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Evidências psicométricas sobre o Questionário Desiderativo

V. DISCUSSÃO

V.3. Evidências psicométricas sobre o Questionário Desiderativo

Embora amplo e de difícil implementação, o terceiro objetivo específico deste trabalho procurou sistematizar indicadores de precisão e evidências de validade do Questionário Desiderativo enquanto instrumento adequado e cientificamente fundamentado para auxiliar

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processos de avaliação psicológica no campo da Psicologia Judiciária no Brasil, especificamente no âmbito dos processos de adoção. Nesse momento, portanto, focalizar-se-á análise do material obtido mediante as avaliações psicológicas realizadas buscando evidenciar as qualidades técnicas e psicométricas dos instrumentos (sobretudo do Questionário Desiderativo).

É relevante reiterar que, no presente estudo, buscou-se empreender esforços para aprimorar a codificação das respostas ao Questionário Desiderativo, recorrendo-se à estratégia de Análise de Conteúdo por experts (Urbina, 2007). Esta iniciativa procurou responder a dificuldade técnica identificada em estudo anterior (Guimarães, Pasian & Loureiro, 2008) com este método projetivo, onde ficou clara a necessidade de revisar a sistemática de análise referente aos mecanismos de defesa. O objetivo foi disponibilizar, no material de análise do Questionário Desiderativo, alguns mecanismos de defesa para que o psicólogo assinalasse a presença ou ausência nas respostas ao instrumento.

Neste intuito foi possível delimitar cinco mecanismos de defesa para serem incluídos no protocolo de codificação do Questionário Desiderativo, a saber: Negação, Idealização, Formação Reativa, Sedução e Sublimação. Referidas diretrizes analíticas foram aplicadas na codificação dos dados do presente trabalho, sendo, portanto, testada esta proposta avaliativa na análise do material produzido pelas participantes.

A classificação dos protocolos do Desiderativo, realizada por examinadores independentes, evidenciou altos níveis de concordância e adequada precisão das análises realizadas, inclusive na codificação dos mecanismos de defesa. Neste ponto, pode-se afirmar que foi possível avançar nos indicadores de precisão do Questionário Desiderativo em relação a estudos anteriores (Guimarães, 2007). Desse modo conseguiu-se aprimorar o processo de codificação dos mecanismos de defesa a partir desse método projetivo, sendo fornecidos parâmetros de classificação específicos para tal finalidade. Deste modo, os resultados obtidos na presente investigação contribuíram para reafirmar empiricamente bons indicadores de fidedignidade no processo de codificação das variáveis do Desiderativo, a partir dos fundamentos teóricos baseados na obra de Nijamkin e Braude (2000), conforme compilação apresentada em Guimarães, Pasian e Loureiro (2008).

Nas tentativas de aperfeiçoamento do processo de análise e interpretação do Questionário Desiderativo, os atuais achados chamaram a atenção para uma variável que ocorreu com elevada frequência nos três grupos de mulheres avaliadas: a ocorrência de falhas ao responder, ensejando a necessidade de induções de categorias de respostas durante a aplicação do instrumento. Mais especificamente, observou-se que a perseveração do reino

objeto foi um fenômeno presente na maioria dos casos avaliados, representando a principal causa de necessidade de indução no Desiderativo.

Este achado desperta-nos a necessidade de questionar o caráter técnico de “falha lógica” e “oposição às instruções”, tradicionalmente atribuído à necessidade de indução de respostas no Questionário Desiderativo, sobretudo ao se analisar a perseveração do reino objeto. Ressalta-se que as instruções da técnica fazem uso da palavra “objeto” para se referir à categoria de respostas do tipo inanimadas. Neste “reino objeto” do Desiderativo estão incluídas respostas com conteúdos vinculados a elementos da natureza, sentimentos, abstrações e demais elementos inanimados. No entanto, essa diversidade de classes de respostas dificilmente é considerada, no senso comum, como categoria “objeto”. Desse modo, é possível conjecturar que o respondente não estaria necessariamente se opondo às instruções nem cometendo falha lógica ou dissociativa ao perseverar o reino objeto (repeti-lo, porém com diferentes tipos de resposta). Diante destas considerações parece-nos forçoso relativizar o caráter de prejuízo no funcionamento lógico tradicionalmente atribuído às perseverações de reino objeto no Desiderativo.

Outra especificidade observada na totalidade das participantes deste estudo foi a ocorrência de maior tempo para processarem internamente o impacto das instruções, bem como maior frequência de falhas nas defesas instrumentais nas catexes negativas do Questionário Desiderativo. As participantes apresentaram maior facilidade para identificar, projetivamente, seus recursos de preservação da identidade (respostas às catexes positivas), reagindo com mais dificuldades para apontar elementos sentidos como desintegradores (respostas às catexes negativas).

Referidos achados reforçam a relevância de se atentar para estes dois conjuntos de catexes separadamente ao se analisar as respostas ao Desiderativo. Além do preconizado teoricamente acerca do significado diferenciado das respostas às catexes positivas e negativas (Nijamkin & Braude, 2000), a presente investigação apresentou comprovações empíricas destas especificidades, reforçando a necessidade de cuidados técnicos específicos para sua adequada interpretação.

Além dessas observações e reflexões específicas referentes a técnica implícita no Questionário Desiderativo, há que considerar os achados empíricos relativos às correlações entre os instrumentos de avaliação psicológica ora utilizados. Essas análises tiveram o objetivo de avaliar a existência (ou não) de associação entre variáveis de diferentes tipos de técnicas de exame da personalidade (de autorrelato e projetivas), ou seja, abordando construtos relacionados. Buscou-se, desta forma, identificar evidências empíricas de validade

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em relação ao Questionário Desiderativo aplicado em indivíduos adultos (no caso mulheres), conforme preconizado por Nunes e Primi (2010).

A análise inicialmente realizada, tomando por base o conjunto total de mulheres avaliadas nesta investigação, revelou associação positiva e significativa entre variáveis do Desiderativo associadas ao controle racional dos afetos com variável do Rorschach sinalizadora de repressão e inibição. Houve ainda resultados sugestivos de interligações entre os indicadores de mobilização emocional desses dois métodos projetivos de avaliação psicológica, reforçando sua fundamentação enquanto técnicas avaliativas de características da personalidade.

Correlações significativas negativas também foram encontradas entre variáveis sinalizadoras de maior controle lógico no Desiderativo e de menor produtividade no Rorschach (menor número de respostas). Houve correlações que mostraram que, quanto mais controle racional, conforme sua avaliação pelo Desiderativo, menores índices de mobilização afetiva no Rorschach. A interpretação conjunta destes achados reforça hipóteses psicodinâmicas que fundamentam ambos os instrumentos, caracterizando-se como evidências empíricas da validade do Questionário Desiderativo a partir do reconhecido valor técnico das variáveis da Escola Francesa (Escola de Paris) do Método de Rorschach.

A análise de correlações entre o instrumento projetivo Desiderativo e o instrumento de autorrelato Bateria Fatorial de Personalidade também trouxe resultados promissores em termos da verificação de convergências avaliativas entre estas técnicas. Nomeadamente, na análise realizada considerando-se o total das participantes (n=60), o Fator Neuroticismo da BFP mostrou-se positivamente associado com a capacidade de coordenar adequadamente ideias e afetos e, por outro lado, negativamente à utilização adequada da racionalização enquanto defesa instrumental no Desiderativo. Referidos achados mostram a influência dessas características de personalidade (neuroticismo) nos processos de adaptação psíquica (associação ideoafetiva) e no funcionamento lógico (uso da racionalização), como avaliados pelo Questionário Desiderativo. Constituem, portanto, indicadores positivos para sua validade, como detalhado nos resultados.

Diante do exposto, é possível afirmar que também entre Bateria Fatorial de Personalidade e Desiderativo houve associações estatisticamente significativas. Depreende-se, portanto, que apesar de se tratarem de instrumentos de natureza diversa (autorrelato e projetivo), ambos avaliam construtos relacionados, ou seja, características de personalidade, embora por meio de diferentes atividades e variados indicadores técnicos.

Outros estudos brasileiros também realizaram análises correlacionais entre variáveis de diferentes instrumentos com o objetivo de verificar indicadores de validade. Dentre estes, destaca-se o estudo de Xavier (2009), que investigou validade de critério por grupos contrastantes nas técnicas CAT-A, Rorschach e DFH, bem como estudo de precisão entre avaliadores. Já o trabalho de Vilemor Amaral e Cardoso (2012) buscou indicadores de validade convergente para a classificação do Tipo de Vivência no Zulliger, por meio de correlações com um indicador específico do Rorschach. A análise de correlação entre variáveis destes instrumentos revelou, nas referidas pesquisas, assim como ocorreu na presente investigação, evidências positivas de validade entre os instrumentos avaliados, dentro de suas especificidades analíticas.

Para além destes achados que, em seu conjunto, apontam para evidências de validade do Questionário Desiderativo, é relevante refletir sobre as peculiaridades que emergiram a partir destas análises de correlação, em cada um dos grupos de participantes. Muito embora não se constitua como um dos objetivos inicialmente propostos para a presente investigação, foi possível detectar diferenças nos pareamentos entre variáveis com correlações estatisticamente significativas em cada grupo de mulheres. Ou seja, em cada um dos grupos ora avaliados, as variáveis se associaram de maneira distinta.

Deste modo, é possível conjecturar que os instrumentos de avaliação psicológica, utilizados em conjunto, parecem ter possibilitado a identificação de diferenças entre os grupos em termos de processos psicodinâmicos da personalidade. Referidas diferenças não haviam sido detectadas anteriormente, ao se examinar as variáveis de cada um deles, isoladamente. O uso conjunto dos instrumentos revelou especificidades dos grupos no quesito processos psicodinâmicos, ou seja, todos estão adaptados ao ambiente, mas cada um a sua maneira. Analisando variáveis isoladas (comparando médias nas variáveis, por exemplo), não verificamos diferenças estatisticamente significativas, mas as correlações diferentes nos grupos apontaram estas especificidades.

Deste modo, muito embora os três grupos de participantes tenham refletido igualmente mulheres com desenvolvimento da personalidade compatível com a normalidade, sem marcas psicopatológicas ou de relevantes prejuízos no funcionamento adaptativo, houve peculiaridades em sua forma adaptativa à realidade. Assim, os grupos de participantes diferiram entre si em termos da utilização de recursos internos para regular a afetividade e, assim, adaptar-se ao meio.

Como exemplo desse achado pode-se apontar que, no grupo das pretendentes à adoção (G1), houve indicadores de que um relevante recurso adaptativo utilizado pelas mesmas foi a

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abertura e a valorização dos contatos com o outro, associada à expressão das emoções, fatores significativamente relacionados, neste grupo, à boa utilização da lógica e do raciocínio e também à diminuição da angústia. Por outro lado, este mesmo recurso (contato com o outro), foi mais frequentemente percebido como fonte de angústia pelas pretendentes à adoção, o que sinaliza ambivalência nos contatos por parte destas participantes.

Já no grupo das mães adotivas (G2), o raciocínio lógico e o uso da razão pareceram favorecidos tanto pela abertura aos contatos, como pela sensibilidade afetiva e exteriorização das emoções. Assim, para este grupo de participantes, tomar contato com seus sentimentos e expressá-los favoreceu a capacidade de pensar adequadamente, assim como a proximidade com outras pessoas. Além disso, o distanciamento em relação aos outros foi significativamente mais referido, projetivamente, como fonte de conflito e angústia, para as participantes mães (biológicas ou adotivas). Além disso, a utilização da Idealização enquanto defesa psíquica pareceu, neste grupo de mulheres (G2), funcionar de forma a, por um lado, diminuir a angústia, mas, por outro, a aumentar o nível geral de desconforto psíquico (trata-se de defesa primitiva, com base na negação da realidade).

Enquanto isso, no grupo das mães biológicas (G3), o raciocínio lógico em si não pareceu diretamente favorecido pela abertura aos contatos ou pela exteriorização das emoções. Por outro lado, maior sensibilidade afetiva, bem como a capacidade de coordenar adequadamente ideias e afetos, além da tendência a mostrar aos demais os sentimentos e pensamentos, mostraram-se associadas significativamente, neste grupo de mulheres, à diminuição da angústia, bem como à diminuição de inibições e bloqueios associativos.

Referidos achados refletem evidências empíricas de que os três grupos de mulheres, embora vivenciem igualmente nível suficiente e adequado de adaptação à realidade, possuem funcionamento psicodinâmico com características peculiares neste processo adaptativo. Sendo assim, possuem suas próprias marcas e recursos psicodinâmicos, que, ao menos na presente investigação, variaram conforme sua condição frente à maternidade.

Para além destas considerações, os presentes achados reforçam as recomendações da utilização complementar de diferentes instrumentos de avaliação psicológica (como uma bateria avaliativa) para adequada compreensão dos processos psicodinâmicos subjacentes ao funcionamento da personalidade dos indivíduos. Os resultados ora encontrados trouxeram evidências empíricas de que, juntos, os instrumentos puderam detectar peculiaridades na personalidade destes grupos de mulheres, funcionando conjuntamente de maneira complementar, enriquecendo, assim, o processo avaliativo.

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