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Pré-requisitos para uma experiência trágica

Critérios objetivos para o acontecimento de uma experiência trágica de um espectador são difíceis de designar, porém, Lehmann sugere a possibilidade de elaborar um construto teórico, com alguns critérios que podem, eventualmente, levar a uma experiência trágica. Sem dúvida, cada um destes critérios a seguir tem suas variações e em cada caso precisam ser analisados, como e até onde eles se aplicam. O objetivo é esclarecer por estes critérios como a experiência se constitui, para tentar facilitar a compreensão do referido fenômeno.

Ação : O primeiro critério para Lehmann (2014, p.74) é a ação. Para que uma experiência trágica possa acontecer, faz-se necessário alguma forma de ação. Principalmente com o advento do teatro contemporâneo, não é possível criar uma conceituação unânime da constituição desta ação ou do formato respectivo. No teatro temos ação representada, a ficção,

38 “Kafka foi o gênio do isolamento. Ensinou-nos que nada temos em comum com nós mesmos, muito

menos com terceiros.” em BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p.226

mas existe ao mesmo tempo o processo da apresentação com atores, gestos e palavras. Ainda temos as dinâmicas que podem ocorrer entre os atores, como prevalece no teatro dramático, entre atores e público ou até mesmo entre os membros do público, como pode acontecer em uma performance.

‘Phobos’ : Em segundo lugar, Lehmann afirma (LEHMANN, 2014, p.75) que, se tratando de experiência trágica , é preciso que o espectador passe por alguma experiência de medo ou terror ( phobos ). A tragédia mostra, evoca, articula o terror seja em uma figuração corporal, que desencadeia um temor, choque ou horror, seja pelo temor de que algo terrível possa acontecer. Esse momento deve ser veiculado em um contexto performático adequado, que deve se estender para além do aspecto literário, já que, na literatura, a relação entre autor e leitor é díspar da relação performance-plateia. No entanto, o medo experimentado não pode ser real, precisa-se resguardar um distanciamento adequado entre cena e público, para evitar que aconteça uma reação natural, como conflito ou rejeição. A consciência de segurança do público precisa ser resguardada, mas isso não significa que o temor seja menos intenso, uma vez que um terror imaginário pode revelar-se muito mais intenso do que um medo real. Na vida cotidiana experimentamos muitas vezes que a preocupação é pior do que o acontecimento de fato, sendo esta então apenas imaginária.

Vivência estética : Ademais, seguindo o raciocínio de Lehmann (2014, p.77), faz-se imprescindível a construção de uma vivência estética, porque é o sentido da estetização que nos permite ganhar experiências a partir de sensações que, a rigor, não vivenciamos. Um medo criado pelo estético não se constitui absolutamente em falsa experiência, muito pelo contrário, por saber que a origem da sensação é teatral, este terror pode até ir além, propiciando uma sensação de liberdade singular. Nisso reside uma atração especial, quando o sujeito tem a consciência de vivenciar uma experiência real, sem contudo ter que passar pelo perigo real da origem da experiência. De acordo com Lehmann (2014, p.78), Hegel afirma , 39 que esta seria a única maneira pela qual o sujeito pode se aproximar suficientemente do medo e da morte, a ponto de poder tecer reflexões a seu respeito.

39 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich Phänomenologie des Geistes. Leipzig, Verlag der Dürr’schen

No século XVIII, Lessing recomendava na ‘Hamburgische Dramaturgie’ , que não40 41 se deve explorar o medo à exaustão, porém relegar ao público espaço para recriá-lo, segundo sua imaginação. Existe uma linha divisória tênue entre os seguintes extremos: De um lado, ações agressivas contra o público, onde o espectador é subtraído do contexto seguro em que, de outra forma, lhe permitiria refletir mais adequadamente sobre a experiência que vivencia. Do outro lado, ações que não suscitam nenhuma reação do espectador e que, consequentemente, não acarretam qualquer reflexão e quando se perde completamente o distanciamento estético e a experiência em si se transforma na própria transgressão. No outro extremo, se não houver empatia, ou seja, se, por exemplo, o medo não tocar o público, o resultado pode ser apatia geral, como, aliás é preciso destacar, é muito comum em notícias de catástrofes vistas nos noticiários televisionados.

Cisão do estético : Consoante com Lehmann (2014, p.78), ainda tem que haver uma quebra do estético, um distanciamento, porque dificilmente uma experiência trágica acontece somente através da admiração subjetiva de beleza. A pura observação de algo considerado belo, cria um distanciamento entre o observado e o observador. Para a experiência trágica, a identidade do sujeito precisa ser abalada, o espectador precisa ficar exposto e sofrer uma intrusão do real na percepção estética. O abalo não vem necessariamente da compreensão, mas porque a posição de quem assiste é estremecida pelo real e, com isso, o espectador tem que decidir se o visto deve ser considerado como estético e ‘falso’ ou como acontecimento real, com todas suas consequências. Não se trata só de uma epifania estética, mais do que isso, deve ocorrer uma interrupção da mesma. Enquanto o argumento é elaborado esteticamente, o espectador cria um distanciamento, todavia, quando a percepção e compreensão são abaladas pela exposição ao real, por exemplo, um perigo real, dor verdadeira ou uma humilhação do performador, mesmo com seu consentimento, esta separação é destruída. Lehmann argumenta (2014, p.180), que a consequência é o abalo da posição de espectador, ele tem que decidir, sem

40 Gotthold Ephraim Lessing (Kamenz, Saxônia 1729 — 1781 Braunschweig) foi um poeta,

dramaturgo, filósofo e crítico de arte importante do Iluminismo. Com seus dramas e escritos teóricos, comprometidos com a idéia de tolerância, ele influenciou o desenvolvimento do teatro e teve um efeito duradouro na literatura. Seus trabalhos dramatúrgicos são encenados até hoje.

41 http://www.deutschestextarchiv.de/book/show/lessing_dramaturgie01_1767 Na 'Dramaturgia de

Hamburgo', Lessing invoca Aristóteles e explica que ele foi mal interpretado, que os "phobos" ao invés de terror deve ser interpretado como ansiedade compassiva.

poder ter certeza, se ele concebe o visto como fingido, quer dizer estético, ou se ele tem que reagir, por exemplo, moralmente.

Coletividade da experiência trágica : Uma outra questão, talvez menos considerada, trata do argumento de que até que ponto a experiência trágica precisa ser coletiva. De acordo com Röhl (1997, p.30), em um acontecimento teatral significativo para um sujeito, a sua percepção envolve também o coletivo. Assistindo ao vivo a um momento teatral, em um coletivo específico de pessoas que constituem os espectadores, existem vínculos dinâmicos e se criam relações, mesmo o público sendo constituído por desconhecidos. Simplesmente pelo fato da cena ser percebida por este grupo de indivíduos ao mesmo tempo, todos os presentes se conectam de uma forma única, ligados a um momento especial que nunca poderá se repetir e com esta consciência específica dos participantes. O momento de um indivíduo a sós, sem a presença de outros, onde o mundo de fora pode desaparecer e onde os pensamentos podem se transformar em um solipsismo, é muito diferente do acontecimento de um ato coletivo de um grupo de pessoas, mesmo sendo todos desconhecidos, ao assistir a uma encenação. Assim, uma experiência, que poderia apenas ser estética, ganha outra qualidade por ser coletiva.

Para Lehmann (2014, p.188), um aspecto basal da encarnação teatral é o interesse de investigação do ato imitativo em relação ao próprio ser. O comportamento de imitação, ocultação e dissimulação é motivado corporalmente pela natureza de ‘distância’ do corpo do sujeito de si mesmo. A personalidade humana se constitui neste jogo e aparece, também, nos diferentes nomes e papéis que tomamos frente à sociedade. O ‘eu’ e ‘você’ são parte desta manifestação de incorporação e manifestamos um ‘nós’ a partir destas relações sociais. Estas concepções antropológicas são importantes, por elucidar melhor a experiência coletiva teatral. No teatro, aparentemente, saímos das nossas personalidades isoladas, do nosso apego ao ‘eu’, para um coletivo do ‘nós’, porém, a capacidade latente de incorporação de cada indivíduo, através da atuação dos performers, passa por uma ênfase e um destaque, se tornando assim objeto da atenção emocional e reflexiva de uma realidade comum a todos os espectadores, o que faz com que sentimos e imaginamos um coletivo. Fora do teatro é difícil encontrar esta simultaneidade de incorporação e criação de um coletivo, inserido em uma contemplação estética.

Assim, a sensação de estar dividindo com um grupo uma experiência específica é de grande importância para o surgimento de uma experiência trágica. De acordo com Lehmann (2014, p.160), não se trata somente de uma experiência estética de um grupo específico, mas de um instante de socialização que eleva o momento vivido pelo grupo de espectadores a um outro nível de conscientização. Neste quadro de coletivo passageiro teatral, o público vive um momento concreto coletivo e individual concomitantemente, que é essencialmente corporal, onde há um momento de percepção coletiva, alterando o caráter da comunicação pela presença da congruência do público. O pensamento individual é impregnado pela situação social e sensitiva. Teatro como acontecimento performativo apresenta uma temporalidade aberta para o futuro e esta abertura transforma todas as reações afetivas. O prazer estético está acompanhado de uma responsabilidade latente, consciente ou não, de co-participar de um processo.

Diferente, por exemplo, da televisão, onde o papel do espectador é mais passivo, a interação teatral modifica estruturas sociais. O fato de se tratar de um momento único e não repetível, sendo vivenciado por espectadores específicos, confere um critério singular. Além disso, quando se trata de um público em geral, seja no teatro ou não, uma agressão, um medo ou qualquer ação é percebido de forma diferente. Quando o indivíduo está à sós, critérios morais tem outro peso do que quando ele está inserido em um coletivo, mesmo que esta seja aleatória, como os espectadores de uma peça de teatro. Se uma ação não causa nenhum impacto em um indivíduo que se encontra isolado ou a sós, não quer dizer que, em um coletivo, essa reação seja igual e vice versa. Somente com a possibilidade de sermos observados já mudamos o nosso comportamento. Isso relata ao efeito ‘bystander apathy’ , fenômeno estudado pela psicologia 42 social, que percebeu as modificações de comportamentos em grupos.

Na reflexão sobre o nosso destino podemos encontrar eventualmente uma relação com uma realidade múltipla universal. Lehmann (2014, p.147) destaca que na ocasião de uma experiência trágica do espectador, o trágico privado individual tem que se relacionar ou haver alguma relevância com o trágico de outros. Um acontecimento privado sem nenhuma relação social, que ocorre, por exemplo, apenas na imaginação do responsável, dificilmente permite a

42 Apatia do espectador Tradução F.D. - Darley, J. M. & Latané, B. (1968). "Bystander intervention in

emergencies: Diffusion of responsibility". Journal of Personality and Social Psychology. 8: 377–383. doi:10.1037/h0025589.

possibilidade de uma experiência trágica. Somente quando uma memória individual entra em conjunção com uma memória múltipla, temos um elemento essencial.

O acontecimento, a ação, deve trazer a possibilidade de generalização, conectando uma realidade individual a uma social. Por exemplo, a consciência da morte a qual, por ser essencialmente humana, toca de alguma forma a todos. Outrossim, pode se tratar de questões políticas específicas, os quais dizem respeito somente a um coletivo distinto, por exemplo, às questões de emigrantes alemães. Com o advento do nazismo, milhões fugiram, entre eles famosos como Berthold Brecht, Walter Benjamin ou Thomas Mann, alguns inclusive para o Brasil, como Lasar Segall, Stefan Zweig ou Herbert Caro. Em alguns casos, como no de Stefan Zweig ou Walter Benjamin , a tragicidade desta fuga levou ao suicídio. Sendo personalidades43 44 conhecidas ou não, algumas das dificuldades eram congêneres para todos e até certo ponto tem a ver com a minha emigração, apesar da minha saída ter sido voluntária.