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Experiência de Espaço e Tempo

3 Espaço na Contemporaneidade

3.4 Experiência de Espaço e Tempo

Anteriormente neste texto comentou-se das narrativas de compressão de espaço e tempo como presentes com frequência na literatura relacionada a tempo-espaço. De acordo com essas narrativas, os avanços nos transportes e na comunicação desde o século XVIII têm reestruturado as experiências humanas de espaço e tempo.

Harvey (2009) associa as experiências de espaço e tempo, particularmente a ideia de compressão do tempo-espaço, a condições sociais e materiais:

“É possível escrever a geografia histórica da experiência do espaço e do tempo na vida social, assim como compreender as transformações por que ambos têm passado, tendo por referência condições sociais e materiais [...] as dimensões do espaço e do tempo têm sido sujeitas à persistente pressão da circulação e da acumulação do capital, culminando (em especial durante as crises periódicas de superacumulação que passaram a surgir a partir da metade do século passado) em surtos desconcertantes e destruidores de compressão do tempo-espaço.” (Ibid., p. 293).

De modo mais específico, Harvey (2009) considera que ocorreu uma mudança nos usos e significados do espaço e do tempo com a transição do fordismo para a acumulação flexível – que visa confrontar a rigidez do fordismo, apoiando-se na aceleração do tempo de giro na produção e acelerações paralelas na troca e no consumo. Harvey (2009) cita duas consequências dessa aceleração dos tempos de giro do capital:

“[...] acentuar a volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, ideias e ideologias, valores e práticas estabelecidas. [...]; no domínio da produção de mercadorias, o

efeito primário foi a ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade” (Ibid., p. 258).

Para Harvey (2009), esses fatos se refletiram na experiência cotidiana das pessoas que tiveram que lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolescência instantânea, e também com a evidência de que em qualquer intervalo de tempo fluem muitas situações, considerando as transformações rápidas da sociedade. Segundo o autor (Ibid., p. 264), “testemunhamos outra difícil rodada do processo de aniquilação do espaço por meio do tempo”, em que a queda de barreiras espaciais aumenta a importância das especificidades dos espaços do mundo, e é caracterizada tanto por perigos quanto por possibilidades para a sobrevivência de lugares particulares.

Conforme Thrift (2002), essa concepção de compressão de espaço e tempo de David Harvey, assim como as noções de ilegibilidade de Fredric Jameson e hipermobilidade de Manuel Castells (detalhadas adiante), são ideias do que faz o mundo moderno “moderno”. Cada uma delas considera que vivemos em uma nova forma de capitalismo que envolve uma combinação de ingredientes como a internacionalização acelerada de processos econômicos, um sistema financeiro internacional frenético, o uso de novas tecnologias de informação, novos tipos de produção, diferentes modos de intervenção de estado e o crescente envolvimento da cultura como um fator associado à produção. E esses três autores concordam que no centro dessas mudanças está o espaço; o novo sistema capitalista ataca e suprime distâncias e nossas noções de distância, produzindo novos espaços econômicos globais em que o capitalismo global pode atuar (THRIFT, 2002).

Segundo Fredric Jameson, citado por Thrift (2002), uma das características que define o capitalismo global é que ele é difícil de localizar; sua complexidade labiríntica torna todas as coisas menos legíveis, nítidas. Uma das consequências desse fato, na visão de Jameson, é que as cidades modernas tornam-se suspensas no espaço global, dificultando que as pessoas identifiquem suas próprias posições, onde se encontram; e faz que tais pessoas experienciem um tipo de vertigem (THRIFT, 2002). Manuel Castells identifica um novo tipo de espaço econômico, o espaço móvel de fluxos, precondição de uma economia informacional; esse espaço de fluxos prevalece sobre os espaços dos lugares, dado que as organizações se desprendem de restrições locais (THRIFT, 2002).

Na visão de Thrift (2002), porém, essas são manifestações de tradições de pensamento passadas e envolvidas com a construção da ideia de um capitalismo global como um sistema excessivamente abstrato. O autor se questiona se elas representam de modo convincente o mundo moderno, e sugere que elas produzem uma representação parcial30. Thrift (2002) estuda o universo do dinheiro internacional – classificado como abstrato, complexo e instantâneo – para exemplificar que, de fato, nesse caso estamos distantes de uma realidade abstrata. Uma das características desse contexto pesquisado pelo autor é ser um amálgama de diferentes interações – como interações constantes entre pessoas e informação, e entre pessoas –; o universo do dinheiro internacional é produto e é produzido por pessoas que se comunicam sobre o que acontece. Além disso, sugere o autor, para aqueles envolvidos com esse universo, a ideia de compressão de espaço e tempo, por exemplo, não representa uma nova condição. Desde que os mercados financeiros internacionais começaram um processo de fusão, no final do século XIX, em razão do telégrafo e mais tarde do telefone, as pessoas que trabalham nesse contexto tornaram-se versadas em viver em um ambiente de compressão de espaço e tempo – “é parte do jogo que eles jogam todo dia e eles são bons nisso” (Ibid., p. 37). Thrift (2002) sugere a produção de narrativas mais moderadas das geografias sobre mudanças globais baseadas em visões, como de que essas mudanças são sempre complexas e contingentes e de que as redes de relações sociais são incompletas, provisionais e aproximadas.

Nigel Thrift aprofunda-se na análise do capitalismo contemporâneo, em seu livro Knowing

Capitalism (2005). Nesse estudo, o autor apresenta sua visão do capitalismo contemporâneo

como um conjunto de redes que não formam um sistema total, mas um projeto que está permanentemente “em construção”, e destaca como finanças, tecnologia da informação e regulação se entrelaçam com novos desenvolvimentos para produzir originais possibilidades de lucro. Thrift (2005) concentra-se particularmente em três arenas envolvidas com a produção de bens no capitalismo contemporâneo: o “circuito cultural do capitalismo” (escolas de negócio, consultores de gestão, gurus de gestão, e a mídia); novas formas de produto primário (commodity), associados com a crescente midiatização da vida cotidiana, conforme várias mídias tornam-se presenças ubíquas nas nossas vidas; e o papel central do espaço e tempo não somente como métricas, mas como recursos.

30 Uma revisão do conceito de compressão de tempo-espaço também pode ser encontrada em May e Thrift

Destacam-se, do extenso estudo de Thrift (2005) sobre o capitalismo contemporâneo, alguns aspectos que consideramos associados com experiências contemporâneas de espaço: o que o autor denomina produção automática do espaço, o crescimento de ambientes inteligentes, e a padronização do espaço. Sobre o primeiro aspecto, o autor argumenta que uma das maiores mudanças em andamento nas sociedades euro-americanas está associada com “software” de computador, à medida que esse passa a intervir em quase todos os aspectos da vida cotidiana e começa a submergir como uma infraestrutura considerada incontestável, evidente; o software afeta nossa experiência principalmente por meio do seu papel como infraestrutura e como novo modo de povoar o espaço e reproduzir inteligência.

Vinculado a esse último ponto, o segundo aspecto no trabalho de Thrift (2005) que consideramos associado com experiências contemporâneas de espaço é o advento de ambientes inteligentes que sinalizam uma mudança na natureza do espaço. Na visão do autor, espaços irão conter mais informação, tornar-se-ão conectados, reagirão mais rapidamente e serão capazes de ler os interesses dos usuários; isto é, serão mais performativos e assumirão a presença de certo tipo de usuário que está equipado para interagir. Portanto, é possível esperar mudanças nas noções atuais de distância, espaço e tempo, novas texturas e horizontes ocasionados pela presença de objetos e eventos interativos no espaço e no tempo (THRIFT, 2005).

Um exemplo desse aspecto de que nos fala Thrift (2005) é oferecido por De Souza e Silva (2004). A autora, entre outros elementos de seu trabalho, explora os telefones celulares como exemplos de tecnologias móveis que transformam nossa experiência de espaço; a possibilidade de se estar conectado, com outras pessoas e com o espaço de informação (a Internet), ao mover-se pela cidade, transforma nossa experiência de espaço e influencia a sociabilidade. Ancorada na noção espacial do filósofo Michel Serres – cujo pensamento será detalhado à frente neste texto –, De Souza e Silva (2004) considera que:

“A possibilidade de se mover pelo espaço físico interagindo com o outro enquanto em movimento promove a implicação, ou dobra, de contextos distantes dentro do presente contexto [...]. Por exemplo, alguém falando ao telefone celular é parte do contexto dos indivíduos que compartilham a mesma área espacial, mas é também parte de um contexto distante, pois está falando com alguém espacialmente remoto de sua área. Sendo assim, há um contexto criado pela proximidade

espacial de indivíduos e, dentro dele, um outro contexto criado pelo telefone celular.” (Ibid., p. 135)

E, com relação à sociabilidade, De Souza e Silva (2004) argumenta:

“[...] lugares de encontro foram parcialmente transferidos para a Internet, [...]. Hoje, as tecnologias móveis trazem esses ‘ambientes de multiusuários’ novamente para os espaços físicos [...] a arte midiática (arte mediada por tecnologia) é responsável por criar espaços híbridos, transformando as cidades e os museus em lugares de comunicação e de sociabilidade.” (Ibid., p. 137).

Retomando o trabalho de Thrift (2005), o último aspecto que consideramos associados com experiências contemporâneas de espaço, a ser destacado neste estudo, é a visão do autor sobre padronização do espaço. Segundo Thrift (2005), desde os anos 1960, o que vemos é a evolução de novos modos de endereçar o mundo baseados em modelos de rastreamento (track

and trace), e que resultaram, por exemplo, em mudanças na natureza do endereço. Endereços

estão se movendo com humanos e não humanos, por meio de inovações como código de barras; endereços que permitem aos computadores comunicarem-se entre si; cartão SIM (subscriber information module) que identifica, controla e armazena dados de telefones móveis celulares; e o método de identificação RFID (radio-frequency identification). Esses e outros desenvolvimentos estão produzindo, segundo Thrift (2005), novos condicionamentos de posição e justaposição que, por exemplo, podem afetar noções como “perder-se” – perder- se se torna uma tarefa desafiadora e difícil.

Dado que este estudo envolve o tema movimento e a experiência de espaços e tempos associados ao sistema aéreo, conclui-se este capítulo detalhando-se especificamente os espaços do aeroporto e do avião.