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Uma questão constante é a relação do teatro com o dia a dia, quais são as percepções dos espectadores, além da relação encenação e público. Lehmann argumenta (2014, p.617) que a concepção clássica do teatro se define principalmente pela criação de um cosmos fictício através da apresentação de ações por atores.

Já no século XXI, a separação entre o jogo teatral e o dia a dia não é mais tão definida. Há uma maior percepção da relação da vida social e privada com a penetração do jogo teatral. Uma possível consequência é a introdução da arte e do jogo estético no cotidiano. O estético na vida do sujeito, a criação de uma imagem representativa de acordo com o ambiente, a virtualização do próprio ser e das relações com outros, o ‘jogo social’, se entrelaçam e aparecem cada vez mais no dia a dia das pessoas e eles são cada vez mais difíceis de separar, tanto no nível consciente como no inconsciente, por fazer parte da cultura do século XXI.

Para Lehmann (2014, p.617), se o trágico se definia em grande parte pelo drama, em uma performance uma das possibilidades de criar o trágico é o jogo da insegurança, onde o espectador não sabe com certeza se o visto é algo cotidiano ou se é jogo teatral, se é uma

criação estética ou se são ações miméticas. A constituição dos elementos que se definam por uma condição puramente estética são destravadas pela ambiguidade do jogo teatral com o cotidiano.

O que dificulta este processo é que, apesar de todos os tipos de cisões, quebras e estranhamento, continua ativo o dispositivo da apresentação teatral, com uma ação fictícia de um lado e o público do outro. Daí a busca contínua por novas implicações dos espectadores, já que as fragmentações do estético se tornaram quase um padrão e as cisões foram integrados pelo público no conceito teatral, sem causar mais nenhum distanciamento. O espectador, com sua natureza imprevisível, ‘consegue’ transformar qualquer quebra em uma continuidade, ele ‘re-dramatiza’ as cisões, ele é capaz de teatralizar tudo.

A meu ver, um dos objetivos para quem trabalha a tragédia na contemporaneidade é a busca contínua por esta quebra imprescindível, que tematiza e problematiza o jogo estético, levando o espectador ao limite da sua concepção do teatral, buscando uma desestabilização do público, para induzi-lo ao próximo passo, a reflexão. Nos experimentos para a ‘Estrada V’ este pensamento estava presente o tempo todo. Tentei encontrar nos experimentos um limiar entre a representação e a desconstrução. O trágico tem que aparecer, porém sem cair no óbvio ou contando uma história. Encontrar a essência de um pensamento e fazê-lo aparecer em um corpo representa para mim o trabalho da performance.

O modus de recepção do estético precisa ser desenvolto, para que a esfera do sério, a prática e o real possam se intrometer na estética. A experiência trágica só pode acontecer se há um abalo de valores culturais. Apresenta-se o problema da estetização de tudo ou quase tudo que acontece na cena, a integralidade de que é mostrado, questionado ou afirmado sobre um palco é estetizado, sem que os valores, posturas ou atitudes sejam atingidos. A questão é como o teatro, com sua concepção medial específica, atravessa mais essa barreira.

Um caminho pode ser a tematização da tensão entre o jogo teatral inconsequente e o cotidiano. Para Lehmann (2014, p.180) a prática sinestésica do teatro já tem no mínimo um caráter duplo indissolúvel do processo de vida e ficção estética. Daí se formam uma série de possibilidades de atravessamentos da prática performativa, do jogo com o cotidiano. A

exposição da auto-reflexão da sua própria prática e o excesso que se torna experiência atravessam a consciência, questionam os conceitos, fazem a segurança de julgamentos desvanecer, exigem uma reflexão das contradições e até questionam o significado mesmo do agir.

Lehmann argumenta (2014, p.182), que uma forma de quebra de uma estrutura formal é a ‘ invasão do real’ . A percepção de um perigo efetivo, verdadeira dor ou uma humilhação pessoal do performer, mesmo com sua concordância, atravessa a percepção estética. Esta percepção e compreensão se volta para o próprio sujeito, porque a base da conceituação da posição de público é questionada. ‘ Invasão do real’ pode significar uma tomada de decisão do espectador entre a percepção de uma ação como estética, mimética ou como um acontecimento real, ao qual deva reagir não como espectador, mas como pessoa envolvida ou, ainda, de uma outra forma, por exemplo, física ou moral, o que constitui uma interrupção do estético e o que pode fomentar uma reflexão aprofundada.

Existem algumas similaridades entre a experiência estética e a experiência trágica, ambas têm uma estrutura parecida, porém a estética é muito mais comum, existe muita mais arte estética do que trágica. Na experiência trágica há uma transgressão que se dá por um potencial perigoso de destruição ou até de autodestruição, acrescentado de uma necessidade de uma cisão. De acordo com Lehmann (2014, p.183), é essencial na matéria da experiência trágica haver uma transgressão das normas e leis por um sujeito que atravessa ou ultrapassa o quadro da inteligibilidade cultural, mesmo se ela é constituinte para si. A inteligibilidade cultural se define pelas normas, regras e lógicas da sociedade, ela é a definição das ideias basais e das intuições sensíveis da cultura. Um abalo destas estruturas não significa necessariamente uma crítica das mesmas, porque as obras trágicas fazem, em princípio, parte deste contexto cultural. Possivelmente necessita-se de um atravessamento com uma violência concussiva dessas condições implícitas para que se apresentem as condições necessárias para uma experiência trágica.

O processo que leva a uma experiência trágica não permite uma interpretação única. Ele mantém um caráter misterioso e a cada repetição da experiência tende a dar um outro resultado. De acordo com Lehmann (2014, p.162), isso quer dizer que, a partir de uma conjuntura estética,

não se pode sugerir somente um resultado que represente uma experiência trágica específica, porém são inúmeras possibilidades que nascem de uma mistura singular de disposição de percepção sensorial e postura de pensamento.

O ‘objeto’ estético não é só uma obra de um performer, mas surge de uma relação performativa e auto-reflexiva. Em relação ao ‘objeto’, o sujeito se sente como um produtor de uma experiência, porém sem que se possa dizer exatamente como este intercâmbio se dá. Além do momento racional, existe uma área não objetiva ou racionalmente controlável, que diz respeito à afetação e que pode desencadear todo o processo de uma experiência trágica.

A experiência trágica, assim deduz Lehmann (2014, p.184), como um formato de experiência estética, requer um arrebatamento forte dos conceitos sociais culturais considerados ‘seguros’, não só pelo crítico, inovativo, cômico ou grotesco, mas pela possibilidade de (auto)destruição. Para isso, a experiência trágica não precisa ser clara e distinta, nem ser ‘compreendida’, ela é uma constelação questionável que se refere a algo pouco distinto, um misto de real e ilusório, mas podendo ter consequências consideráveis.

A meu ver um exemplo disso foi a encenação ‘aMaria’ de Cinthia Danielle, apresentada no DEART em 2013, com a atriz Karina Oliveira. Esta encenação, apresentada com muito sucesso em várias cidades do Brasil, foi criada para trabalhar o épico, usando o efeito de estranhamento de Brecht. A peça trata do abuso de meninas, trazendo relatos, fotos e depoimentos de crianças. Karina representa estas crianças mas traz, também, suas próprias experiências, como as da encenadora Cynthia. Como espectador fui abalado nos meus valores culturais, questionando-me como estes abusos são possíveis em nosso mundo. Me trouxe a questão, representado pelas opiniões divergentes de Locke ou Hobbes , se o homem por56 57 natureza é bom ou não. Se a Cynthia tivesse tratado o tema só relatando uma situação, eu poderia ter tratado o tema como uma notícia de acidentes de trânsito, porém, por trazer relatos pessoais aconteceu uma aproximação maior. Senti uma responsabilidade aumentada por viver

56 John Locke (Wrington, 1632 — Harlow, 1704) foi um filósofo influente e líder do pensamento do

Iluminismo., sendo considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social.

57 Thomas Hobbes (1588 Wiltshire - 1679 Derbyshire) foi um matemático, teórico político e filósofo.

Ele é considerado o fundador do absolutismo esclarecido e um dos mais importantes teóricos do contrato social.

em uma sociedade que permite acontecer estas atrocidades. Como estes crimes foram cometidos apenas por homens, através da presença de uma mulher que relata estes sofrimentos, senti-me acusado e culpado.

Neste exemplo consegui enxergar como os critérios elaborados por Lehmann se aplicam neste caso. Há um grande sofrimento pelas crianças abusadas, esta dor foi estetizada na apresentação pela atriz, houve várias cisões da estética pelos relatos pessoais de Karina e, destarte, pela proximidade dos acontecimentos, isso me levou à reflexão sobre minha pessoa, meu gênero e a sociedade em que vivemos. Senti um estranhamento de mim mesmo, um pensamento de aproximação à possibilidade de cometer estes crimes, um pensamento abstrato, se eu como homem seria capaz de fazer algo assim? Me senti abalado apenas pela cogitação teórica, receando a possibilidade pelo fato de ser do gênero masculino, apesar da certeza pessoal da impossibilidade. Mas o pensamento se estende, vai além, imaginando a possibilidade de alguém apontar uma arma para minha cabeça e me obrigar. Até onde vai o instinto de sobrevivência, se a minha vida causa sofrimento ao outro? Será que é em um caso extremo assim, que o ser humano venha a se conhecer?

De acordo com Lehmann (2014, p.185), a necessidade da interrupção do estético no trágica tem um papel importante na discussão crítica das formas que o trágico assumiu no teatro pós-dramático. O esgotamento dos paradigmas tradicionais do teatro dramático e dos formatos literários dos dramas ameaçou reduzir a tragédia para uma afirmação inocente da inteligibilidade cultural, que já não consegue mais abalar as estruturas aceitas. Com esta dificuldade outras formas de trabalhar a questão de transgressão de cenas e a interrupção da prática de representação foram experimentadas. Estudou-se a desmontagem do aparelho inteiro de representação através da desconstrução teatral, houve um questionamento da prática de representação e do papel do público. Mas a questão que nasce disso é: onde encontrar o local da transgressão trágica? Se não é mais na representação de um acontecimento trágico, talvez seja na experiência da crítica dos conceitos culturais ou na autocrítica do espectador.