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TELLUS: PERFORMANCE E TEATRALIDADE COM A ARGILA E A CERÂMICA

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Academic year: 2019

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MARIA BETÂNIA SILVEIRA

TELLUS: PERFORMANCE E TEATRALIDADE COM A ARGILA E A CERÂMICA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito à obtenção do grau de Doutora em Teatro, área de concentração Teorias e Práticas Teatrais, na Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.

Orientador: Milton de Andrade Leal Jr.

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Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC S587t Silveira, Maria Betânia

Tellus: performance e teatralidade com a argila e S587t Silveira, Maria Betânia

Tellus: performance e teatralidade com a argila e a cerâmica / Maria Betânia Silveira. – 2014.

291 p. : il. color ; 21 cm

Orientador: Prof. Dr.Milton de Andrade Leal Jr. Bibliografia: p. 276-289

Contém 1 DVD

Tese (doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2014.

1. Performance. 2. Teatralidade. 3. Argila. 4. Cerâmica. I. Leal Jr., Milton de Andrade. II.

Universidade do Estado de Santa Catarina. III. Título.

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MARIA BETÂNIA SILVEIRA

TELLUS: PERFORMANCE E TEATRALIDADE COM A ARGILA E A CERÂMICA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina à obtenção do grau de Doutora em Teatro, área de concentração Teorias e Práticas Teatrais, na Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.

Banca Examinadora

Orientador: _______________________________________________________________ (Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Jr. )

UDESC

Presidente da mesa: ________________________________________________________ (Prof. Dr. Valmor Beltrame)

UDESC

Membro:_________________________________________________________________ (Profª. Drª. Anita Prado Koneski)

UDESC

Membro:_________________________________________________________________ (Profª. Drª. Alai Garcia Diniz)

UFSC

Membro:_________________________________________________________________ (Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro)

UDESC

Membro:_________________________________________________________________ (Prof. Dr. Jardel Sander da Silva)

PUC MINAS

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AGRADECIMENTOS

“Não tenho a anatomia de uma garça pra receber em mim os perfumes do azul. Mas eu recebo. É uma benção. Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me namoram mais de perto. Fico enamorado. É uma benção.

Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro para que se tornem peregrinos do chão. Eles se tornam. É uma benção. Até alguém já chegou de me ver passar a mão nos cabelos de Deus!

Eu só queria agradecer.” (As bênçãos. Manoel de Barros).

A todos que me acompanharam e me iluminaram: Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Jr.

Profª. Drª. Anita Prado Koneski Profª. Drª. Alai Garcia Diniz

Prof. Dr. Valmor Beltrame Prof. Dr. Matteo Bonfitto Jr. Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro Prof. Dr. Jardel Sander da Silva Profª. Drª. Rosângela Miranda Cherem Minhas filhas mais que amadas, Gabriela e Camilla Meus pais amorosos, Éverson e Hilza (in memoriam)

Colegas de performances: Patrícia, Eder, Silvia, Mariana, Osvaldo, Marina, Gustavo, Flávia

Meus amigos queridos: Betinha, Zuleica Mônica, Cris, Drica, Gló, Maurício

Adriana, Malu, Marcos, Titina Luca, Teca, Canabarro

Rosana, Rosimeire Adri, Giba, Dy, Renata Adriano, Lú Knihs, Iarinha Sandrinha Lima (in memoriam).

Estes encontros são um pote cheio de bênçãos!

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“Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além.”

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RESUMO

SILVEIRA, Maria Betânia. Tellus: performance e teatralidade com a argila e a cerâmica. 2014. 291 p. Tese (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas Teatrais. Linha de Pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro, Florianópolis, 2014.

A presente tese investiga os componentes das performances realizadas com a argila e com a cerâmica como parceiras de cena e suas possíveis teatralidades. Considera-se que o deslocamento da performatividade própria do fazer artístico com a argila e a cerâmica pode compor uma expressão cênica e visual, e emanar teatralidades diversas acionadas pela intencionalidade do artista em diálogo com a matéria eleita, formante e formadora no processo do fazer, possibilitando o surgimento nessa relação do outro ligado ao imaginário. O estudo é realizado a partir do desenvolvimento de experimentos performáticos próprios analisados reflexivamente e relacionados a outros trabalhos performáticos de artistas visuais como Ana Mendieta, Celeida Tostes, Miquel Barceló e Josef Nadj. A investigação tem a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty como diretriz metodológica, o que compreende viver a experiência, descrevê-la e refletir sobre seus resultados. Para compreensão da performance, de acordo com os estudos de Richard Schechner, parte-se do conceito de comportamento restaurado, que implica no entendimento de que, na arte, gestos e ações se repetem e ligam sentidos do presente aos do passado, e que esta relação com a terra e seus elementos transformados presta-se à reiterada revelação do ser humano.

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ABSTRACT

SILVEIRA, Maria Betânia. Tellus: performance and theatricality with clay and ceramic. 2014. 291 p. Thesis (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas Teatrais. Linha de Pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro, Florianópolis, 2014.

This present thesis investigates the elements of the performances created with clay and ceramics as stage partners and their possible theatricality. It is considered that the displacement of performativity in itself from artistic doings with clay and ceramics can compose a scenic and visual expression and emanate several theatricalities powered by the intentions of the artist in dialogue with the chosen material, formant and formator in the making process, emerging in this relationship the other connected to the imaginary. This study is done from the development of performative experiments analysed with reflexion and related to other visual artists' performative works such as Ana Mendieta, Celeida Tostes, Miquel Barceló e Josef Nadj. The investigation has Maurice Merleau-Ponty phenomenology as methodological guideline and that consists in living the experience, describe it and reflect about its results. In order to comprehend performance, according Richard Schechner's studies, and his concept of a restored behaviour, which implies in the understanding that within art, gestures and actions repeat themselves and conect meanings of the present to the ones of the past and this relationship with the earth and its transformed elements represents the reaffirming revelation of human beings.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Gruta de Altamira, Espanha ... 38

Figura 2- Vênus de Dolni Vestonice, de 29000-25000 anos A.C. ... 42

Figura 3- Tangas de cerâmica pintadas com engobe ... 43

Figura 4- Celeida Tostes: Amassadinhos e Gesto Arcaico s/d ... 46

Figura 5- Vênus de Willendorf ... 72

Figura 6- Paso doble – tomada geral, vista frontal ... 110

Figura 7- Paso doble – tomada geral, vista frontal ... 111

Figura 8- Paso doble – tomada geral, vista frontal ... 112

Figura 9- Paso doble – vista frontal ... 113

Figura 10- Paso doble – vista frontal ... 114

Figura 11- Paso doble – vista frontal ... 114

Figura12- The tree of life, Old Man’s Creek, 1977 ... 119

Figura 13- Charles Simonds, Landscape-body-dwelling, 1970 ... 120

Figura 14- Deusas minoicas de cerâmica com objetos ritualísticos em suas coroas e/ou cocares. 1200-1100 A.C ... 121

Figura 15- (Quadros I, II E III) – Passagem. Celeida Tostes, 1979 ... 130

Figura 16- (Quadros IV E V) – Passagem. Celeida Tostes, 1979 ... 131

Figura 17- (Quadros VI E VII) – Passagem. Celeida Tostes, 1979 ... 131

Figura 18- (Quadros VIII E IX) – Passagem. Celeida Tostes, 1979 ... 131

Figura 19- (Quadros X, XI, XII) – Passagem. Celeida Tostes, 1979 ... 132

Figura 20- Celeida Tostes, em Passagem, 1979, e Mulher agachada de Rodin, 1881 ... 134

Figura 21- Passagem. Obra de Celeida Tostes apresentada por Ani Villanueva, 1992, Bienal del Barro en America, Museo de Arte Contemporaneo de Caracas – Venezuela, 1992... ... 137

Figura 22- Performance Fertilidade e nascimento, por Ani Villanueva. Centro de Arte de Maracaibxo Lia Bermudez, janeiro de 1996, Venezuela ... 139

Figura 23- Printscreen da resposta de Ani Villanueva ... 139

Figura 24- Gesto arcaico, 1991 - Celeida Tostes ... 143

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Figura 26- Série Amassadinhos, 7-15x4-9cm (1.271 peças)

Coleção Luiz Áquila ... 146

Figura 27- Tecido pintado por Gabriela e Camilla Silveira, 2010 ... 160 Figura 28- Betânia Silveira em Tellus I – 2010 – CEART/UDESC ... 164 Figura 29- Betânia Silveira em Tellus I, experimento I, 2010,

CEART/UDESC, Florianópolis, SC. ... 172 Figura 30- Betânia Silveira em Tellus I, experimento II, 2013,

CEART/UDESC, Florianópolis, SC. ... 173 Figura 31- Betânia Silveira em Tellus II, 2010, CEART/UDESC ... 182 Figura 32- Tellus II, experimento I, CEART/UDESC,

Florianópolis, SC, 2010 ... 191 Figura 33- Tellus II, experimento I, CEART/ UDESC,

Florianópolis, SC, 2010 ... 192 Figura 34- Tellus II, experimento II, CEART/ UDESC,

Florianópolis, SC, 2013 ... 193 Figura 35- Liame – Museu Histórico de Santa Catarina, Palácio

Cruz e Sousa, 2010. ... 203 Figura 36- Performance de abertura da exposição Liame, em

dezembro de 2010. ... 205 Figura 37- Interação de fruidores na exposição Liame, dezembro

de 2010 ... 206 Figura 38- Etapa de proto-performance – construção das peças

de argila em ateliê e experimentação espacial da rede

de silicone, Florianópolis, SC, 2010 ... 207 Figura 39- Performance na exposição Liame em dezembro de

2010. Museu Histórico Cruz e Sousa ... 208 Figura 40- Performance e fruidores na exposição Liame, em -

dezembro de 2010. Florianópolis, SC ... 209 Figura 41- Interação de fruidores na exposição liame, em

dezembro de 2010. Florianópolis, SC ... 210 Figura 42- Performance com Silvia Beraldo, Marina Beraldo,

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Santa Catariana – Palácio Cruz e Sousa, Florianópolis,

SC, 2010. ... 210 Figura 43- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 223 Figura 44- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 224 Figura 45- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 225 Figura 46- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 226 Figura 47- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 226 Figura 48- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 227 Figura 49- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 228 Figura 50- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 230 Figura 51- Aceita um presente? Betânia Silveira e Eder Sumariva

Rodrigues, Florianópolis, SC ... 232 Figura 52- Aceita um presente? Betânia Silveira e Eder Sumariva

Rodrigues, Florianópolis, SC ... 233 Figura 53- Aceita um presente? Betânia Silveira e Eder Sumariva

Rodrigues, Florianópolis, SC ... 236 Figura 54- Aceita um presente? Betânia Silveira e Patrícia Silveira,

Florianópolis, 2010 ... 237 Figura 55- Aceita o presente? - 1ª manhã - Betânia Silveira e Eder

Sumariva Rodrigues ... 238 Figura 56- Aceita o presente? - 2ª manhã - Betânia Silveira e Eder

Sumariva Rodrigues ... 239 Figura 57- Aceita o presente? - 3ª manhã - Betânia Silveira e Eder

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Figura 58- Amuletos modelados e crus, prontos para queima em

forno elétrico a 1000ºc ... 253 Figura 59- Fragmentação da argila para secagem e posterior

diluição na água durante a performance ... 254 Figura 60- Objetos em preparação e espera para, colocados sobre a

canga branca, serem utilizados nas operações de

Amuletos da prosperidade, Florianópolis, SC, 2013 ... 255 Figura 61- Amuletos modelados em argila crua, vermelha e branca

e com pasta egípcia azul, transformados em cerâmicas

brancas, vermelhas e azuis, em 2013 ... 256 Figura 62- – Amuletos da prosperidade, Barra da Lagoa e praia do

Moçambique, Florianópolis, SC ... 262 Figura 63- Amuletos da prosperidade, encontrados três dias depois

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 21

2 PARA COMPREENDER O CAMINHO DE TELLUS: argila, ser humano, performance e teatralidade. ... 37

2.1 A ARGILA, A CERÂMICA E O GESTO ... 37

2.2 CORPO E EXPERIÊNCIA ... 52

2.3 PERFORMANCE, PERFORMER E REGISTROS ... 70

2.3.1 Performer e performatividade: presença e ação ... 85

2.3.2 Materialidades da performance ... 90

2.3.3 Registros e prolongamentos da performance ... 92

2.4 TEATRALIDADES: AFIRMAÇÕES E INCERTEZAS ... 95

2.5 REFERÊNCIAS PRÁTICAS DE PERFORMANCES REALIZADAS COM ARGILA ... 108

2.5.1 Paso Doble: Miquel Barceló, Josef Nadj e a argila ... 109

2.5.1.1 Aos meus olhos: o evento e seus sentidos...109

2.5.2 Ana Mendieta e A Árvore da Vida ... 118

2.5.3 Celeida Tostes: Passagem e Gesto Arcaico ... 128

2.5.3.1 Gesto Arcaico: preensão palmar do barro como intenção de obra ...143

3 A SÉRIE TELLUS ... 153

3.1 O CORPO SE APRESENTA ... 155

3.1.1 Pesquisa, trocas e composição de performances da série Tellus ... 157

3.2 TELLUS I: EU COMIGO MESMA ... 163

3.2.1 Tellus I: experimento I ... 164

3.2.2 Tellus I: experimento II ou evoluções do gesto ... 167

3.2.3 Tellus I: o corpo em destaque no acontecimento ... 172

3.3 TELLUS II: A ARGILA COMO ALTERIDADE E EU ... 181

3.3.1 Tellus II: experimento I – energia e esgotamento ... 182

3.3.2 Tellus II: experimento II – caminhos e desvios construtivos ... 185

3.3.3 Tellus II: corpo no barro, corpo com barro, energia e esgotamento, construção, destruição, reconstrução ... 191

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3.4.1 Tellus: Liame – corporeidade, trânsitos, elos e atravessamentos ... 207

3.4.1.1 Relações de proximidades...213

3.4.1.2 Perfomance coletiva: o mostrar fazendo como influências recíprocas...215

3.4.1.3 O lugar como ponto de encontro...217

3.4.1.4 Liando ideias para um corpo arrematado...219

3.5 PRESENTE NA CIDADE: COM OS OUTROS EM ESTRATÉGIAS PARA A IMAGINAÇÃO...221

3.5.1 Aceita um presente?: o desafio da oferta e do recebimento... 222

3.5.2 Aceita o presente?: imaginação, aproximação e afeto ... 231

3.5.3 Tellus presente na cidade ... 237

3.5.3.1 Pensar o presente como vivência extra cotidiana...243

3.5.3.2. Teatralidade e expressão visual: entrelaçamento gerando experiência formativa e transformativa...248

3.6 TELLUS: AMULETOS DA PROSPERIDADE ... 252

3.6.1 Programa para Amuletos da Prosperidade ... 254

3.6.2 Descrição do evento propriamente dito ... 257

3.6.3 Amuletos da Prosperidade em tempos de frágeis esperanças ... 262

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 273

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 276

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“O que é um caminho?

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1 INTRODUÇÃO

“O Barro e o Homem, duas instâncias de uma gênese permanente.”

(Oscar Sambrano Urdaneta)1

O que a terra desperta em minhas reflexões? Como é a sensação de misturar-me a ela? Por que usar esse elemento como protagonista da minha dramaturgia?

Trabalho com a argila há tanto tempo. Utilizo-me de suas potencialidades para comunicar-me poeticamente e ensino, a muitos e há muito, os modos do seu fazer. Logo, sua presença é um cotidiano em minha vida. Penso sempre no quão promissor é esse material que, até onde a história pode afirmar, serve à Humanidade desde os tempos do paleolítico.

A argila, marcante por sua utilidade e potencialidade expressiva, pode estar tanto a serviço das necessidades materiais quanto das espirituais de muitos povos ao redor do planeta. A terra é principio de vida e de morte, pois é berço de vida e leito para os restos mortais dos seres vivos, que se reintegram a ela ao findar seu ciclo vital. A argila pode fazer surgir esta reflexão por seu simples comportamento processual, pois ela possui, como essência, os princípios da transformação, da gestação, da germinação, do efêmero, do ciclo e do reciclar.

Como material que possui em si tão diversificada função, presta-se à reiterada revelação do ser humano. O contato físico com ela é profundamente reflexivo. A terra recebe meu gesto, realiza-o em formas, registra seu rastro, sua contraforma e possibilita-me projetar, nas formas que é capaz de tomar, o meu mistério, aquilo que de mim vai além dos signos pretensamente deliberados por minha decisão racional e por meus projetos. Misturando-me a ela, posso me sentir como parte sua, prolongamo-nos uma na outra, deixo-me fluir na energia que nos une como num continuum cíclico que vai e vem. Através da contraforma de meu corpo em seu corpo, posso ver revelados elementos do meu universo interior; o que há de humano em mim se expressa nesse contato.

O barro usado expressivamente pode participar da construção de uma dramaturgia elaborada ao longo da relação que se estabelece com ele e, assim, é também catalisador de

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1995-ações e fonte produtora de signos e de ocorrências expressivas, inclusive de signos mais voláteis, que embora não remetam especificamente a algo, produzem sentidos que reverberam, ressoam e passam a existir como fruto da existência de seu leitor.

Nesse contato, matéria e sonhos se juntam constituindo-se em uma coisa única. Nele a terra e os devaneios da mão que amassa, dos quais nos fala Bachelard (1991) em A terra e os devaneios da vontade, tecem o ser que somos e o sonho que personificamos.

Sendo assim, é pertinente observar que a argila e a cerâmica possuem uma longa história que se desenvolve paralelamente à da humanidade e numa relação íntima de corpo a corpo. Os gestos construtivos desse “saber fazer” repetem-se há milhares de anos nas mais diversas culturas e tempos e, muitas vezes, parecem anacrônicos. Nos trabalhos encontrados nesta pesquisa não é diferente, pois eles resultam desse mesmo tipo de ação e gestual de um corpo sobre outro corpo, material que é compreendido, nesta tese, como tendo uma peculiar performance2, no sentido de comportamento, pois aqui é, também, considerado ativo e determinante do resultado da obra.

Encontro em Luigi Pareyson, na obra Estética: Teoria da Formatividade (1993), o suporte necessário a este entendimento e, juntamente, à postura fenomenológica pautada na teoria de Maurice Merleau-Ponty, apresento o tipo de relação-acontecimento, o fenômeno que se dá no encontro de corpo humano e corpo telúrico, entendido aqui como o corpo da matéria argila, constituído quimicamente por um combinado de elementos argilominerais e água, modificado formalmente e quimicamente pelo ser humano e possível de ser transformado em cerâmica pela ação do calor.

Dentro dessa compreensão inicial se constrói esta pesquisa, Tellus3: performance e teatralidade com a argila e a cerâmica, que se encontra inserida na inter-relação de circunstâncias que envolvem os estudos performáticos e teatrais. Para estabelecer caminhos, necessitei compreender as propostas de performances que realizo como artista plástica e suas relações possíveis com o teatro, ou, especificamente, com a teatralidade, compreendendo a performance como ação interfronteiriça entre as artes visuais e as artes cênicas. É nesse

2 Para o caso de uma matéria como a argila, o conceito performance estaria relacionado à sua capacidade plástica

de reagir a uma ação física que a transforma, e por meio da qual a matéria revela um comportamento próprio expondo sua capacidade (e a dos seus materiais) de possuir uma linguagem própria. Além disso, a argila é um material que está em constante processo. É fruto da interação dos elementos naturais água, ar e terra e da constante interação que há entre eles, em seu corpo.

3Tellus, palavra retirada do latim e modificada em sua grafia para compor o título desta tese. Sua grafia original leva sobre a letra “u” o sinal gráfico “trema” que, aqui, foi retirado. Substantivo cujo sentido próprio quer dizer a

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terreno, que separa e une ao mesmo tempo, que esta investigação se dá e debate, ou deseja transitar.

A performance é uma manifestação artística interdisciplinar e polissêmica. O termo performance é sujeito a múltiplos sentidos, pois tem sido usado, na contemporaneidade, para uma infinidade de atividades, podendo estar ligado a diversas disciplinas, como por exemplo a arte, as ciências sociais, a literatura, a educação física, entre outras. Sendo assim, praticada em várias áreas do conhecimento, caracteriza-se pela realização e pela mostra de um fazer fazendo.

Esta pesquisa compreende a performance, de acordo com a visão antropológica de Richard Schechner (2006), como um comportamento restaurado e retoma e desloca, do contexto de ateliê, as ações e os gestos peculiares do fazer de um ceramista, isto é, apropria-se da performatividade4 própria desse ofício para construir suas cenas e sua atuação. Utiliza também reflexões sobre o assunto de autores como Renato Cohen, Victor Turner, Marvin Carlson, Phillip B. Zarrilli, Eleonora Fabião, Philip Auslander, Erika Fischer-Lichte e outros mais, tais como Marina Abramović, Michael Archer e Regina Melim.

A pergunta que localiza o problema em questão é formulada da seguinte forma: Quais os elementos e as possíveis teatralidades existentes nas performances realizadas com a argila e com a cerâmica?

Defendo a tese de que existe a possibilidade de haver teatralidade no deslocamento da performatividade típica de um ceramista para compor uma expressão cênica, uma vez que é intenção do artista jogar com esse deslocamento para realizar com ele uma expressão sensível, tornando essas ações executadas parte primordial da cena que se constrói e um valor em si mesmas. Penso também que há uma teatralidade na expressividade do comportamento da argila quando em reação às ações humanas sobre si, o que implica dizer que há teatralidade em latência na relação entre ser humano e barro e que esta pode ser ativada dependendo das intenções dos sujeitos ali envolvidos.

Nesse sentido, é objetivo geral desta tese compreender quais os elementos que caracterizam as performances realizadas com a argila e a cerâmica, identificando em cada uma delas as possíveis teatralidades existentes. Para atingir essa compreensão, torna-se necessário o desenvolvimento dos objetivos específicos e das ações seguintes: a) criar e vivenciar uma série de performances com a performatividade própria do ceramista e a

4A performatividade designa, “os modos do fazer e não uma operação falsa ou ficcional, mas a própria dinâmica

das performancesem geral, marcando a dimensão viva e ativa de todas elas”. De anotações a partir do material

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parceria da argila ou da cerâmica; b) registrar (em fotografia e vídeo) e descrever as performances; e c) realizar reflexão das performances com vistas à identificação de suas características e das teatralidades possíveis em cada versão.

Para tanto, proponho-me investigar, por meio da pesquisa teórica e da prática, uma série de questões que, a meu ver, permeiam o problema, e infundem clareza à minha colocação. São elas:

- Pensar a performatividade das ações do ser humano sobre a argila, no processo do fazer artístico, como meio para o acontecimento de uma teatralidade inerente à relação entre dois corpos, humano e de barro.

- Promover o deslocamento da performatividade da relação do artista visual com a argila para uma situação cênica, com intuito de investigar na cena elementos da performance e a possibilidade da ativação de uma teatralidade possível de se instaurar, mesmo na ausência de uma audiência primária.

- Refletir sobre o conceito de teatralidade e tornar possível seu alargamento para pensá-lo no contexto das performances e do comportamento da argila.

- Pensar a intercorporeidade somada à intencionalidade do sujeito artista agindo sobre a argila como instauradores da teatralidade cênica das obras em questão.

Como referências, busco o diálogo com os trabalhos de quatro artistas que se utilizam da argila como parceira de cena, com o intuito de refletir através deles sobre as relações entre performatividade e teatralidade, estabelecendo diálogos poéticos com meus trabalhos e meu processo artístico.

O problema foi, assim, investigado por meio empírico e literário.

Inicialmente, desenvolvi uma série de oito performances, nas quais realizei as ações, ora sozinha e sem audiência primária, ora acompanhada de colegas e público.

As duas primeiras performances desenvolvidas para a tese - Tellus I e II - são frutos do contato com vídeos5 apresentados em um Festival de Cerâmica realizado no Departamento de

5 Os vídeos apresentavam o processo artesanal de vários ceramistas ao redor do mundo. Impactaram-me,

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Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 2007. Portanto, alguns dos experimentos seguem a mesma linha daquilo que nas imagens de vídeo mostradas foi para mim razão de encantamento.

Tellus I apresenta um corpo solitário em movimento, composto por todas as ações conjuntas e/ou reflexas necessárias à realização da técnica da modelagem com argila.

Em Tellus II, lanço-me na aventura da experiência corpo a corpo travada com a argila. Nesse processo, vivencio as tensões e o prazer de uma relação caracterizada por ser, ao mesmo tempo, um encontro e um embate.

Em 2013, oportunizei a repetição desses experimentos para realizar outros encaminhamentos para a experiência. As performances foram repetidas em mesmo contexto, tendo sido as quatro versões realizadas na sala de dança do Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), sem audiência primária.

Durante a pesquisa bibliográfica, enquanto buscava conhecer mais a fundo a obra artística e a vida de Ana Mendieta, artista cubana atuante nos Estados Unidos da América do Norte, e internacionalmente, nos anos 1970 e 1980, e de Celeida Tostes, artista carioca atuante no Brasil e internacionalmente nessas mesmas décadas, foram acontecendo atravessamentos que acabaram por contaminar o meu desejo de trabalhar com a performance, e levaram-me a expressar as influências de suas obras nas minhas produções. Ambas as artistas também usavam o barro como matéria expressiva e parceiro de cena.

Com isso, adoto o gesto de Celeida Tostes, ao construir os Amassadinhos para a instalação Gesto Arcaico, de 1991, e assumo meu amor pelas deusas do neolítico e pelo trabalho performático de Ana Mendieta, escolhendo sua performance The tree of life como referência a ser apontada em Tellus.

Ao unir esse sentimento ao gesto de Celeida descubro pequenas formas roliças que remetem ao corpo humano e, especificamente, às deusas da fertilidade do passado. Portanto, por meio da combinação de suas influências e, paralelamente ao desenrolar das performances, criei um trabalho plástico6, cujo nome se alterou de acordo com a mudança de objetivo - de Identidades Interativas passou a Amuletos da Prosperidade.

Os locais variaram segundo as especificidades dos objetivos de cada projeto.

performativo em si. Os artistas construíam em seu processo um espetáculo rico em materialidade e performatividade.

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O terceiro projeto aconteceu durante a abertura de uma exposição de artes visuais no Museu Histórico de Santa Catarina – Palácio Cruz e Souza – também em Florianópolis. Nessa performance, atuei ao lado de seis amigos músicos e, como proposta relacional que caracterizava o evento, possibilitei que o público também pudesse intervir e se relacionar com o espaço instalativo composto por redes de silicone e peças de cerâmicas sonoras.

As duas próximas performances aconteram no centro da cidade de Florianópolis com a parceria de dois colegas de atuação e presencialmente para pedestres que passavam pelo local.

A última da série foi desenvolvida nas praias da Barra da Lagoa e do Moçambique, também em Florianópolis. Para essa performance foram enviados alguns convites via web, mas, devido à hora do evento (06:34hs)7, somente estiveram presentes a equipe de filmagem e pessoas que por ali caminhavam.

Em cada uma dessas performances, a argila entra, de forma diversa, como elemento parceiro de cena cuja importância é central.

Sendo assim, o método de pesquisa foi desenvolvido em três etapas: a experiência vivenciada, a descrição das experiências e, por último, a análise reflexiva dos acontecimentos com base no referencial teórico aqui apresentado.

Procuro, com meus experimentos performáticos com a argila e com a cerâmica desenvolvidos ao longo desse trajeto, dar subsídio à elaboração de uma reflexão vivenciada, no sentido de firmar e deixar claro que todas essas questões fazem parte de minha própria prática como artista. Desta forma, toda essa busca teórica e empírica faz parte inerente à minha própria vida artística, que considero intimamente ligada à minha existência como ser no mundo. Portanto, as performances desenvolvidas por mim, para este estudo, são partes de minha produção poética. Algumas vezes, são presencialmente dirigidas ao fruidor, cujas ações colaboram para sua plena realização e para a atribuição de seus sentidos. Em outro momento, são ações desenvolvidas sem audiência primária e registradas em vídeos e fotos, para uma possível investigação de seus elementos, assim como da teatralidade resultante da relação de meu corpo com a argila quando do deslocamento dos gestos do fazer cerâmico, de ateliê, para outro contexto.

O desenvolvimento do presente texto buscou trazer o caminho que percorri para traçar as relações que se processaram no desenrolar das performances, desde as intercorporeidades que se dão entre meu corpo atual e cênico com a matéria expressiva e/ou com os objetos poéticos de cerâmica, até àquelas que se referem às relações entre o outro e eu e entre o outro

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e a obra performática composta de elementos visuais, táteis e sonoros, na qual o sujeito se integra participando como corpo cênico. Essas intercorporeidades que possibilitam o fazer e o fruir estão relacionadas, no meu entender, à instauração das teatralidades possíveis e diversas que detectamos nas performances.

Para apresentar a pesquisa dividi o texto em três capítulos além desta introdução, sendo, o segundo, “PARA COMPREENDER O CAMINHO DE TELLUS: argila, ser humano, performance e teatralidade”, em que apresento os conceitos que estruturam a reflexão da experiência; o terceiro, “A SÉRIE TELLUS”, em que se encontram os relatos das experiências e suas respectivas análises reflexivas; e, por fim, o quarto e último capítulo, as “CONSIDERAÇÕES FINAIS”.

Para a construção de um corpo teórico que venha ao encontro da proposta desta pesquisa é, a meu ver, imprescindível abordar o objeto expressivo escolhido como parceiro de cena – matéria-prima (a argila) ou matéria transformada (a cerâmica) – e as relações emergidas do contexto no qual a repetição de gestos antigos faz nascer a obra. Procuro versar sobre a argila e seu aspecto histórico e relacional com a humanidade, assim como sua capacidade e seu processo como matéria de transformação e produção de sentidos, sua formatividade, sua própria performance e possível teatralidade, por entender que esse material é profundamente relevante na construção da cultura, do ser humano e, por conseguinte, de obras plástico/cênicas.

Assim, pretendo deixar claro, conceitualmente, com quais corpos estarei lidando. O gesto que se repete no processo do fazer da obra performática é fruto de um corpo em ação, uma resposta ao seu movimento, construído de acordo com as leis de equilíbrio desse movimento. Compreendo o termo gesto da mesma forma como o define Matteo Bonfitto para o ator:

“[...] consideramos o gesto não como um elemento que está em contraste com a

ação física, mas como uma sua extensão, um seu desdobramento. Nesse sentido o gesto é aqui considerado como um elemento resultante de um processo de

detalhamento e definição do ser ficcional pelo ator.” (BONFITTO, 2002, p. 109).

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orgânicas, como explica Eleonora Fabião, apoiada no pensamento de Baruch Espinosa, mas como uma disposição de forças interativas, “complexa relação entre diversas velocidades, [...] elaborada interação entre partículas infinitas” ( 2008, p. 238). Portanto, o corpo com o qual trabalho e vivo, assim como os corpos que se mostram por meio das performances de artistas contemporâneos8 escolhidos por mim para elucidar aspectos e questões em discussão nesta tese.

Para compreender a profundidade em que consiste o corpo perceptivo, procurei entendimento no pensamento de Phillip B. Zarrilli, que o aborda em suas múltiplas camadas de percepção e sensorialidade.

Da mesma forma, foi necessário pensar sobre quão decisiva pode ser a intencionalidade e a consciência do sujeito no engendramento de ações e experiências do processo. Para tal objetivo, ainda no corpo teórico busco, através dos fundamentos da fenomenologia merleau-pontyana, a compreensão e a adoção dos conceitos de intencionalidade, corpo e intercorporeidade, aliados à ideia de inserção do ser, enquanto corpo e subjetividade, na experiência. Estas reflexões compreendem a subjetividade como inerente ao ser humano e o ponto de vista do artista e da audiência como leitmotiv para o fazer e o fruir. Isto implica em afirmar a subjetividade como o motor que engendra as obras performáticas e, inclusive, o olhar que se deita sobre elas nesta tese. Para especificar o conceito de subjetividade, encontro na “viagem” de Suely Rolnik essa bagagem.

As performances vividas e aqui apresentadas reúnem todos esses pontos em suas composições e são experiências9 ou eventos que nos acontecem e nos quais somos também acontecimentos, pois eles nos questionam e nos afetam significativamente, provocando em nós alguma forma de transformação momentânea ou prolongada e transcorrida com o tempo.

A performance é, portanto, para esta tese, o âmago da questão, uma gema constituída por muitos elementos, sendo um deles o performer. Para o entendimento dessa função, contribuem as ideias de Eleonora Fabião, e, para a materialidade das performances, o estudo de Erika Fischer-Lichter.

A teatralidade é o elemento nevrálgico do processo e solicita um escavar como o arqueológico em busca de sua caracterização, de sua compreensão, da delimitação de seu

8 Ana Mendieta, Celeida Tostes, Miquel Barceló e Joseh Nadj.

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9“Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma. ‘Fazer’ não diz aqui de

maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele. [...]”

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conceito, que mesmo na literatura específica, de certa forma, se mostra tão vago10. A partir da elucidação do conceito ou mesmo da escolha de um ou mais conceitos, que formalize um entendimento próprio a seu respeito, procuro o possível reconhecimento de sua existência ou não nos experimentos desenvolvidos para a tese.

Para a observação e para o entendimento das teatralidades que se processam nas performances estudadas aqui, discuto os conceitos desenvolvidos por Josette Féral e Nikolai Nicolaevich Evreinov, amparados pelo pensamento de Erving Goffman e pela ideia da intencionalidade fenomenológica como campo de estrutura para o debate, pois não há somente um tipo de teatralidade, mas muitos modos de se processá-la e de reconhecê-la. Sobretudo, penso que na relação do ser humano com a argila e em seu resultado, ao se produzir objetos poéticos, existe uma teatralidade em latência que pode ser acionada pela intencionalidade com que o sujeito artista faz da argila seu material expressivo e cênico, além daquela cujo reconhecimento é explícito pelo olhar do fruidor ou pelo espaço potencial, que a endossa.

Para complemento das reflexões, procuro estender o conceito de teatralidade estabelecendo relações com experiências e entendimentos próprios do universo escultórico e da instalação.

Apresento, descritivamente, as obras que são para mim referências de performances e procuro abordar minimamente seus sentidos. Vejo essas obras como frutos da performance artística, gênero no qual o corpo, a presença e a ação do artista são a origem, o desenvolvimento e, muitas vezes, o desfecho da cena. Em cada uma delas, a argila somada às ações do sujeito artista é signo que trama sentidos singulares.

Em Mendieta, as performances refletem questões de identidade e pertencimento/não pertencimento à ordem, respectivamente, da natureza e a social vigente na sociedade anglo-saxônica dos Estados Unidos da América do Norte, na década de 1970, dominada pelo poder patriarcal. Da mesma forma, elas fazem referência ao corpo da mulher como princípio feminino e sagrado, comparado à natureza e a sua fertilidade, e como símbolo político, de resistência contra a condição excludente da mulher, principalmente a da estrangeira e latina, naquela sociedade.

Sentidos identitários, de renascimento e de coletividade, podem ser captados nos trabalhos de arte de Celeida Tostes, enquanto que no processo de Miquel Barceló e Josef Nadj, ao longo da feitura de Paso Doble, é possível observar, mais que em qualquer dos trabalhos anteriormente citados, a possibilidade que se dá ao público de, antes mesmo de significar as imagens que vê,

10 Em ocasião do Colóquio Pensar a Cena Contemporânea, realizado em Florianópolis pelo Departamento de

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envolver-se com a performatividade em ação que ali se realiza e com o papel formativo da argila. Os espectadores de tais atos são confrontados com ações para as quais somente a eles caberá a atribuição de sentidos. Porém, a meu ver, estão embutidos, na construção dessa performance que Barceló e Nadj apresentam juntos, movimentos de corpo inteiro que, dirigidos à construção de uma obra plástica de argila, sugerem relações comportamentais próprias de luta, destruição, reconstrução e dominação dos seres humanos sobre a matéria e de um ser sobre o outro. Nesse trabalho, o primordial é a inter-relação, que une performers e argila num único procedimento, no qual ambos se instigam mutuamente.

Em todas essas performances citadas, encontra-se o procedimento de misturar-se à terra. As ações em cena, realmente, fazem o percurso de sair dela e voltar a ela, o que metaforicamente para mim referencia, com ênfase, a participação do ser humano no ciclo vital da natureza. Essas ações caracterizam-se pelo contato direto com a argila e, também, pela inserção do corpo à paisagem natural. Nessas performances, a natureza revela-se como processo vital e sua presença como a essência desejosa de ser recuperada à imensidão íntima do ser humano, pois dela nos distanciamos devido à sedução das ideologias tecnocráticas e tecnológicas da história cultural humana.

Entendo que esses trabalhos de performance se encontram num território de fronteira porosa, em que artes visuais e artes cênicas se entrelaçam no ato artístico que, também, é político. São obras que aludem à vida e à morte, e registram a impressão do corpo humano na argila, que guarda deles os rastros do sujeito, configurando a memória da matéria.

Outros autores participam da revisão de literatura contribuindo com suas ideias para minha própria compreensão do tema: Georges Didi-Huberman, Georges Bataille, John Dewey, John C. Dawsey, Jorge Larrosa Bondía, José Gil, Pedro Sanches, Christine Greiner, Normal Baitello Jr., Sandra Meyer Nunes, Oliver König e Ileana Dieguez Caballero. Na construção dos textos sobre Paso Doble, sobre Ana Mendieta e sobre Celeida Tostes, participam autores como: Renato Cohen, Elaine Regina dos Santos, Isabel Henning, Regina Célio Pinto, Maria Ruído, Roberto Guevara, Nancy Spero, assim como as próprias artistas.

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A série de oito performances, realizadas com a presença da argila e da cerâmica como parceiras de cena e desenvolvidas no percurso do doutorado, veio compor a investigação e foi desenvolvida entre os anos de 2010 e 2013.

Essas performances ocupam, pois, um território ambivalente. Constroem-se com atos próprios ao artista visual e, em alguns casos, apresentam-se em tempo real a um público que completa, com o acontecimento (em si) e o performer, o tripé estrutural e característico do teatro. Por outro lado, podem ser eventos sem audiência e desdobrarem-se em outra mídia, como o vídeo, rompendo com o raciocínio das presenças em tempo e espaço comuns. Os vídeos e as fotografias nos servem como registros de uma ação passada que se atualiza de outra maneira no presente e são, também, instrumentos para o exame sobre a teatralidade e a identificação dos elementos das performances.

Ao viver essas experiências, coloco-me no olho do furacão, pois busco compreender, através de meu próprio corpo em ação, os mecanismos que põem em movimento uma performance e refletir sobre meu próprio trabalho, processo no qual um turbilhão de sentimentos e dúvidas nos assolam, pois é um exercício complexo descolar-se do próprio trabalho para examiná-lo de fora como uma pesquisadora impessoal.

Considerando que a performance possui três etapas - preparatória, de atuação e pós-atuação - pretendo narrar o panorama dos experimentos construídos e vividos, para possibilitar aos leitores uma aproximação às operações empreendidas, suas sequências e propósitos. Portanto, objetivo neste momento, dar a ver, por meio da descrição dos eventos, o corpo de experimentos criados e submetidos, a posteriori, à reflexão.

Com exceção da obra denominada Liame, todos os outros experimentos (de forma singular) foram concebidos com a operação de deslocar os modos de fazer do processo cerâmico para compor, com essa performatividade, as cenas e ações que apresento.

Essas ações ora acontecem no chão com maior quantidade de argila, ora ocupam o espaço público do centro da cidade, ora se dão na praia compondo um conjunto que se assemelha a um ritual, ora acontecem sem a verdadeira presença e parceria da matéria, exigindo, para sua efetivação, o exercício da memória psicofísica dos modos do fazer e as possibilidades psicomotrizes do meu corpo.

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Da mesma maneira que em Tellus I e II, a série Presente na Cidade se constitui da repetição da performance que foi vivenciada mais de uma vez. Sendo assim, seus programas foram repetidos contando com alguma alteração relacionada à elaboração das questões que as próprias performances suscitavam.

Amuletos da Prosperidade leva para a cena os atos necessários à reciclagem da argila e configura uma espécie de ritual, no qual são utilizados objetos poéticos de cerâmica e barro cru, assim como um objeto - bata branca de fino algodão – que carrega memória afetiva da minha própria vida.

À medida que essas ações se deslocam de um contexto de trabalho de ateliê (onde, normalmente, utiliza-se uma mesa como apoio para seu desenvolvimento) para uma cena que se realiza no chão, com uma quantidade bem maior de argila, ou na rua e na praia com quantidades pequenas do mesmo material, os gestos que se aplicam ao trabalho vão pedir, de acordo com essa diversidade, o uso de motricidade mais fina, como o trabalho com as pontas dos dedos, ou da mais grossa, como a implicação de corpo inteiro na relação com a matéria argila. Essas performances, portanto, são compostas pelo desdobramento das possibilidades psicofísicas dos modos da artesania da cerâmica de ateliê.

O percurso que percorri como pesquisadora é como uma espiral, cuja circularidade expansiva e retrátil implica no retorno ou alinhamento às imediações de um mesmo ponto várias vezes. Encontro em Schechner (2012, p.25) a ideia que apoia esse meu pensar: “O mundo não se repete, mas gira sobre si mesmo, como num cone rotativo ou numa espiral – em que gira sobre si mesmo, embora não exatamente da mesma maneira”. Nessa contiguidade, é possível observar a repetição de características ontológicas (ainda que estejam em espaços e tempos diferentes) existentes na relação poética entre o ser humano e a terra – seu chão, sua fonte vital, retorno e urna.

Portanto, apoiando-me na ideia de que a arte é feita de tempos entremeados, apresento o gesto que volta, que é fruto de um destempo, pois habita todos os tempos e é responsável pela instauração da obra de arte e da cena na qual ela se processa. O quiasma11 que determina

11 O conceito quiasma diz respeito a interseções ou entrecruzamentos de duas ou mais linhas, um entrelaçamento

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todas essas produções é constituído pelas relações que o ser humano estabelece com o mundo e, ao mesmo tempo, pelo modo como as coisas do mundo reagem a sua ação, implicando num processo de consequente elaboração do conhecimento de si mesmo – de seu próprio corpo – e do universo físico ao seu redor.

contido no grande espetáculo. Mas meu corpo vidente subentende este corpo visível e todos os visíveis com ele.

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“Assim, a criação é um perene desdobramento e uma perene reestruturação. É uma intensificação da vida.”

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2 PARA COMPREENDER O CAMINHO DE TELLUS: argila, ser humano, performance e teatralidade.

O corpo teórico que reúno neste capítulo não dá conta de abranger todo o estudo da performance, ou do corpo, ou mesmo da argila e da teatralidade, pois todos esses itens já possuem um vasto caminho de investigação e uma série de teorias e teóricos se debruçando sobre seus temas, de modo que se torna impossível abarcar todo o conhecimento já produzido. O que procurei fazer foi eleger pontos que reconheço fenomenologicamente nas minhas experiências, com o objetivo de produzir um tecido próprio tramado no entrelaçamento da experiência com a reflexão, tendo por base os aspectos aqui explicitados.

Portanto, essa reunião que faço de reflexões e análises de outros estudiosos sobre a performance, e também sobre o ser humano - corpo, experiência -, a argila e a teatralidade, corporifica o substrato para a compreensão dos experimentos de performance desenvolvidos e vivenciados durante o contexto desta produção acadêmica de nome TELLUS, caracterizando-se como o conjunto de meadas que estou disponibilizando para tramar, no terceiro capítulo, as minhas próprias considerações.

O gesto que volta refere-se à repetição do detalhamento e da definição das ações construtivas usadas pela humanidade no processo do fazer cerâmico. Ao longo da história humana o gesto volta e desenvolve técnicas de modelagem com o material. Aqui ele, também, se torna presente, porém de outra maneira e em outro contexto.

2.1 A ARGILA, A CERÂMICA E O GESTO

A “origem”, como aprendemos com Walter Benjamin, é aquele lugar em que todos os potenciais estavam anunciados e disponíveis, que podem ser silenciados e esquecidos, mas que permanecem acenando para o presente. Desse modo, a origem não é apenas um objeto de culto saudosista, mas um lugar a que se chega quando a história permite realizar o potencial das coisas. (Ronaldo Entler)12

Penso num longo caminho já percorrido: o da Humanidade em sua relação simbólica com a terra, desde os tempos em que o ser humano habitava as cavernas e misturava-se a ela

12 Em: Tudo o que se enxerga por um furo de agulha. Disponível em:http://iconica.com.br/blog/?p=333.Acesso

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(terra) registrando sua presença. Na minha imaginação: “Aqui estou! Em meio a tudo mais, registro também minha existência com terra!”

Figura 1 – Gruta de Altamira, Espanha.

Fonte: Jornal La Republica IT.

Usando os pigmentos minerais misturados à água ou a alguma outra substância pegajosa, os artistas primevos criaram um produto colorido e liquefeito com o qual realizavam suas pinturas. Pressionando as mãos molhadas na tinta ou, ainda, soprando a tinta sobre suas mãos contrapostas à parede da caverna, eles nos deixaram inscritos, também, os rastros de seus corpos. Desde então, o fazer e o mostrar fazendo estão unidos no gesto que fica eternizado como pintura e sinal que aviva a lembrança da existência dessa humanidade longínqua, nossos antepassados.

Embora comumente relacionadas, por historiadores e arqueólogos, ao pensamento mágico, para Georges Bataille (2003), essas ações humanas são o reflexo da alegria de viver e da realização do potencial lúdico do ser humano. Portanto, guardam em si muito mais que apenas uma relação com o sagrado relacionado à sua religiosidade. É arte e vida entremeados e significando-se.

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uso da sobrevivência. Os utensílios do Homo Faber, aquele que já não era um animal e também não era ainda o ser humano que somos hoje, mostram uma inteligência que se relacionava com os objetos ou com a atividade objetiva que executava, mas que não revelava ainda uma vida interior que a arte é capaz de comunicar. Foi preciso mais cinco mil anos para que outro ser, semelhante, mas não seu descendente, nosso verdadeiro ancestral, viesse descobrir a magia do lúdico e, com esse sentimento, criar o mundo da arte, universo que inaugura a comunicação intersubjetiva. “A arte veio, então, acrescentar à atividade útil, uma atividade lúdica” (BATAILLE, 2003, p. 40).

Georges Bataille (2003, p. 17) é poético ao escrever que “toda gênesis supõe aquele que a precede e se, em algum ponto, o dia nasce da noite, a luz que provém de Lascaux pertence à aurora da espécie humana”. Com isso, afirma a importância daqueles que nos antecedem e que, nas cavernas de Lascaux, estão como memória e símbolo de uma era que deu passagem da “besta humana”13 ao ser distinto que somos nós, da vida indiferenciada à da

consciência, do mundo do trabalho ao mundo do jogo - conceito defendido por Bataille (2003, p. 38) para a arte -,do Homo Faber para o Homo Sapiens.

Assim, desde essa época em que tudo estava por dominar, a humanidade põe em marcha seu relacionamento com as matérias da terra, que viriam a ser profundamente frutíferas para seu desenvolvimento material e espiritual.

Em seus primeiros passos em direção ao manejo e controle de seu entorno, para garantir sua duração, nossos ancestrais nada conheciam ainda do imenso poder humano, capaz de construir, destruir e reconstruir tudo a sua volta.

No paleolítico médio e inferior, a argila era usada para preenchimento dos crânios, corpos decompostos e, desta forma, recuperados, para que ali ficasse impressa e registrada a lembrança daquele ser que outrora animava aquele corpo/crânio. O crânio, preenchido de argila em suas cavidades, é signo de ausência e presença; marca a presença de uma ausência e representa o lugar do humano, daquele que vive e morre. Georges Didi-Huberman supõe que talvez se tenha inventado com essas ações a primeira forma de retrato ao se situar essa questão do rosto que desaparece, ação, provavelmente necessária à elaboração do luto: “O crânio era a parte do corpo que, na morte, não devia cessar de representar o ser que o habitava.” (1998, p. 69)

A morte provoca, desde aqueles tempos, um obscuro sentimento que impelia já os seres anteriores ao Homo Faber a reconhecer no crânio o seu próximo que vivia

13 Termo utilizado por Georges Bataille (2003) ao se referir ao Homem em estágio anterior ao do Homo Sapiens

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anteriormente e que, agora, denotava estar morto. Há nesta conduta primitiva a atribuição de um valor diferente daquele dado aos objetos ordinários, para os restos mortais, considerados objetos sagrados, interditados à aproximação dos vivos. Georges Bataille (2003, p. 42) afirma que

O homem de Neardenthal somente conheceu da vida humana a atividade útil que requeria discernimento [...] o discernimento da morte introduziu na consciência outra coisa que os diferentes e limitados objetos que a rodeavam. [...] Aparentemente, a humanidade [...] se limitou a traduzir em proibição o sentimento da morte.

Segundo Bataille (2003), não há vida humana sem proibição, o que também nos distingue do animal que jamais se limita a si mesmo, proibição esta ligada à limitação imposta pelo homem ao movimento dos seres e das coisas relacionado ao sentimento e experiência da morte e, da mesma forma, à questão sexual, que implica nos desdobramentos proibitivos para o incesto, às prescrições relacionadas aos períodos críticos da sexualidade feminina, e ao pudor de uma maneira geral relacionado à gravidez e ao parto.

A partir dessa relação com os restos mortais e sepultamentos, inicia-se a classificação dos objetos em sagrados e proibidos, profanos e ilimitadamente acessíveis. A experiência da morte vem então, antes da arte, contribuir para nos distinguir dos animais e, ao mesmo tempo, para possibilitar ações que implicaram em lampejos para a iluminação da consciência humana como ser no mundo e ser que transforma esse mundo e a si mesmo.

O uso da argila completando o crânio denota, já na pré-história, a capacidade de representação, dos seres da época, embutida na manifestação cotidiana. Na prática anteriormente descrita, a argila ocupa o lugar da carne e, podemos dizer que, mesmo inconscientemente, e muito antes dos mitos religiosos sobre a criação do homem, ela foi metáfora do corpo humano.

Seguindo este caminho e pensando ainda de forma cronológica, tempos depois, no remoto neolítico, a argila foi transformada em cerâmica. O homem, ao tornar-se sedentário e agricultor, investe na terra seus esforços, para dela retirar alimentos, frutos de sua ação pensada na busca de controlar a natureza e atender suas necessidades de sobrevivência. Para isso coloca seu corpo em estreito relacionamento com seu entorno e com as matérias que a terra lhe oferta.

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essa energia e seu movimento que o homem caminha em busca desse material, recolhe-o dos leitos de rios, retira-o de áreas pantanosas e lacustres, transpira e trabalha em sua escavação, amassadura, modelagem. Ao transformá-lo, transforma-se dialeticamente. Neste caso, o ser vivenciando seu corpo fenomenológico - corpo da experiência, corpo que aprende com o vivido - através das experiências que brotam desse contato, tem sua sensorialidade instigada a conhecer a terra, suas reações e possibilidades e esta, por conseguinte, o estimula como retroalimentação, excitando seus sentidos e promovendo o desenvolvimento de sua consciência de ser no mundo. Seu corpo é seu ser no mundo; ele e o mundo exterior, numa dialética própria do conhecimento, provocam transformações de toda ordem, externas e internas.

O ser humano está no mundo, nele se projeta, age sobre ele e como reação se modifica. Seu corpo e o mundo são alvos de uma investigação que se alarga a respeito de ambos ad infinitum. Portanto, o corpo humano e o corpo da terra, em íntima relação, geram autoconhecimento, expressão e novos meios de vida. Nessa relação, há uma dramaticidade própria dos embates, dos domínios, da energia e do exercício corporal, da fadiga do corpo e da busca incessante do ser humano para se constituir como indivíduo e coletividade.

A cerâmica14 surge, assim, desse encontro: o ser humano de 10.000 a 6.000 a.C., em seu exercício cotidiano de existência, contra seu entorno hostil, enquanto buscava proteção e calor preparando a terra para abrigar o fogo tribal que os aquecia e afugentava os animais ameaçadores, encaminhava o surgimento de uma nova matéria sem ter consciência desse advento. Consequentemente, pela ação do acaso, uma matéria diferente pôde ser identificada, no buraco feito na terra para a fornalha, após a fogueira apagada. A terra havia ali se transformado, permanentemente, e não mais se desagregava com o efeito da água. Esta é possivelmente, segundo Emmanuel Cooper (1987, p. 14), a hipótese mais viável para a descoberta da cerâmica. Este material acompanha, a partir daquele momento do neolítico -até os dias atuais, todo o percurso civilizatório da humanidade.

Desde então, a argila, terra fina e plástica, modelada, cozida e transformada em cerâmica, abriga a vida e a morte dos humanos e participa dos eventos de seu cotidiano.

14 Para grande parte das sociedades indígenas da América a cerâmica surge do combate entre as forças do céu e

da terra (forças aquáticas ou do mundo subterrâneo) com que o homem, testemunha passiva, acaba sendo acidentalmente beneficiado: “A idéia de que o oleiro ou a oleira, e os produtos da sua indústria, têm um papel de

mediadores entre as forças celestes de um lado e as terrestres, aquáticas ou octonianas, por outro, faz parte de

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Para a celebração dos ritos de fertilidade, agradecimento e perdas - considerados, por alguns estudiosos a despeito de outros15, possíveis primeiras manifestações germens de uma expressão teatral, ainda não contextualizada como espetáculo - elementos simbólicos e cênicos eram utilizados como figuras votivas, muitas vezes modeladas com a matéria plástica em questão.

Figura 2 – Vênus de Dolni Vestonice16, de 29000-25000 anos a.C.

Fonte: Museu Morávia em Brno, República Checa. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Vestonicka_venuse_edit.jpg>.

Da mesma maneira, com a invenção dos novos meios do habitar17 e a confecção de formas utilitárias (para conter os grãos, as sementes, os líquidos e o fogo sagrado), a argila e a cerâmica estão em cena para garantir a vida.

15 Para muitos historiadores, a expressão teatral é derivada do sentimento religioso das culturas, opinião da qual

discorda Nikolai Evreinov (1956), que acredita no instinto de transfiguração do ser humano, instinto de opor às imagens recebidas do exterior do ser, aquelas criadas arbitrariamente dentro de si, instinto estético e pré-religioso que se revela naquilo que este autor denomina teatralidade. “Os historiadores e os estetas têm afirmado

que o teatro surgiu das cerimônias religiosas e dos ritos [...] da mesma forma se tem dito que as origens do teatro têm alguma relação com as tendências coreográficas do homem primitivo [...]. Isto não impede de manter-me em minha opinião de que todas estas explicações devem ser rechaçadas e esquecidas. (1956, p. 35, tradução nossa).

“Los historiadores y los estetas han respondido que el teatro surgió de las cerimonias religiosas y de los ritos

[...]. igualmente se ha dicho, que los orígenes del teatro tiene alguna relación con las tendencias coreográficas del hombre primitivo [...]. Ello no me impide mantenerme en mi opinión de que todas estas explicaciones han de

ser rechazadas y olvidadas”. 16

Provavelmente até hoje a mais antiga peça feita com argila e queimada em fogueira a céu aberto

17 Com o surgimento da construção de moradias com o uso do adobe, mescla de barro e fibras vegetais,

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Por outro lado, a história mostra o uso quase universal da cerâmica nas sepulturas. A morte, assim, tem seus rituais favorecidos com o uso dos produtos da terra modelada e transformada pela ação humana aliada à do fogo, dando lugar à criação das urnas de cerâmica.

Com o uso dos objetos cerâmicos, a terra recebe o próprio corpo do ser humano ao findar seu processo biológico, quando então é a ela, terra, devolvido, muitas vezes, guardado e vestido de cerâmica, como são, em meio aos muitos casos, na história, os das urnas funerárias de inúmeras civilizações e, de forma única na história da cerâmica, as tangas de cerâmica da Cultura Marajoara, povo que nos deixa grande legado plástico nesta arte, ao norte do Brasil, na Ilha de Marajó.

Figura 3 – Tangas de cerâmica pintadas com engobe.

Fonte: Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <http: //www.museunacional.ufrj.br/exposicoes/arqueologia/tangas>.

Nota-se que a terra possui em si, simbolicamente, o duplo sentido da possibilidade de o homem viver e morrer. Como ela, o pote de cerâmica também guarda em seu bojo a vida e a morte, sendo fácil admitir para ele uma forte analogia com o princípio feminino por suas funções de conter, preservar, proteger, receber e “dar à luz” (no sentido de deixar aquilo, que ali está contido, ir para fora).

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Observo a partir da história da cerâmica (COOPER, 1987) o fato de que, em praticamente todas as culturas, o ser humano, em sua relação com a terra, desenvolveu modos semelhantes de trabalhar o barro, formas que se aprimoraram com a criação das técnicas da modelagem e construção com a argila. É impressionante que culturas tão diversas tenham acabado por encontrar soluções tão semelhantes, em alguns casos, iguais, para trabalhar a argila e formá-la, como por exemplo, o uso do acordelado.

Os próprios formatos tradicionais da cerâmica, ligados ao utilitário, se repetem com algumas especificidades que vão caracterizar os estilos de cada povo, mas, basicamente, o pote, por exemplo, aconteceu em todas as culturas, as cuias, os pratos. Até mesmo as decorações, ricas e diversas, segundo cada cultura, começam com as mesmas ações e encaminhamentos formais, o mesmo tipo de decoração e revestimento: bandas circulares e engobes18, respectivamente.

Daniel Rhodes (1978, p. 230-231) defende a ideia de que o corpo humano é a fonte para muitas das formas dos objetos utilitários da cerâmica e diz que, até certo ponto, os potes assumiram a forma de quem os fez, sendo, certamente, projeções antropomórficas. Se observarmos o pote, podemos ver relações com partes do corpo humano – tronco, ventre e pescoço –, a cuia, com as mãos unidas no ato de conter algo, alças se parecem a braços, bicos a pênis. Também é comum, por exemplo, usarmos expressões como “a boca do pote”. Diante dessas relações, torna-se mais fácil compreender a semelhança desses objetos ao redor de todo o mundo e sua incansável e repetitiva aparição em tempos e locais diversos. É o ser humano, com suas necessidades, a fonte do nascimento das formas e funções da cerâmica. Penso que esses resultados são intrínsecos ao material combinado com as intenções e necessidades subjetivas e concretas dos seres que o modelam:

Há uma surpreendente identidade entre a cerâmica feita em lugares e épocas extremamente distantes. As formas parecem ter se desenvolvido a partir das camadas mais profundas da consciência humana [...]. As formas surgiam de uma espécie de consciência de grupo ao invés de ser individualizada, pessoal e excêntrica. A essência da forma que tanto admiramos no trabalho primitivo vem de uma pureza de intenções do ceramista e de sua confiança nas antigas tradições. (RHODES, 1978, p. 230, tradução nossa). 19

18 Diz respeito à primeira decoração pintada registrada na história da cerâmica. Tipo de tinta feita com a própria

argila liquefeita podendo ser colorida com os colorantes minerais à base de óxidos metálicos e cujos primeiros objetos foram encontrados na região da Anatólia e datados em torno de 6000 anos a.C.

19There is an amazing correspondence between pottery made in widely separeted places and times. The forms seemed to have developed out of deep layers of human consciousness [...].

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Essas ações intencionadas por homens e mulheres deixam seus rastros impressos nos objetos de cerâmica, dos utilitários aos poéticos. Então, é uma série de gestos que se repetem desde o primeiro longínquo encontro das mãos humanas com o barro até os dias atuais, seja para a construção de objetos úteis ou na produção de trabalhos de arte. Esses gestos se repetem aqui e acolá e parecem ser consequência das próprias possibilidades do corpo humano em inter-relação com a argila.

Essa performatividade vai se repetir novamente nas performances que usam a argila e/ou a cerâmica, ou nas que pretendem mostrar as ações desse fazer, estudadas nesta tese, isto é, a execução destas mesmas ações faz parte da construção das imagens e cenas que incitam uma viagem ao imaginário.

Esses gestos podem parecer anacrônicos. Embora o anacronismo na história seja considerado por muitos historiadores o pecado maior, a intrusão de uma época na outra, para Georges Didi-Huberman torna-se também uma aporia, pois ele estabelece nesse caso a mesma relação que faz para o pecado original, o qual é considerado como a fonte do conhecimento (2006, p. 33).

De acordo com Georges Didi-Huberman (2006), não somente torna-se impossível conhecer o presente ignorando o passado, como, também e da mesma forma, é impraticável conhecer o passado sem olhar para o presente e apoiar-se nele. Somente assim conseguimos propor questões para compreendermos a história e seus momentos presentes e pretéritos, deslocados e reunidos numa montagem. O autor afirma que voltar ao passado só se faz com nossos atos de conhecimento que estão no presente e vê os objetos de arte, que sobrevivem a longos períodos, como uma organização sutil de anacronismos, “fibras de tempos entremeados, campo arqueológico a ser explorado e decifrado” (2006, p. 34-35).

A humanidade é múltipla e inconstante, posto que é constituída por seres finitos, mas dura no tempo e, por isso, revela a similitude entre um ser humano e outro, o que quer dizer que não somos estranhos aos homens do passado, mas seus descendentes e seus semelhantes.

Penso ser impossível seguir o caminho sem essa mirada retrospectiva, pois, como muito bem escreve Friedrich Nietzsche, quão ambivalente é o sentimento que temos por nosso conhecimento diante da totalidade da existência (1978, p. 194). Se meu conhecimento é para mim maravilhoso e novo o que seria de mim sem tudo o que anterior a mim me precede? A esse respeito Nietzsche segue e confessa:

Imagem

Figura 2 – Vênus de Dolni Vestonice 16 , de 29000-25000 anos a.C.
Figura 3 – Tangas de cerâmica pintadas com engobe.
Figura 4 – Celeida Tostes: Amassadinhos e Gesto Arcaico s/d.
Figura 7 – Paso Doble  – Tomada geral, vista frontal
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Referências

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