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CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA SALA DE LEITURA E SUAS

3.2 A Sala de Leitura: aspectos gerais e a rotina de funcionamento

3.2.2 As leituras voluntárias dos alunos

Trataremos aqui dos eventos de letramentos criados de forma voluntária pelos alunos, ao longo do ano letivo em diferentes aulas e que foram categorizados como leituras voluntárias dos alunos. No processo de identificação das leituras dos alunos, percebemos que elas eram marcadas por interesses específicos, como a leitura de HQs e também pela imprevisibilidade, pois ao sentarem nas mesas da SL, encontravam livros e revistas que eram lidos em razão daquele encontro não previsto.

Esses eventos de letramento, que foram registrados no diário de pesquisa abrangem leituras de livros literários, livros não literários, revistas, HQs e mangás. Foram momentos de leitura em que eles se engajaram de maneira independente, afastando-se das minhas proposições de atividades de leitura. Os eventos de letramento criados pelos alunos e alunas expressam a existência de um interesse em leitura que não se coaduna ao nível das prescrições presentes na SL, como a demanda por se trabalhar com gêneros textuais específicos, ou mesmo a adequação aos meus objetivos quando executava sequências de atividades de leitura. A dinâmica discursiva das aulas pressupunha ainda uma ambivalência de permissividade e tentativa de controle desses eventos, baseada nas minhas concepções sobre o quê era permitido ler e como essa leitura poderia ser realizada na SL

Uma constatação significativa e que acabou por orientar aspectos da análise foi a recorrência de leituras de não ficção que tematizavam a sexualidade, seja por meio de livros que tinham essa finalidade, como uma coleção destinada à educação sexual64, ou até mesmo

narrativas literárias que continham ilustrações e imagens de índios brasileiros com o corpo exposto. Através do mapeamento da dinâmica discursiva das trinta e três aulas (cf. Apêndice B), conseguimos contabilizar nove aulas (Aula 02, Aula 03, Aula 06, Aula 14, Aula 16, Aula 18, Aula 20, Aula 22 e Aula 24) em que registramos onze eventos de leituras discentes que fazem menção ao tema da sexualidade.

Pudemos perceber que no diário de pesquisa, os eventos de letramento de leituras voluntárias criados pelos alunos ao longo das aulas foram geralmente categorizados como: “leituras aleatórias”, “leituras marginais”, “microeventos” e “leituras paralelas”. Evidentemente que essas diferentes formas de nomeação acabam por revelar algumas concepções sobre o ato de ler na SL.

Inicialmente, no mês de fevereiro, as primeiras referências a esses eventos de letramento voluntários foram nomeados de “leituras marginais”. Ao realizarem leituras de textos de seu interesse, diferentes dos textos propostos por mim, havia a compreensão de uma certa “marginalidade” das leituras discentes. Essa percepção pressupunha um evento central, mobilizado pelo POSL, que coexistia com eventos “marginais”, os quais tinham um caráter distinto a saber: eles não podiam ser impedidos, entretanto não se adequavam ao que estava estabelecido no projeto didático da aula. A título de exemplo, trazemos um trecho do diário de pesquisa em que destacamos a utilização da nomenclatura de ‘leituras marginais’:

[...] Outro aluno, o Denis, o qual tinha sido advertido no início da aula, pegou um livro de dragões e ficou sentado num canto lendo o livro quase a aula inteira, outros dois alunos ficaram sentados numa mesa em que eu tinha deixado alguns livros e revistas de mangá. Ainda que eu tivesse uma proposta de aula, com uma indicação de leitura a ser feita por mim, pude perceber que em concomitância a minha leitura, que tinha de abarcar a maioria dos alunos ali presentes, a Sala de Leitura permitiu a ocorrência de outras práticas de leitura, marginais frente à aula, mas que atendiam expectativas e interesses particulares de alguns alunos. Fico pensando se deveria ter cobrado a participação desses alunos que se dispersaram pela sala para ler outras coisas, ou então de como seria se todos ali pudessem realizar suas leituras, sem a interferência docente. Esse acompanhamento que fiz das leituras marginais também não pode ser validado por inteiro, pois em primeira instância eu estava com a atenção voltada para a leitura que eu realizava, e não podia me deter mais concentradamente nesses alunos que não estavam participando da aula, pelo menos da maneira como eu a idealizei [...] (DIÁRIO DE PESQUISA DO 4°ANO, AULA 01).

Ao interpretar e significar essa prática de letramento escolar como “leituras marginais”, ou seja, leituras ocorridas a margem da aula, expresso uma apreciação negativa de leituras no meu projeto autoral. O trecho do diário revela a minha percepção da primeira aula do ano letivo com essa turma em que as leituras voluntárias dos discentes não foram compreendidas como participação dos alunos na aula., Era uma prática de letramento – leitura de materiais impressos não indicados pelo PSOL - que ocorria, mas que não era percebida como constitutiva como da dinâmica discursiva da sala de aula.

Antes da realização da pesquisa não havia uma preocupação específica com esses eventos de letramento que ocorriam durante as aulas e apontam para uma prática específica de leitura para alguns sujeitos na escola. No entanto, ao desempenhar o papel de professor pesquisador, em que eu exercia uma reflexão constante do funcionamento da SL, tornou-se mais consciente

a existência concreta desses eventos. Durante a coleta dos dados e a sua posterior análise ficou bastante sinalizado a relevância desses eventos. Os estudos do letramento e pesquisas sobre a interação em sala de aula nos auxiliaram a compreender tais eventos enquanto práticas sociais de letramento (especificamente de leituras de impressos) num contexto situado de sala de aula. Moita-Lopes (2001), a partir de uma visão sociointeracional, reflete sobre ações padronizadas na prática educacional que poderiam parecer sem importância ou interesse, mas que, no entanto, podem fornecer meios de revelar aspectos da cultura de um grupo. Nessa perspectiva de análise: “isso quer dizer que o significado e o conhecimento na escola são construídos pelos participantes nesse contexto social: professores e alunos, que estão, assim, construindo a cultura escolar” (MOITA-LOPES, 2001, p. 163).

Essa questão levantada por Moita Lopes (2001), da construção conjunta feita por professor e alunos, dialoga com a nossa perspectiva de que a dinâmica discursiva da SL pode ser melhor compreendida se levarmos em consideração, pelo menos, a ocorrência de eventos construídos por alunos e pelos eventos criados pelo POSL, a partir de textos, que servem de base para interações diversas naquele espaço e tempo. O autor indica ainda que existe uma tradição nas práticas interacionais de que há um controle dos professores sobre os alunos durante as aulas. “Esses padrões correspondem ao que tipicamente entende-se como caracterizando a cultura escolar: os alunos estão interacionalmente limitados aos papéis que os professores lhes permitem desempenhar” (MOITA-LOPES, 2001, p. 165). Na microanálise etnográfica feita por ele numa aula de leitura de língua materna, com turma de 5° série, constata-se que existia um padrão de interação mantido pelos alunos que rompia com esse padrão de interação assimétrico, no qual o professor limita a ação dos discentes. Em certo sentido, a observância das leituras discentes nas aulas do 4° ano tem esse caráter de rompimento com um padrão assimétrico de interação na SL.

No decorrer do ano letivo, identificamos que essa categorização acerca desses eventos foi se alterando, assim como a maneira de percebê-los e registrá-los no diário de pesquisa.

No mês de abril, encontramos os mesmos eventos nomeados como “eventos paralelos”, o que denotava uma compreensão mais alargada da dinâmica da SL. De certa forma, enquanto professor-pesquisador, ficava explícita a demanda de alguns alunos e alunas por leituras que não se enquadravam as minhas expectativas docentes. Na aula 10, constava no seu planejamento a leitura do livro “Mitos e Lendas do Brasil em cordel”65, pois eu estava

65 LONGOBARDI, Nireuda. Mitos e Lendas do Brasil, em cordel, São Paulo: FTD, 2010. O livro fazia parte de acervo inicial enviado pela SME para a SL.

desenvolvendo uma sequência de aulas com lendas e histórias de folclore. Naquele dia, os alunos iriam realizar a leitura compartilhada, em voz alta, de trechos do livro. No registro da aula no diário de pesquisa, que transcrevemos abaixo, se constata a ocorrência das leituras discentes. Também trazermos um registro fotográfico da aula, que permite a visualização de vários eventos que revelam a prática de letramento dos alunos – leitura voluntárias de materiais impressos:

[...] Durante a aula três alunos, Denis, Vanessa e Maiara ficaram entretidos com um livro de arte66 que eu tinha deixado sobre a mesa. É um livro enorme, com muitas imagens de quadros, tem alguns nus, que chama a atenção deles. Esses alunos ficaram por volta de uns trinta minutos com esse livro na mesa, mas não consegui verificar quais foram as impressões deles e nem o que os atraiu nele. Esse foi um dos eventos paralelos à aula [...] (DIÁRIO DE PESQUISA DO 4°ANO, AULA 10).

Figura 15 – Leituras discentes (AULA 10).

O evento descrito no diário pode ser visto na figura 15, sendo que os referidos alunos se encontram na mesa com toalha vermelha. É interessante notar que no registro do diário apenas se encontram esses três alunos, mas que, no entanto, ao observamos a fotografia, vemos outros eventos semelhantes na mesa ao lado e nas cadeiras. No diário, nota-se que a preocupação adjacente acerca impossibilidade de verificar a impressão dos alunos sobre o livro. No exemplo transcrito da aula 01, estava presente uma preocupação de teor regulatório de minha parte, destoando da aula 10 em que meu interesse abarca a interação de Denis, Vanessa e Maiara com o livro.

Ainda que se trate de contextos distintos, as questões levantadas por Moita-Lopes em sua pesquisa nos trazem elementos para refletir sobre as leituras discentes voluntárias, as quais

estiveram presentes em uma quantidade significativa de aulas do 4° ano na SL. Temos que há a ocorrência de um padrão de interação dos alunos que se constitui como parte das aulas, e se configura como uma prática de letramento escolar (muitas vezes invisíveis) em que a principal atividade é ler o que não é sugerido ou demandado pelo docente em sala de aula. Reconhecendo que a resistência dos alunos a um padrão assimétrico de aula não é exclusivo de nosso contexto situado, temos que nas aulas do 4° ano existiu uma prática de letramento de leitura voluntária de textos impressos que mais atrativos do que os textos impressos que constituem o meu projeto didático autoral.

Ao continuar a examinar os registros do diário de pesquisa, encontramos o termo “microevento” no mês de setembro (Aula 24) e em outubro (Aula 29), identificamos o registro “eventos paralelos”, sendo que nesse momento, minha compreensão parece distinta do início do ano letivo. A mudança dos termos sugere uma alteração do modo de compreender tais eventos no âmbito do planejamento e da interação com os alunos. Na aula 29, havia a intenção de garantir o acesso dos alunos a esfera literária em verso, por meio de minha leitura de poema do livro “Histórinhas em versos perversos” 67e a leitura de uma versão

em cordel do conto “João e o pé de feijão”68 pelos alunos. Naquela aula havia um recurso

diferente: levei um amplificador e um microfone para a SL, sendo que minha intenção era potencializar a questão da oralidade. Os alunos realizariam a leitura compartilhada do livro, por meio do uso do microfone. No registro do diário de pesquisa, constata-se a leitura voluntária discente, feita por uma aluna. Podemos perceber isso na seguinte transcrição do diário:

[...] Durante todo esse momento ocorriam eventos paralelos. Havia uma mesa em que dois meninos faziam pulseirinhas. A Suelen lia histórias em quadrinhos. Numa mesa meninos conversavam. Havia muitos eventos ocorrendo[...] (DIÁRIO DE PESQUISA DO 4°ANO, AULA 29).

Também é possível visualizarmos esse evento por meio das figuras da Aula 29:

67 DAHL, Roald. Histórinhas em versos perversos. São Paulo: Moderna, 2007. 68 OBEID, Cesar. João e o pé de feijão em cordel. São Paulo: mundo mirim, 2009.

Figura 16 – Visão geral da SL (AULA 29).

Figura 17 – Leituras discentes (AULA 29).

Na figura 17 podemos ver a aluna Suelen lendo uma HQ da Turma da Mônica, sendo que ela está com vários exemplares sobre o colo. Ao fundo da sala, vemos alunas nas mesas, mas que estavam com o livro a ser lido naquela aula. Mesmo que a aula contasse com um recurso diferente para a leitura do livro de cordel, tivemos a prática de letramento da aluna, que opta por outro tipo de leitura, HQs da Turma da Mônica. A aluna opta por se afastar da leitura comum para todos e lê outro tipo de texto impresso disponível na SL. Ressalta-se que atrás dela se encontra um expositor com vários exemplares do livro que continha a versão em cordel do conto “João e o pé de feijão”. Enquanto tempo e espaço de leitura na escola, a SL propicia o contato dos alunos e alunas com textos impressos que se imbricam a outros valores e interesses distintos daqueles preconizados pela leitura escolarizada.

O mapeamento dos eventos que compuseram a dinâmica discursiva das aulas de SL possibilitou que identificássemos os eventos de leituras voluntárias de determinados impressos (livros, enciclopédias, gibis) que constituem as práticas de letramento dos alunos do 4° ano. Adiante discutiremos outro evento com ocorrência relevante no decorrer das aulas.