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Exames de qualquer natureza não determinados por Lei – teste de HIV e

4. A CONCRETIZAÇÃO DA PRIVACIDADE NO AMBIENTE DE TRABALHO

4.1. Realização de testes e exames médicos

4.1.2 Testes e exames médicos

4.1.2.2. Exames de qualquer natureza não determinados por Lei – teste de HIV e

Outro enfoque deve ser dado à realização de exames de qualquer natureza não determinados por lei que são realizados em processos de seleção e durante ou após a execução do contrato de trabalho. Tais exames – como teste de HIV, exame para detectar a presença de substâncias ilícitas ou álcool – apesar de não obrigatórios por lei, são

praticados por alguns empregadores sob o argumento de serem necessários em razão da atividade desenvolvida pelo empregado.

A lei brasileira não veda de forma expressa esses exames, ao contrário do que estabelece a primeira parte do artigo 19.1 do Código do Trabalho de Portugal222, que afirma o princípio geral de que o empregador não pode, para efeitos de admissão e permanência do trabalhador no emprego, exigir do empregado a realização ou apresentação de testes ou exames médicos de qualquer natureza para a comprovação das suas condições físicas, salvo se decorrerem de situações previstas na legislação de segurança e higiene e saúde do trabalho. No entanto, a segunda parte do artigo 19.1 do mesmo diploma legal admite limitações a essa regra geral, desde que observados os seguintes requisitos: i) a finalidade do pedido de exames deve estar fundamentada na segurança do trabalhador ou de terceiros ou quando as exigências inerentes à atividade assim exigirem; ii) o empregador deve fornecer, por escrito, ao candidato ou trabalhador a fundamentação que justifica a realização do exame; e iii) a intermediação de um médico.

O artigo 20.4 do Estatuto de los Trabajadores possibilita a verificação particular pelo empregador, através de uma equipe médica, do estado de incapacidade ou lesão que é alegado pelo empregado para justificar a sua ausência ao trabalho, sendo que a recusa do empregado a se submeter a esse exame poderá suspender os direitos econômicos a que o empregado faria jus nessa situação.

A recente Recomendação 200 da Organização Internacional do Trabalho223 – que trata sobre a infecção do HIV no mundo do trabalho adotada pela 99ª Seção da Conferência Internacional do Trabalho, em 17 de junho de 2010 – estabelece que os

222Testes e exames médicos

1 - Para além das situações previstas em legislação relativa a segurança e saúde no trabalho, o empregador não pode, para efeitos de admissão ou permanência no emprego, exigir ao candidato a emprego ou ao trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das condições físicas ou psíquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a protecção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à actividade o justifiquem, devendo em qualquer caso ser fornecida por escrito ao candidato a emprego ou trabalhador a respectiva fundamentação.

2 - O empregador não pode, em circunstância alguma, exigir a candidata a emprego ou a trabalhadora a realização ou apresentação de testes ou exames de gravidez.

3 - O médico responsável pelos testes e exames médicos só pode comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a actividade.

4 - Constitui contra -ordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 ou 2.

223O inteiro teor da Recomendação 200 da OIT foi obtido em: INTERNATIONAL LABOUR

ORGANIZATION. Conferência Internacional do Trabalho. Recomendação 200. Recomendação sobre a infecção VIH e SIDA e o mundo do trabalho, adoptada pela Conferência Internacional do Trabalho na sua nonagésima nona sessão, em Genebra, a 17 de junho de 2010. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/recomendacao_200.pdf> Acesso em: 05 dez. 2010.

portadores de HIV, bem como os seus familiares, deverão ter a sua privacidade garantida, também não sendo permitido que o empregador obrigue qualquer trabalhador ou candidato à vaga de emprego a se submeter a teste de HIV. No entanto, ao mesmo tempo em que a Recomendação proíbe a imposição dos exames, determina que o empregador tem o dever de adotar medidas necessárias para a proteção de seus empregados que, em razão das atividades desenvolvidas, estão mais expostos aos riscos de infecção pelo vírus.

Pelo raciocínio da Recomendação em questão, é possível sustentar que os empregados que estão expostos, em razão das peculiaridades de suas atividades, a uma maior incidência ao vírus HIV, devem se submeter frequentemente ao exame para sua detecção, como medida de proteção da sua saúde. Atualmente, sabe-se que quanto mais cedo o vírus é detectado, maior a probabilidade de não manifestação da doença e de expectativa e qualidade de vida do portador do vírus. Desta forma, pela aplicação da própria recomendação da OIT é possível sustentar a possibilidade de submissão dos empregados ao teste do HIV em situações muito particulares, quando estas decorrerem do exercício do próprio contrato de trabalho, estando vinculadas à proteção de um bem maior, que é a preservação da saúde do trabalhador.

Por outro lado, a própria Recomendação 200 da OIT determina que os exames devem ser voluntários e que os dados desses exames devem ser tratados de forma a resguardar a privacidade do trabalhador, restando garantida a confidencialidade dos dados médicos dos empregados.

Em razão da omissão do legislador ordinário nacional em matéria de direito do trabalho, a doutrina e a jurisprudência têm utilizado a previsão constitucional para resolver casos concretos. Com relação a exames não obrigatórios por lei, a discussão doutrinária e jurisprudencial se dá, na maioria das vezes, com relação à realização de testes para detecção do vírus HIV ou exames toxicológicos, sendo que existe uma corrente que sustenta não ser possível a realização destes exames, por afrontarem a intimidade do empregado, e outra corrente que admite esse tipo de teste quando a natureza da atividade assim demandar.

Julio Manuel Vieira Gomes, por exemplo, apesar de fazer referência à legislação portuguesa, aceita a realização de exames toxicológicos em situações excepcionais, apresentando, com base na doutrina de John Craig, os seguintes princípios para que se considere lícito o teste:

em primeiro lugar, só os trabalhadores que desempenham funções em que exista um risco considerável é que devem ser sujeitos a testes. Além disso, há-de existir uma impossibilidade de supervisão (trata-se, por exemplo, de trabalhadores que trabalham tipicamente fora do estabelecimento ou de situações em que há uma razoável suspeita de que um determinado candidato ou trabalhador usa drogas, até por uma aparente redução de produtividade) não existindo alternativas razoáveis aos testes para averiguar o consumo de droga. Acresce que devem existir garantias procedimentais: aviso prévio do teste, notificação dos resultados logo que possível, verificação dos resultados positivos através de um segundo teste de confirmação, acesso aos resultados antes de qualquer decisão e confidencialidade em relação aos resultados assim obtidos (os resultados dos referidos testes estarão sujeitos ao sigilo médico, limitando-se o médico responsável a comunicar ao empregador a aptidão ou não aptidão para o trabalho.224

Alice Monteiro de Barros sustenta que, excepcionalmente, o empregador poderá interferir na vida extracontratual do empregado, quando o seu comportamento colidir com os interesses da empresa. Cita como exemplo dessa hipótese o empregado que trabalha em entidade de auxílio a dependentes alcoólicos e que não poderá tornar pública a ostentação de suas inclinações alcoólicas.225

Utilizando as premissas apresentadas no capítulo anterior, temos que qualquer exame admissional ou realizado durante a execução do contrato de trabalho não previsto em lei é, via de regra, ilegal, pois inexiste dispositivo legal expresso que lhe dê suporte.

No entanto, é possível estabelecer algumas exceções a essa regra, principalmente quando o exame a que deve ser submetido o empregado estiver justificado na proteção de um bem ou direito maior, que é a vida do próprio empregado ou de terceiros.

Nesse aspecto, a previsão da legislação portuguesa é muito valiosa, sendo que nos socorremos dela para encontrar uma solução para o presente debate. Com efeito, a redação do artigo 19.1 do Código do Trabalho de Portugal representa a concretização dos critérios sustentados no capítulo anterior deste trabalho, no sentido de estabelecer, como regra geral, a preservação da privacidade do trabalhador através da proibição de exames não previstos na lei, exceto quando estritamente necessários para o exercício da função e desde que a realização destes exames observe critérios definidos em lei.

No caso do HIV, os profissionais da saúde que trabalham constantemente com materiais perfuro-cortantes e com atendimento ao público estão sujeitos a se contaminar e

224GOMES, Júlio Manuel Vieira. op. cit., v. 1, p. 353.

a contaminarem outros pacientes com o vírus. Apenas para essas situações especialíssimas seria possível a realização de teste de HIV, desde que observados cuidados apontados no capítulo anterior, adicionando, também, a obrigação de confidencialidade destacada no item anterior (aplicável aos exames determinados por lei). Apesar de ser possível sustentar a legalidade do exame nesses casos, não há como aceitar que o empregador tenha o direito de ter acesso a esses exames, pois tal informação é de caráter privado do trabalhador. A Recomendação 200 da OIT deve ser respeitada quanto a este aspecto.

Assim, o tratamento da realização do exame de HIV deve ser realizado de forma muito mais cuidadosa e sigilosa do que outros exames, especialmente em razão do caráter pejorativo e discriminatório com que a doença é tratada pela sociedade.

No que diz respeito aos testes toxicológicos, novamente temos que a regra geral é a sua proibição, sendo possível apenas aceitar a sua realização quando, em razão da natureza da atividade exercida pelo empregado, a realização do exame for imprescindível para garantir a preservação de um direito de igual ou maior relevância e abrangência, como a vida ou a saúde de terceiros, por exemplo.

É o caso do motorista de ônibus, do maquinista, do piloto de avião e atividades afins. O exercício profissional sob o efeito de álcool ou drogas (lícitas ou não) poderá colocar em risco e causar efetivos danos à vida e/ou à saúde de um grande universo de pessoas. A preocupação do legislador no exercício destas atividades sob o efeito de drogas é tão relevante que justificou a sua tipificação penal no artigo 39 da Lei 11.343/06.226

Para esses casos, além da tipificação penal, entendemos que existe um bem de maior relevância e abrangência capaz de justificar a limitação da privacidade do trabalhador.

Acolhidas as razões que autorizam a realização destes exames, destacamos que em razão do princípio da boa-fé que deve permear as relações laborais, a submissão do empregado a testes toxicológicos na hipótese acima ventilada não deverá ser realizada de forma periódica ou indiscriminada, mas apenas nas situações em que houver fortes indícios

226Art. 39. Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a

incolumidade de outrem:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, além da apreensão do veículo, cassação da habilitação respectiva ou proibição de obtê-la, pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade aplicada, e pagamento de 200 (duzentos) a 400 (quatrocentos) dias-multa.

Parágrafo único. As penas de prisão e multa, aplicadas cumulativamente com as demais, serão de 4 (quatro) a 6 (seis) anos e de 400 (quatrocentos) a 600 (seiscentos) dias-multa, se o veículo referido no caput deste artigo for de transporte coletivo de passageiros.

de que o empregado está praticando atos capazes de colocar em risco a vida ou a saúde de terceiros. A imposição desta condição visa garantir a maior preservação possível ao direito personalíssimo do trabalhador.