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CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA SALA DE LEITURA E SUAS

3.2 A Sala de Leitura: aspectos gerais e a rotina de funcionamento

3.2.3 Eventos de Letramento e a sexualidade na Sala de Leitura

No mapeamento dos eventos de letramento criados pelos alunos ficou evidente a necessidade de abordamos as escolhas discentes de livros de não ficção que tratam de questões sobre sexualidade, uma vez que elas apareceram por diversas vezes no diário de pesquisa. As referências ao sexo ou a nudez, temáticas ausentes da discussão no currículo escolar, estiveram presente diretamente nas escolhas de alguns alunos e alunas por meio de livros relativos ao tema. De maneira indireta, tal temática também emergia na leitura de livros que traziam informações das culturas indígenas ou nos livros de relatos - como o dos irmãos Villas Boas - que continham fotos de índios desnudos.

Uma outra constatação foi que, apesar das leituras de alguns alunos mostrarem um interesse leitor por livros de não ficção (especialmente temáticas que tratam de maneira direta ou indireta a sexualidade), não existiu um tratamento do tema no âmbito do projeto didático autoral que conduzi com os alunos do 4° ano. Ainda que houvesse essa possibilidade e disponibilidade, diante da existência de livros no acervo e das condições favoráveis de exercer um planejamento docente de maneira mais flexível, a minha preocupação referente aos temas e gêneros a serem desenvolvidos nas aulas não contemplou esse assunto. O foco principal do planejamento foram gêneros da esfera literária e jornalística. Além da existência de um modelo cultural que incentiva a circulação de textos literários na escola, sobretudo na SL, podemos constatar que essa questão possui outros fatores determinantes. “Uma das razões prováveis é o próprio fato de que há ainda pouca investigação sobre sexualidade nas escolas brasileiras de ensino fundamental e médio” (MOITA-LOPES, 2002, p. 99).

Diante dessas questões, e com base no levantamento dos eventos de leituras discentes, optamos por destacar aqui um evento relacionados a essa temática, a partir dos registros do diário de pesquisa. Discutiremos um episódio de análise que contem eventos interligados, para indicar aspectos da manifestação desse evento de letramento durante as aulas na SL. Em seguida, a análise será aprofundada no intuito de compreender as práticas de letramento que sustentam os usos que os sujeitos fazem da escrita em contexto escolar.

Considerando o projeto didático autoral docente, o episódio em questão ocorreu na aula 0269, em que se iniciaria uma sequência de atividades de leitura que tinha como objetivo

promover o contato dos alunos com uma obra considerada um clássico da literatura ocidental: “Dom Quixote”, escrita em 1605 pelo espanhol Miguel de Cervantes. Era uma aula em que inicialmente eu leria alguns trechos de uma adaptação desse livro feita pela escritora Ana Maria Machado70 e, posteriormente, os alunos leriam, em voz alta, trechos de uma versão em

cordel desse livro71. Em relação à ambientação, a SL estava com tapetes de EVA no chão para

os alunos sentarem. Os trechos do diário de pesquisa referentes a essa aula mostram alguns elementos da dinâmica discursiva da aula:

[...] Segurei os alunos na porta, deixando apenas as meninas entrarem e se acomodarem, sendo que os meninos entraram logo em seguida. Deixei esse momento mais para familiarização deles com o ambiente, e fui fazendo a chamada, percebendo o ritmo dos alunos. Já nesse momento inicial, tive duas ocorrências com alunos. A primeira foi com os alunos Gustavo e Leonardo que estavam se chutando, e me forçaram a pedir que parassem com aquilo. A outra ocorrência foi com o aluno Leandro, que estava aproveitando o tapete de EVA, para provocar alguns meninos e poder utilizar o EVA como uma espécie de tatame. Eu acabei por retirá-lo do tapete e o coloquei sentado sozinho numa mesa. Depois de terminada a chamada, sentei-me no chão com os alunos, e fui remanejando alguns alunos que estavam conversando, na tentativa de neutralizar as conversas para iniciar a aula. A minha primeira ação, no sentido de direcionar a atenção deles para a leitura do dia [...] [...] Durante a minha leitura, havia uma movimentação paralela de alunos na Sala de Leitura. Alguns estavam olhando as prateleiras de livros, como a Vanessa e o Leonardo, outros lendo HQs, como o aluno Denis, outros conversando. Enfim, sempre há uma movimentação marginal ao foco da aula [...] [...] O aluno Leandro, que eu tinha deixado fora do tapete de EVA, pegou um livro de ciências sobre sexualidade e colocou o livro em pé, sobre sua mesa, com as páginas que mostravam o corpo de uma menina e de um menino abertas. Era nítida sua intenção de rebeldia por conta de eu ter tirado ele do meio dos colegas, e o ter isolado [...] (DIÁRIO DE PESQUISA DO 4° ANO, Aula 02).

No trecho do diário percebemos a referência a uma valoração negativa desses eventos de letramento, pois eu os nomeei como uma “movimentação marginal”, fora do foco da aula. Destacaremos aqui o evento de letramento protagonizado por Leandro, em que expõe um livro com ilustrações de corpos feminino e masculino.

69 Nesse momento da coleta dos dados, ainda não utilizava o gravador de voz que veio a ser incorporado a partir da aula 03. Dessa forma, nos baseamos apenas nos registros do diário de pesquisa para recompor esse episódio de análise.

70 MACHADO, Ana Maria; PORTINARI, Cândido. O cavaleiro do sonho. Brasiliense, 2010. A obra compõe o acervo da SL enviado pela SME.

71 VIANA, Klévison. As aventuras de Dom Quixote em versos de cordel. Cultura: 2011. O livro compõe o acervo da SL enviado pela SME.

O livro referido se intitula “Primeira vez”72, e foi escrito por Jairo Bauer, que é médico e

desenvolve trabalhos relacionados à sexualidade humana. A obra é ilustrada pelo cartunista Adão Iturrusgarai. Essa publicação faz parte de uma coleção infanto-juvenil que aborda questões de sexualidade para adolescentes, compondo o acervo dos livros de Ciências da SL. No livro, o autor toca em assuntos como a primeira relação sexual, beijos entre os jovens, questões de saúde, tabus etc, sendo que a escrita com estilo de divulgação científica busca transmitir a sensação de um bate papo entre o leitor juvenil e o autor.

No registro do diário de pesquisa, esse evento específico aparece como um possível ato de enfrentamento da autoridade do POSL. Também podemos sugerir que está em evidência a tentativa de Leandro em resistir às relações de poder que estão presentes ali, já que que expõe o livro com imagens aos colegas, confrontando a posição que foi relegada a ele pelo POSL. No momento inicial da aula, Leandro foi isolado do grupo, pois fazia uso do tapete de EVA de maneira distinta ao que preconizava o projeto didático autoral da aula.

O isolamento de Leandro ocorreu na etapa de Abertura da aula, quando os alunos se apropriam do espaço da SL. A exposição das ilustrações dos corpos femininos e masculinos ocorreu durante a etapa de Desenvolvimento no momento em que eu lia trechos do livro “O cavaleiro do sonho”. No registro do diário de pesquisa não consta o que foi feito após o aluno exibir as ilustrações, pois descrevo as outras etapas da aula. A ação do aluno pode ser compreendida aqui como uma prática de letramento de oposição ao projeto didático autoral docente, seja com a intenção de enfrentamento, mas também como um compartilhamento da descoberta das ilustrações, uma vez que essa temática desperta a atenção dos alunos. Ao expor um livro de não ficção para a turma de forma voluntária, o aluno Leandro se insere nesses eventos que ocorreram ao longo do ano letivo e que se constituíram como um aspecto da dinâmica discursiva existente nas aulas de SL com o 4° ano. O evento decorre do gerenciamento da aula pelo POSL e dos eventos criados voluntariamente pelos alunos a partir das condições postas por aquele ambiente, que possui uma variedade de artefatos da cultura escrita, como os livros de ficção e não ficção. Ao isolar o aluno dos colegas, no início da aula, minha intenção era que ele interrompesse a mobilização dos alunos para o uso dos tapetes de EVA como tatames. Entretanto, ao se ver em contato com o livro que estava sobre a mesa, sua atenção se voltou para a leitura de uma temática distinta da leitura literária que estava sendo proposta para aquela aula. A escolha de Leandro poderia ser uma tentativa de mostrar um

72 BAUER, Jairo. Primeira vez. Panda Books: São Paulo, 2006. O livro faz parte da composição do acervo da SL enviada a escola pela SME.

assunto de seu interesse, que entrava em “confronto” com a minha escolha de iniciar o ano letivo com leituras literárias que dialogam com uma obra clássica da literatura ocidental. O objetivo do projeto didático autoral docente era atender uma expectativa de trabalho com a leitura literária, que se justifica diante de uma prática de letramento legitimada na esfera escolar (especialmente na SL), que é a leitura literária de obras clássicas. Tratando de práticas de letramento não-oficiais e oficiais na escola, Rocha (2009, p. 17) constata a prevalência das práticas dominantes e explicita questões decorrentes disso, tais como: “ [...] ao limitar cada vez mais a sua visão de letramento, a escola torna invisíveis práticas não-oficiais e das quais os (as) jovens amplamente participam”. No caso do Leandro, observamos a existência desse tipo de prática não-oficial na qual os alunos e alunas se engajam. O aluno possuía uma prática de leitura de textos não ficcionais, e que contemplava a interação com seus colegas. A análise dos eventos permitiu que identificássemos essa prática de letramento de leitura de textos não literários.

Vale retomar as questões de Moita-Lopes, que pesquisou como os alunos aprendem a fazer sentido da sexualidade em ambiente escolar. Na análise dos dados, o pesquisador conclui que apesar de os alunos não encontrarem espaço para tratar da questão, no contexto institucional, nem na interação com a professora, “[...] há ampla evidência (...) de que estão constantemente falando sobre essa questão na escola quando os professores não estão por perto. Em outras palavras, o currículo oculto está certamente incluindo questões relativas à sexualidade e, em particular, ao homoerotismo” (MOITA-LOPES, 2002, p. 122).

A pesquisa de Moita-Lopes revela a relevância da questão da sexualidade nas vidas dos alunos, assim como a existência de significados conflitantes sobre tal temática. No entanto, na recusa em se abordar a temática da sexualidade, os agentes escolares estão implicitamente colaborando para tornar a sexualidade invisível em sala de aula (MOITA-LOPES, 2002). Nesse sentido, podemos apontar que no contexto situado de nossa pesquisa, tal temática também esteve presente em vários momentos do 4º ano, mas não foi considerada legítima de ser trabalhada durante as aulas, sendo que tal situação evidenciou a ocorrência de uma das situações de tensão e conflito entre o projeto didático autoral docente e as leituras voluntárias dos discentes.