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Registros e prolongamentos da performance

2 PARA COMPREENDER O CAMINHO DE TELLUS: argila, ser humano, performance e

2.3 PERFORMANCE, PERFORMER E REGISTROS

2.3.3 Registros e prolongamentos da performance

Como os meus experimentos e as performances dos artistas que referencio se complementam com registros – fotografia e vídeo – e são não somente veiculados por eles, como também, por meio deles, permitem a realização da minha própria observação dos eventos como audiência secundária e como pesquisadora, encontrei lume em Philip Auslander

(2006). O autor classifica e define, em duas categorias – documental e teatral –, os elementos de registros69 da performance e, depois, conclui que a diferença entre elas é ideológica.

A modalidade documental refere-se ao tradicional caminho no qual a relação entre a performance arte e sua documentação são concebidas, implicando que esses registros são uma prova efetiva de que a performance ocorreu e de que há, através deles, a possibilidade de sua reprodução.

Embora seja essa uma relação considerada ontológica, com o acontecimento da performancesendo anterior e endossando a documentação, em seu texto “The performativity of performance documentation”, Auslander (2006) discute o sentido ideológico dessa ligação, que segue a ideologia da própria fotografia documental, compreendida como meio de acessar a realidade. Para esse autor (2006, p. 2), a ideia de que a fotografia registra o real da performance está relacionada à própria ideologia dessa mídia, que cria a ilusão de que há correspondência exata entre o significante e o significado. O sentido ontológico da fotografia permite que ela seja tratada como substituto de uma parte do mundo real, isto é, como, primariamente, uma lembrança sua.

Prosseguindo em suas reflexões, o autor diz que a fotografia em preto e branco aumenta o seu efeito de realidade. A foto, neste caso, é encarada como uma mera utilidade, na visão de Jon Erickson, citado por Auslander (2006, p. 2). Nessa categoria, tradicionalmente, a performance em si possuiria uma audiência primária que a vivencia diretamente no ato de seu acontecimento, tendo sido aquilo que foi presenciado fenomenologicamente o que está sendo retratado. A fotografia aqui funcionaria como elemento suplementar da performance. Por outro lado, há estudiosos do assunto, como Amelia Jones (citada por AUSLANDER, 2006, p. 2), que discutem a prioridade ontológica da performance ao vivo, esta dizendo que a fotografia a desafia. Nesse sentido, enfatiza a interdependência da performance com seu registro, este que, se por um lado a confirma, por outro a tem como “[...] âncora ontológica de sua indicialidade [...] (tradução nossa)” 70. Por conseguinte, o que a autora analisa é a existência de uma mútua complementaridade entre a performance ou a body art e a sua documentação fotográfica. Desta maneira, ela questiona o status da performance e afirma que esta só é originária na medida em que possui a fotografia que a documentou. Também

69 Importante abordar os tipos de registros elencados por Auslander (2006), também porque alguns dos

experimentos desta tese foram realizados na ausência de uma audiência primária e, portanto, foram enquadrados para gerarem a documentação, possibilitando que a performance existisse para uma audiência ainda que secundária.

reafirma o status da fotografia como ponto de acesso à realidade, já que em seu trabalho de escrever sobre performances declara jamais tê-las visto ao vivo.

Já na modalidade de registro teatral, Auslander (2006) esclarece que as performances são encenadas apenas para serem fotografadas ou filmadas e não são apresentadas diretamente ao público. A inexistência de uma audiência primária no ato do acontecimento da performance implica que, como evento autônomo, ela não possuiu uma existência significativa antes da fruição de um público. São comumente chamadas de fotografias performadas. Segundo ele, neste caso, o espaço do documento (quer seja visual ou audiovisual) torna-se, assim, o único espaço no qual a performance ocorre e esse registro é que fará vínculo com uma audiência secundária.

Muitas vezes, inclusive, a imagem que vemos pode estar registrando algo que de fato não ocorreu como se mostra na foto. O exemplo desse tipo de evento, citado por Auslander (2006. P. 2), é a performance de The Leap, de Yves Klein, que salta pela janela do segundo andar de um prédio para uma rede protetora que não aparece na fotografia. Portanto, o salto no vazio que se vê no registro é uma espécie de fotomontagem ocorrida no laboratório de revelação e não algo que tenha, realmente, acontecido – tipo de trabalho criado para uma audiência posterior que o verá depois e no qual a fotografia substitui a realidade que ela documenta.

São considerados, também, registros teatrais ou fotografias performadas os casos como o de Duchamp ao se fotografar como Rose Sélavy; as fotografias de si mesma de Cindy Sherman, em vários aspectos; e, da mesma forma, o filme Cremaster, de Matthew Barney, entre outros. Nestes casos, os eventos são encenados para comporem uma imagem que passa a ser o verdadeiro objeto de arte que circulará para o público.

Portanto, a relação entre a performance e sua documentação nem sempre diz respeito a circunstâncias reais em que elas foram documentadas, implicando que a diferença entre as duas modalidades pode ser considerada ideológica e somente numa perspectiva tradicional elas são exclusivas. Assim, ao afirmar que não há tanta diferença entre essas duas categorias, Auslander quer referir-se ao fato de que em qualquer circunstância o performer encena para uma câmera, e posa para uma audiência, seja ela primária ou secundária. A performance, assim, é sempre matéria-prima para documentação.

Esclarece-nos Auslander (2006, p. 9) que não são nem o tipo de audiência nem tampouco a veracidade dos fatos que geram a imagem documento que vai definir como performance arte a obra de um artista, mas sim é o ato performativo de enquadrar algo como performance e documentá-lo que vai garantir-lhe seu status de performance arte. Os registros,

sejam eles a documentação de um fato ou a criação de uma imagem, são representações, às vezes, meticulosamente construídas daquilo que foi enquadrado como performance pelo ato performativo que realizou a documentação. Para esse autor, é somente através da documentação que uma performance existe como tal.

Para o caso do uso de vídeos que registram uma performance e novamente são apresentados em outra performance, Schechner (2006) afirma que esse material, ao ser mostrado, estabelece outra relação entre seu conteúdo em exibição e sua audiência, e o que está entre aquilo que é mostrado e a recepção de quem está assistindo é que inaugura outra performance, o que a estende para além de seu primeiro ato.

Os registros ao serem mostrados criam espaços novos de performação, são agenciamentos da performance e se estabelecem como mediações, que por seu intermédio possibilitam o seu prolongamento. Sendo assim, o performer e os registros estão intimamente ligados, pois um é extensão do outro e pode-se dizer que estas mediações, de acordo com Melim (2007, p. 109), “[...] estão mais próximos a uma prótese integrada ao corpo da obra ampliando sua existência e suas possibilidades”.