de deflagrar uma teatralidade pela sua capacidade de se transformar e/ou representar algo que verdadeiramente não é. A argila guarda a memória e os rastros do encontro e do embate com os seres humanos e na apresentação efêmera de suas tantas possibilidades expressivas, formais, pictóricas, cênicas expressa sua potência para criar formas e texturas que finalizam signos. Paso Doble é repleto de dramaticidade, proporciona um estado de suspense, um tocante interesse que nos liga aos atos e às reações do trio performático.

Barceló coloca em cena suas habilidades de escultor e ceramista, enquanto Josef Nadj usa de sua vivência como dançarino e coreógrafo; desta maneira, relacionam-se com a argila de forma particular, seus corpos biológicos e culturais enfatizam condições muito diferentes de apresentação cênica. É notório o maior domínio de corpo que Nadj, como coreógrafo, possui durante sua apresentação, enquanto fica evidente a intimidade revelada por Barceló com o fazer artístico plástico. Paralelamente, a terra recebe suas declarações, indica caminhos a seguir e ajuda-os na construção do texto plástico cênico. Do diálogo dos três protagonistas ficam os registros impressos na cena telúrica.

O espaço da performance é definido pelo chão e pela parede de argila, que remetem ao palco italiano. Sua materialidade é feita de sons e ritmos do trabalho de fomar o mural e do choque entre os corpos, assim como das cores e texturas dos três corpos que se entrelaçam mutuamente. Homens e argila perfazem a carne do mundo que se dá para o entrecruzamento dos olhos da audiência.

Embora não havendo representação, no sentido estrito da palavra, nesse espaço tempo cênico os três elementos são signos que oscilam entre a presentificação e a representação de algo que, diversamente, se realizará na recepção do público. Portanto, em Paso Doble, a cena não é exclusivamente dos atuantes e não há hierarquia de valores entre os elementos humanos e a argila. O trio constrói uma obra que é, também, um teatro de imagens, pautado na repetição de ações performativas, comportamentos restaurados atuando sob o olhar da audiência. Ao colocarem seus corpos no barro, os artistas tornam-se, pouco a pouco, corpos de barro. E como diz Fischer-Lichte (2008, p.18) ao analisar Lips of Thomas, performance de Marina Abramovic, nesse processo a materialidade de suas ações prepondera sobre seus atributos semióticos. E se ao longo do curso desse conjunto de fenômenos, a matéria se transforma, também ela atua como instigadora da transformação dos seres ali implicados. Juntos desenvolvem um teatro de imagens que concretiza um grande objeto poético, em cujo processo a experiência vivenciada por performers e audiência é mais forte do que aquilo que vai significar e denotar além do conotado.

Para finalizar a reflexão deixo claro que somente conheci a performance por meio do vídeo, registro que compreendo documental já que revela um processo ocorrido diante da presença de uma audiência primária e, ao mesmo tempo, teatral, pois há nessa linguagem os recursos da edição que

seleciona, exclui e incorpora elementos e, portanto, não garante que o que é visto necessariamente corresponda ao fato ocorrido na íntegra. Além do que, não fica claro, por exemplo, se a música era uma das materialidades da performance ou se apenas faz parte da linguagem do vídeo.

No entanto, o registro de Paso Doble, no meu entender, revela com clareza a obra cênica e performática que é, na qual seus integrantes apresentam o processo de uma obra plástica onde a argila expressa toda a dramaticidade da relação entre homens e matéria, entre homem e homem, revelando o drama humano da conquista, dominação e submissão de uns por outros, levando-nos a refletir sobre a história da própria humanidade que em sua relação com a argila deixa o rastro de seu corpo e de seu espírito, nela e com ela, registrados.

Todo o processo nos mostra que são muitos os caminhos possíveis de uma obra plástica ou de uma performance, neste caso delimitação que se dilui. Performance e obra plástica constituem-se, ao mesmo tempo, em um só território de ação e expressão, onde homem e barro se apresentam e em parceria formam uma obra, cujo processo emana teatralidade.