• Nenhum resultado encontrado

Experiência trágica e o estético

A experiência trágica envolve uma percepção de dor e de sofrimento, uma ameaça de destruição ou a destruição de fato. Como não se trata de uma experiência trágica pessoal do espectador, ele não está sendo afetado pessoalmente e ele pode criar um distanciamento em relação à cena. Assim, uma experiência estética só deve acontecer, se o espectador está se sentindo seguro, em uma posição livre de perigo e não sendo agredido diretamente. Isso nem sempre acontece, como, por exemplo, em algumas cenas de ‘Imperium’ do grupo catalão ‘La 50 Fura dels Baus’ , onde há momentos violentos acontecendo no meio do público. Se não tiver51 um certo distanciamento, o medo toma conta da apreciação estética e ela não deve acontecer.

50 https://www.lafura.com/en/works/imperium/ Acesso em 24/02/2018

51 La Fura dels Baus é um grupo de teatro fundado em 1979 em Barcelona. São conhecidos por um

Apenas o terror estético, uma experiência velada de medo, é necessário para a experiência trágica, não o pavor de enfrentar um perigo real. As tragédias são direcionadas para um público com a disposição de assistir algum tipo de terror, mas que se sente seguro no seu assento ou local de observação de perigos reais. A estética distância o terror do excesso, mas isso nem sempre representa uma atenuação. Uma experiência imaginária pode ser mais violenta do que um medo real. Um dos propósitos possíveis de uma experiência estética de dor ou de perigo, é a possibilidade de adquirirmos conhecimento através da arte, sem termos que passar forçosamente pelo risco representado. Por isso, a experiência estética pode significar, também, um aprofundamento de uma experiência real. Um ator pode mostrar algum sofrimento, tristeza ou uma dor, o espectador em contrapartida, pode experimentar, pensar ou sentir o desamparo de toda a humanidade ou pensar todo o paradoxo da sua existência.

De acordo com Lehmann (2014, p.173), a dissolução do efeito da apresentação estética é uma das inovações mais produtivas do teatro pós-dramático. Este rompimento está sendo pensado como uma prática cujo objetivo é a desagregação da posição segura do espectador, porém sem passar do limite da perda total da distância estética. Se houver uma violação completa do estético, o espectador se distancia da experiência trágica. Um artista pode aumentar a afetação, para tentar quebrar o isolamento do espectador através, por exemplo, de agressões ou ofensas, mas é um caminho estreito, um limiar, para que não se torne só uma transgressão e perca o efeito estético.

A experiência trágica é algo que todos já vivenciaram de alguma forma e alguma vez na infância. Uma perda, um desamparo ou um momento de solidão são gravados na mente de uma criança e podem ser acionados por uma experiência trágica de dor, sofrimento ou a destruição de uma grande felicidade. A sensação da criança de ser tirada do peito da mãe, o primeiro dia de escola ou outros medos inconscientes ou indefinidos, são momentos de aflição que podem ser ativados, eventualmente, através de vivências estéticas de acontecimentos os quais criam alguma relação com estes momentos passados de um espectador. (LEHMANN, 2014, p.174) Essas experiências de separação ou perda na infância são fixadas nas nossas mentes como traições e talvez por isso elas são tema reincidente em tragédias.

A experiência trágica se refere a uma transgressão significativa que questiona valores ordenadores da sociedade e seus parâmetros culturais. É uma percepção desafiadora, que se transforma, de forma imaginativa, em uma transgressão ou em um excesso. (LEHMANN, 2014, p.178) Apesar de tudo, ela é ‘apenas’ uma experiência que se constitui na percepção de uma cena, uma situação teatral produzida, uma performance, que pode até se aproximar da vida real, mas não é uma experiência vivida na realidade e essa consciência é parte constitutiva do processo.

Na visão de Lehmann (2014, p.21), a questão da análise da experiência estética sofreu uma mudança pela ampliação do conceito teatral na contemporaneidade. A necessidade da experiência estética para uma experiência trágica continua, só que o estético teatral não é mais uma área tão claramente demarcada. Isto significa que uma análise puramente estética de uma apresentação pode não ser suficiente.

É preciso pensar que tipos de experiências são possíveis no teatro contemporâneo e questionar a situação teatral como prática nesse sentido. Comparado com uma avaliação crítica de um texto teatral ou de um teatro dramático mais tradicional, as apreciações na contemporaneidade se tornam, inevitavelmente, mais subjetivas. Para se aproximar a uma performance, cada vez mais a posição de um observador distanciado desaparece e preconceitos, vivências e percepções específicas prevalecem na relação com a cena, tornando os envolvimentos mais subjetivos.

Este pensamento foi posto em prática no Projeto de Extensão ‘Vertentes da Crítica’ , 52 organizado e iniciado em 2013 pela Prof. Naira Ciotti, do qual eu participei. Baseado, entre outros, nos moldes da crítica ‘genética’ , o objetivo foi buscar uma crítica de arte que53 acompanhasse a produção da obra desde o início, para assim se aproximar mais à ela. Ao invés de assistir apenas a encenação como produto final, tentamos acompanhar a criação de um trabalho artístico desde os primeiros momentos, conversando com todos os envolvidos,

52 https://www.facebook.com/vertentescritica/ e https://vertentesdacritica.wordpress.com/ e

especificamente uma das minhas críticas:

https://vertentesdacritica.wordpress.com/2014/10/28/clowns-de-shakespeare-nossa-senhora-de-las-n uvens/ Acesso em 4/02/2018

53 SALLES, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998

incluindo, por exemplo, o iluminador ou figurinista. Com isso ganha-se uma visão muito mais completa do resultado, podendo destacar de que forma se chegou a um definido desfecho.

Uma experiência trágica se forma pelo estético, porém demanda uma ou várias cisões, interrupções ou quebras do estético. Para Lehmann (2014, p.180), uma questão crucial é a forma de recepção pelos espectadores, considerando a consciência de cada um, da relação precária da razão com o discernimento do afeto, criado pela identificação mimética. Para um entendimento ‘correto’ do jogo teatral,se faz necessária a permeabilidade do sentido original. A experiência estética é um processo de reflexão, precisa haver uma ruptura, dissolvendo o estético. Esta inclusão necessária de uma interrupção na tragédia teatral é um fator pertinente para todas as épocas das tragédias teatrais. Se é para acontecer uma experiência trágica, o espectador envolvido precisa criar uma distanciamento em relação `a estetização.

Nesta pesquisa investiguei estas quebras do estético nos experimentos para a ‘Estrada V’ no gramado na frente do Deart. Ao assistir a cena, vemos que passa um carro, alguém se54 senta nos bancos para lanchar ou eu bato a porta do meu carro. Um ator abraça uma árvore ou usa um pedra encontrada no chão, acarretando uma constante ida e volta entre um objeto com seu uso ‘comum’ e extracotidiano na cena, entre uma estetização e a quebra do estético. Vejo esta interrupção também no processo de improvisação dos atores. Eles têm um impulso, exploram e trabalham, mas, de repente, ele se esgota e vão em busca de um novo impulso. Estes intervalos realçam o corpo cotidiano do ator, convenções aparecem e são quebrados novamente. É nesta faixa estreita, entre o imaginário e o real, entre a estetização e o distanciamento, conectado a um momento trágico, que a experiência trágica pode se formar.

A fragmentação cria uma tensão entre a emoção trágica e a razão, trazendo uma visão mais exata da tragicidade das condições, permitindo avançar no processo. Nas tragédias55 modernas, onde a fragmentação do estético é quase uma norma, onde até interrupções violentas

54 Os relatos dos experimentos encontram se abaixo em ‘Registros comentados do processo”

55 Nem toda ‘interrupção’ representa uma ruptura do estético. Nas tragédias clássicas a cisão pode

estar no aparecimento do vidente Tirésias com um presságio ou um comentário do coro condenando um comportamento. Berthold Brecht, dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX, por sua vez, trabalhou a interrupção de forma consciente pelo ‘Verfremdungseffekt’, literalmente ‘efeito de estranhamento’ .

se enquadram a qualquer tempo e sem consequências no quadro teatral, a quebra se encontra, possivelmente, em outro patamar. Um caminho é uma interrupção ou limitação da exaltação.

De acordo com Lehmann (2014, p.181), na sequência envolvente de ideias, aparece um momento de compreensão e conscientização do processo da apresentação em si. Isso acarreta uma exposição, onde, possivelmente, o próprio direito de presença é questionado. Na construção da experiência trágica, a ideia consciente ou semiconsciente, de que o sujeito tem uma identidade própria, familiar, religiosa ou nacional é abalada e sofre uma cisão, com isso, todos os presentes, performadores e espectadores, perdem a própria afirmação. Não há uma posição clara, nem enunciado ou posicionamento definitivo, porém uma exposição ou uma destituição. Uma cisão inscrita na consciência situada entre o sujeito e o sentido, que é muito mais delicada, volátil e subjetiva, em contrapartida ela pode ser muito mais profunda, já que diz respeito a cada sujeito.