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4. A CONCRETIZAÇÃO DA PRIVACIDADE NO AMBIENTE DE TRABALHO

4.10. Revista Íntima e revista pessoal

No âmbito da concretização da proteção da esfera privada do trabalhador, no Brasil, a proibição da revista íntima é única previsão expressa que existe na legislação ordinária no âmbito do direito do trabalho, mais precisamente no artigo 373-A da Consolidação das Leis do Trabalho.275 Tal dispositivo legal, em razão do princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, inciso I da Constituição Federal276 não está limitado às mulheres, sendo também aplicável aos empregados de sexo masculino.

A revista íntima, por expressa vedação legal, é proibida, portanto. Não há como abrir qualquer exceção a esta regra diante da proibição legal, sendo que qualquer prática adotada pelo empregador neste sentido será considerada ilegal.

Em razão de o artigo 373-A da Consolidação das Leis do Trabalho somente vedar a revista íntima, nada dispondo sobre a revista pessoal, discute-se na doutrina e na jurisprudência se este segundo tipo de revista está autorizado, indiretamente, pela legislação.

Antes de analisarmos a licitude ou não da revista pessoal, faz-se necessário estabelecer a diferenciação entre este tipo de revista e a íntima. A expressão “íntima” remete à ideia de intimidade, podendo ser relacionada à revista realizada em partes íntimas, estando, portanto, ligada às partes íntimas do corpo. Já a revista pessoal, é realizada sobre a pessoa do indivíduo sem adentrar na sua intimidade. A bolsa ou sacola do empregado, bem como os armários onde o trabalhador guarda os seus pertences pessoais, por não estarem relacionados a partes íntimas do corpo, devem ser concebidos como bens pessoais, razão pela qual deverão ser analisados sob a perspectiva da revista pessoal e não íntima.

Há uma parte da doutrina277 que entende não ser possível a revista pessoal, por adentrar na esfera de resguardo do empregado sob pretexto meramente patrimonial.

Entretanto, outra parte da doutrina entende ser possível a revista pessoal, por decorrer do exercício do poder de direção e controle do empregador, com o objetivo de

275Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da

mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado: (...) VI - proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias (...)

276Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição

evitar prejuízos ao patrimônio do empregador, desde que realizada sem caráter discriminatório e sem afrontar a intimidade e a privacidade do empregado. Uma terceira vertente da doutrina entende ser possível a revista pessoal somente nas hipóteses de segurança das próprias pessoas que circulam no ambiente de trabalho.

Alice Monteiro de Barros entende que a revista se justifica apenas quando constituir o último meio a ser utilizado pelo empregador para garantir a segurança de seu patrimônio e a salvaguarda da segurança das pessoas que circulam no ambiente de trabalho. Sustenta que a genérica alegação de propriedade não justifica a revista, sendo que devem existir na empresa bens suscetíveis de subtração e ocultação, com valor material ou relevância para o funcionamento empresarial. Argumenta, também, que se existirem outros meios de garantir a segurança no ambiente de trabalho, estes sempre deverão ser utilizados em detrimento da revista. De qualquer sorte, quando a revista for inevitável, Alice Monteiro de Barros defende que esta deve ser feita em caráter geral, impessoal, por meio de critério objetivo, mediante ajuste prévio com a entidade sindical ou com o próprio empregado; na falta daquela, respeitando-se, ao máximo, a honra, a intimidade e os demais direitos da personalidade do empregado.278

O artigo 6º do Statuto dei Lavoratori da Itália proíbe as revistas pessoais, salvo nos autos em que são indispensáveis para a proteção dos ativos da empresa em relação à qualidade das ferramentas de trabalho, às matérias-primas ou aos produtos. Nesses casos, o artigo disciplina que as revistas devem ser realizadas na saída do trabalho, com a aplicação de sistemas de seleção automática à coletividade ou a grupos de empregados e respeitando a dignidade e a privacidade dos empregados. As hipóteses e condições nas quais será permitida a revista pessoal, como também as correspondentes modalidades deverão ser acordadas entre o empregador e o representante sindical ou, na falta deste, a comissão interna.

O artigo 18 do Estatuto de Los Trabajadores da Espanha trata da revista da pessoa do trabalhador, do armário e de seus pertences pessoais. O dispositivo legal prevê que a revista somente se justifica quando visa resguardar o patrimônio da empresa ou de seus trabalhadores, sendo que, para tanto, deve ser realizada no horário de trabalho, respeitando ao máximo a dignidade e a privacidade do empregado, além de realizar-se na presença de um representante legal dos trabalhadores ou se este não estiver presente, na presença de outro trabalhador.

Segundo Javier Thibault Aranda, o Supremo Tribunal da Espanha entende que a gaveta do local de trabalho, apesar de conter pertences pessoais do empregado, não é considerada como “pessoal”, pois é um instrumento da empresa.279

Para Alice Monteiro de Barros, o artigo 18 do Estatuto de Los Trabajadores tem sido objeto de várias críticas pela doutrina, sob o argumento de que o empregado poderá resistir a essa ordem, por ser ilegítima, eis que o preceito vulnera o direito à privacidade do empregado e a presunção de inocência consagrada no artigo 24.4 da Constituição espanhola. 280

Apesar da omissão do Código do Trabalho de Portugal sobre a matéria, Julio Manuel Vieira Gomes entende ser possível a revista pessoal quando esta for o único meio apto para a proteção dos trabalhadores ou do patrimônio da empresa. No entanto, defende que as revistas deverão ser realizadas com o máximo de respeito à dignidade do trabalhador, devendo ser feitas com a maior discrição e menor publicidade, contando sempre com a presença de um representante dos trabalhadores ou, pelo menos, de outro trabalhador escolhido pelo revistado.281

Em razão das premissas estabelecidas no capítulo 3, não aceitamos a hipótese de revistas pessoais com o exclusivo intuito de proteção patrimonial do empregador. Conforme já sustentado, o direito fundamental à propriedade privada – de cunho nitidamente patrimonial – não é suficiente para anular ou até mesmo limitar a privacidade do trabalhador, já que este direito fundamental está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana. O empregador pode dispor de outros meios de controle e segurança do seu patrimônio, sendo que a revista pessoal não se mostra o meio necessário e imprescindível para a proteção patrimonial patronal.

No entanto, existem situações em que a revista pessoal do trabalhador é requisito para a execução do próprio contrato de trabalho ou, ainda, deve ser aplicada para resguardar a segurança ou a saúde da coletividade, envolvendo bens maiores e que, portanto, devem ser devidamente ponderados com a privacidade do trabalhador. É o caso, por exemplo, dos trabalhadores em indústrias farmacêuticas que produzem remédios de uso controlado ou que fabricam ou manipulam matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas.

279THIBAULT ARANDA, Javier. Aula ministrada na Disciplina: Reforma Trabalhista – A Experiência

Espanhola, cit.

280BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, cit., p. 564. 281GOMES, Júlio Manuel Vieira. op. cit., v. 1, p. 335.

A Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (que aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial) apresenta um rol das substâncias que deverão ter a sua produção e transporte controlados, obrigando a fabricante destes produtos a adotar todas as medidas de segurança e fiscalização necessárias para evitar que saiam do âmbito da fábrica sem autorização ou controle.

Por sua vez, o parágrafo 1º do artigo 33 da Lei nº 11.343, de 23.08.2006 que, entre outras providências, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, tipifica como crime a produção de matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas ou de plantas que constituam matéria prima para a preparação de drogas.282

À luz dos dispositivos legais ora invocados, temos que o empregador possui a obrigação de controlar o armazenamento e circulação destas substâncias e medicamentos controlados, sob pena de os seus administradores, na omissão, praticarem crime tipificado no parágrafo 1º do artigo 33 da Lei 11.343/06. Mais do que um poder fiscalizatório, há, neste caso, dever de fiscalização. A verificação pessoal do empregado que mantém contato direto ou manipula substâncias arroladas pela Portaria n.º 344/98 da ANVISA é condição necessária para a própria execução do contrato, como uma forma de garantir a segurança e a saúde da população em geral.

Mesmo nas hipóteses em que sustentamos ser possível a revista pessoal, entendemos que a verificação da bolsa, armários ou pertences pessoais do empregado deve ser realizada somente com a autorização e a presença do trabalhador, como instrumento necessário para garantir a manutenção da dignidade do empregado.

282Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer,

ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas

Concluímos, portanto, que a revista íntima, por expressa vedação legal, é proibida, sendo que a revista pessoal somente será autorizada quando constituir requisito essencial para a execução do próprio contrato de trabalho ou quando for necessária para garantir a preservação da segurança ou da saúde da coletividade. Nas hipóteses em que a revista pessoal for admitida, o empregador deverá adotar todas as precauções necessárias no sentido de garantir ao máximo o respeito à privacidade do trabalhador, conforme recomendações indicadas na parte final do capítulo 3 do presente trabalho.