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Experiência trágica: do conceito ao experimento

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

FRANK DÜESBERG

Experiência trágica:

do conceito ao experimento.

NATAL/RN

2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS, HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS - PPGArC

Frank Düesberg

Experiência trágica: do conceito ao experimento.

Orientador: Prof. Drª. Naira Neide Ciotti

NATAL - RN 2018

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Düesberg, Frank.

Experiência trágica : do conceito ao experimento / Frank Düesberg. - 2018.

100 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2018.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Naira Neide Ciotti.

1. Performance (Arte). 2. Tragédia. 3. Teatro. 4. Lehmann, Hans-Thies, 1944. 5. Müller, Heiner, 1929-1995. I. Ciotti, Naira Neide. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792.21

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

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Frank Düesberg

Experiência trágica: do conceito ao experimento.

Dissertação apresentado ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como pré-requisito para a obtenção do título de mestre.

Orientador: Prof. Dr.ª Naira Neide Ciotti

NATAL - RN 2018

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

FOLHA DE APRESENTAÇÃO

A Defesa de Dissertação do trabalho intitulado “Experiência trágica: do conceito ao experimento.” de autoria do discente Frank Düesberg, contou com a participação da

seguinte Banca Examinadora:

___________________________________________ Profª. Drª. Naira Neide Ciotti

(Presidente – PPGArC/UFRN)

__________________________________________ Prof. Dr. Hélio Junior Rocha de Lima (Membro Externo à Instituição – UERN) ____________________________________________

Profª. Drª. Lara Rodrigues Machado (Membro Interno - PPGArC/UFRN) ________________________________

Frank Duesberg (Discente)

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AGRADECIMENTOS

Com tantas experiências trágicas na cabeça, fico feliz de estar vivo!

Agradeço às minhas filhas lindonas, espectaculares, fantásticas por serem o que são! Agradeço à Maésia, minha companheira para todas as horas e criadora artística! Agradeço à Naira, minha querida orientadora!

Agradeço à Lara, querida professora que transforma dança em felicidade! Agradeço à Eduardo, mestre do pensamento!

Agradeço aos colegas, divertimo-nos!

Agradeço a todos os outros que tiveram suas respectivas parcelas, inclusive aquele

bibliotecário da Universidade de Miami que autorizou o acesso, para encontrar - que grande felicidade - a obra completa de Heiner Müller em alemão!

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Resumo

Esta pesquisa indaga a possibilidade de uma experiência trágica de um espectador ou do autor no teatro contemporâneo. O objetivo é questionar a possibilidade da concentração do trágico, por exemplo, em um gesto performático. Hans-Thies Lehmann, no seu livro ‘Tragödie und dramatisches Theater’ (2014), reflete sobre a experiência trágica, que envolve vários aspectos, como a estetização de um acontecimento trágico, a cisão dessa estetização e uma reflexão. Foram criados e pesquisados múltiplas reescritas, experimentos e fragmentos reunidos sob o nome de ‘Estrada V’, baseados principalmente na obra ‘A Estrada de Volokolamsk’, de Heiner Müller e nas experiências do presente autor. O foco ficou nas reflexões e práticas em relação ao público e da possibilidade de uma experiência trágica vir a ocorrer. Constatou-se que no mundo moderno, a mística do excesso não precisa ser mais grandiosa, porém exige-se uma aumentada atenção com o comum. O teatro da tragédia contemporâneo é um local de conscientização intensa de perda, onde o sujeito é confrontado com a dissolução inevitável do ser e com uma experiência da própria finitude. Neste contexto, o trágico no teatro contemporâneo investiga o sujeito fragmentado do mundo atual, tocando na antiga e sempre renovada experiência do excesso. O destino fundamental do caráter trágico é seu desejo de investigação por uma verdade maior, em um mundo onde não há certezas e postulados irrefutáveis. Foi verificado que na arte performática a criação do trágico nasce do afeto, estabelecendo uma conexão específica entre o performador e o receptor, permitindo o surgimento de uma experiência trágica.

Palavras chave: Performance. Experiência trágica. Teatro contemporâneo. Hans-Thies Lehmann. Heiner Müller.

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Abstract

This research investigates the possibility of a tragic experience of a spectator or the author in contemporary theater. The objective is to question the possibility of the concentration of tragic, for example, in a performance gesture. Hans-Thies Lehmann, in his book 'Tragödie und dramatisches Theater' (2014), reflects on the tragic experience, which involves several aspects, such as the aestheticization of a tragic event, the breakup of this aesthetization and a reflection. Multiple re-writings, experiments and fragments were collected and researched organized under the name of 'Estrada V', based mainly on Heiner Müller's 'The Road of Volokolamsk' and the experiences of the present author. The focus was on reflections and practices of the relationship between stage and the public and the possibility of a tragic experience to occur. It has been found that in the modern world, the mystique of excess need not be grand, but an increased attention to the common is demanded. The theater of contemporary tragedy is a place of intense awareness of loss, where the subject is confronted with the inevitable dissolution of being and with an experience of one's own finitude. In this context, the tragic in contemporary theater investigates the fragmented subject of the present world, touching on the old and always renewed experience of excess. The fundamental destiny of the tragic character is its desire to investigate for a greater truth in a world where there are no certainties and irrefutable postulates. It was verified that in performance art the creation of the tragic arises from affection, establishing a specific connection between the performer and the receiver, allowing the emergence of a tragic experience.

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SUMÁRIO:

Introdução 1

Experiência trágica: uma aproximação 5

A possibilidade de uma experiência trágica 6

O trágico teatral 10

A tragédia teatral no mundo contemporâneo 13

Tragédia sem o formato dramático 14

O trágico teatral como jogo 19

A tragédia e a morte 20

O trágico e o sujeito 21

Experiência trágica como experiência limiar 24

Pré-requisitos para uma experiência trágica 26

A experiência trágica na situação teatral 31

Experiência trágica e o estético 38

Teatro como jogo 42

Incorporação teatral 47

O processo de percepção no teatro pós-dramático 49

O espectador no jogo teatral 52

Efeito da tragédia 53

‘Anagnórise’ no teatro contemporâneo 54

Heiner Müller e o trágico 56

Teatro para uma outra realidade 57

Teatro ‘criminoso’ 58

A relação cena - público em Müller 59

Experiência teatral para Müller 60

Relação com o público 61

Renúncia ao público 62

Caminhos para os experimentos da ‘Estrada V’ 63

Estrada V - Parte I 76

Momentos da construção 84

Registros comentados do processo 86

Considerações finais 96

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Introdução

Ser alemão, ainda hoje, tem algo de trágico. As guerras e, principalmente, o nazismo 1 deixaram um peso sobre toda uma nação, que não pode ser pensada sem alguma ligação com o trágico. Isso também diz respeito a mim. Sinto uma responsabilidade maior, algum tipo de culpa por ter nascido alemão. Meu avô paterno foi membro do Partido Nacional Socialista. Ele não gostava de falar sobre essa época, foi prisioneiro de guerra até algum tempo após o fim da segunda guerra mundial, mas foi absolvido e liberado pela justiça dos aliados. Quero mostrar com isso que o trágico não é algo longínquo, nem de mim e muito menos dos alemães em geral. Um prova disso é o noticiário alemão, onde diariamente se publica algum fato relacionado à época do nazismo, mesmo que já se tenham passado mais de setenta anos desde a sua derrota.

A tragédia teatral possibilita uma aproximação do sujeito a esses momentos limiares através das suas características específicas, e ela é objetivo da pesquisa por ser condição para uma experiência trágica de um espectador. Escolhi Hans-Thies Lehmann como autor2 principal, por ele lidar com estas questões e pensar sobre os critérios necessários para uma experiência trágica poder acontecer.

Lehmann é um dos mais importantes teóricos do teatro contemporâneo e da estética teatral. Ele participou da criação do curso de ‘Angewandte Theaterwissenschaften’ na3 Justus-Liebig-Universität em Gießen e foi professor de Estudos Teatrais da Universidade

1 Segue um extrato de MANN, Thomas. Doutor Fausto.São Paulo: Companhia das Letras, 2015,

p.205: “Sim, nós somos um povo totalmente diferente, de alma poderosamente trágica, e estamos em oposição à sobriedade da lógica habitual. Nosso amor pertence ao destino, a qualquer destino, seja ele o que for, ainda que nos traga o ocaso que abrase o céu com o rubor de um crepúsculo dos deuses!”

2 Nascido em 22 de setembro de 1944 em Ehringshausen/Alemanha 3 Ciência Teatral Aplicada - Tradução F. D.

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Goethe, em Frankfurt am Main, além de ser membro da Academia das Artes da Alemanha. Lehmann, como teórico, tem uma aproximação muito profunda à prática do teatro contemporâneo, discutindo o limite entre o que é e o que não é arte e analisando o trágico neste contexto. Seu livro ‘Teatro Pós-Dramático’ foi amplamente discutido no mundo inteiro4 e me beneficiei com muitos aspectos novos durante minha formação teatral.

Quando fui à Berlim, no verão de 2014, eu perdi por poucos dias o lançamento do livro ‘Tragödie und dramatisches Theater’ de Hans-Thies Lehmann (2014) publicado na5 Editora Alexander Verlag . Consegui no escritório da Editora o áudio da apresentação do livro e assim pude acompanhar o Prof. Lehmann apresentando e discutindo seu livro e explicando, entre outras questões, o seu entendimento da experiência trágica de um espectador, usando como exemplo um extrato de ‘Wolokolamsker Chaussee ’ de Heiner Müller (1987). 6

Heiner Müller (1929-1995) é considerado um dos mais importantes dramaturgos da língua alemã da segunda metade do século XX e comparado em sua importância a Bertolt Brecht. Heiner Müller nasceu na antiga Alemanha Oriental (RDA), fator importante para sua obra, como ele mesmo destacava, pelo motivo da diferença de liberdade de expressão entre as duas Alemanhas, Oriental e Ocidental. Em um primeiro momento parece estranho ele ter escolhido viver e trabalhar no lado Oriental da Alemanha, onde reinava uma censura rígida, porém ele justificava esta atitude pela importância política dada a cada palavra em uma sociedade vigiada, arriscando-se constantemente e sendo censurado quase o tempo todo, podendo sofrer consequências graves, inclusive encarceramento. Assim, Heiner Müller preferiu a pressão maior das experiências em uma ambiente totalitário, conhecendo a democracia como turista, mas a ditadura como experiência corporal. (KALB, 1998, p.7)

Heiner Müller foi censurado durante muitos anos, o governo tirou-o de postos importantes e de destaque do mundo literário e artístico, mas nunca foi encarcerado, provavelmente por ter alcançado fama internacional e destaque artístico mundial, além de não ter demonstrado interesse em fugir da RDA, acontecimento comum entre os artistas da Alemanha Oriental. Não obstante, várias de suas obras só foram apresentadas na RDA com

4 LEHMANN,Hans-Thies.Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007 5 Tragédia e teatro dramático - Tradução Frank Düesberg (F.D.)

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muitos anos de atraso ou até somente depois da queda do muro de Berlim e da reunificação da Alemanha em 1990, significando censuras de algumas obras durante mais de 20 anos.

A maioria de sua produção foi lançada ou estreada em outros países, principalmente na Alemanha Ocidental e, quase sempre, na sua ausência. Todavia, de acordo com Kalb (1998, p.8), Heiner Müller fazia questão de continuar residindo e trabalhando na RDA, por considerar a opressão determinante para seu trabalho artístico, argumentando que, quanto mais o Estado se faz presente, de mais material um dramaturgo dispõe.

Heiner Müller foi um artista bastante produtivo, escreveu mais de vinte dramas, uma dúzia de peças radiofônicas, além de poesias, prosas, ensaios e palestras, algumas obras de artes visuais e ainda escreveu sua autobiografia. Como forma de comunicação e para divulgar suas ideias e opiniões, ele usava debates, entrevistas e diálogos, meios midiáticos apreciados na Alemanha e um dos moldes preferidos de Heiner Müller. (KOUDELA, 2003, p.29-30) Ainda trabalhou como diretor de teatro, dramaturgo e diretor artístico em grandes teatros, inclusive o ‘Berliner Ensemble’, um dos palcos mais importantes da Alemanha, que tinha sido fundado por Brecht. Em muitas das suas atividades foi laureado, inclusive com o Prêmio Büchner (1986), Kleist (1991) e o Prêmio Europeu de Teatro (1993). Suas obras teatrais, sendo constantemente apresentadas, continuam atrativas até hoje, seus livros e textos são encontrados nas livrarias e bibliotecas e sempre há lançamentos de novas interpretações das suas obras.

Com o livro de Lehmann na mão e Heiner Müller na cabeça voltei ao Brasil. Resolvi encenar Heiner Müller e especificamente a primeira parte da Estrada de Volokolamsk: Russische Eröffnung . Apesar de já existir uma tradução deste texto para o português7 (MÜLLER, 1993), resolvi fazer uma versão própria com o intuito de me aproximar mais ao texto. A partir deste texto, empregando o método da reescrita , muito utilizado por Heiner 8 Müller, escrevi o texto e o roteiro para a minha encenação intitulada ‘1941’. Nos preparativos para a mesma, comecei a aprofundar os estudos sobre a experiência trágica. Esta pesquisa fez

7 Abertura Russa Tradução F.D.

8 Reescrita entenda-se neste contexto com a elaboração de um texto baseado em um outro já

existente. Heiner Müller escreveu desta forma somente de Shakespeare: Hamlet, Macbeth, Anatomia Tito Fall of Rome, um comentário de Shakespeare e Medea.

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parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso e, em seguida, serviu como base para o projeto de pesquisa do presente mestrado.

O livro ‘Tragödie und dramatisches Theater’ de Hans-Thies Lehmann mostrou uma9 grande relevância para a pesquisa por levantar uma série de questões importantes. Considerei de grande importância o papel do trágico na história do teatro, a relação drama e tragédia e, principalmente, as considerações sobre a experiência trágica do espectador, por aperceber-me que este processo estava intimamente ligado com as escolhas tomadas na minha vida.

Na minha ida para Berlim em Julho de 2016, comecei a pesquisar material específico para a elaboração do presente trabalho. Busquei material em várias bibliotecas e locais sobre a experiência trágica além do que eu já tinha de Lehmann, ademais de autores e artigos sobre a relação de Heiner Müller com o público. A respeito de Heiner Müller, consegui a edição completa de sua obra , com o acervo integral do seu trabalho, somando mais de 800010 páginas. Grande parte deste material foi fichado e trabalhado durante a pesquisa.

Parte da presente pesquisa são dois textos que escrevi para os experimentos da ‘Estrada V’, ambos elaborados no início de 2017 pelo método da reescrita, inspirando-me no método usado por Heiner Müller em ‘A Estrada de Volokolamsk’, o qual foi baseado no texto com o título homônimo ‘Die Wolokolamsker Chaussee’ de Alexander Bek . A ‘Parte 1’ desta 11 escrita ficcionaliza a revolta no presídio de Alcaçuz em Pium/RN em 2016. Ela foi construído com base no texto ‘Wolokolamsker Chaussee - Russische Eröffnung’ (MÜLLER, 1987) que 12 eu traduzi em 2015 e da qual consta um extrato abaixo. A ‘Parte 2’ se baseia no livro ‘A ‘Wolokolamsker Chaussee IV - Kentauren (MÜLLER, 1987) para questionar a situação política e social no Brasil do início de 2017.

Entendo estes textos e os experimentos da ‘Estrada V’ como fragmentos que fazem parte de um contexto maior. Acredito que estas experiências compõem uma imagem maior, porém de forma alguma são conclusivas. Não existe um produto final, uma encenação

9 Tragédia e teatro dramático - Tradução (F.D.)

10 MÜLLER, Heiner. Band 1-10, Herausgegeben von Frank Hörnigk, Berlin: Suhrkamp Verlag, 2008. 11 BEK, Aleksandr A., Die Wolokolamsker Chaussee, Wien, Globus-Verlag, 1947

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terminada ou um processo encerrado, porém, o que talvez seja mais importante, tem uma série de experiências intensas e vivenciadas no espírito desta pesquisa.

A situação do mundo é trágica, mas parece que essa tragicidade não causa efeito quase nenhum. Assim, o impulso inicial e contínuo dessa pesquisa é um olhar sobre a possibilidade de uma experiência trágica causar algum efeito no pensamento das pessoas. Considerando um possível impacto deste trabalho no mundo, a vontade de desistência é imensa, porém, desde minha leitura de Erich Fromm ‘Haben oder Sein’ no final da minha adolescência, acredito 13 que temos que seguir impulsos que acreditamos serem importantes e verdadeiros, nem que a importância se resume somente a nós mesmos.

As perspectivas de Lehmann sobre a experiência trágica são de um possível ponto de vista de um espectador hipotético. Para me aproximar dessas ponderações eu apontei algumas das minhas experiências vividas, tanto em um contexto especificamente teatral, como alguns outros um pouco mais distantes, porém intimamente ligados à experiência trágica. O motivo principal para tal aproximação é o fato da experiência trágica ser algo totalmente pessoal e na sua essência intransferível. Assim, nesta pesquisa revisitei alguns momentos contundentes da minha vida para verificar a possibilidade de aplicar e discutir as cogitações de Lehmann em casos específicos.

Experiência trágica: uma aproximação

O que vem a ser uma experiência trágica e quais são as premissas para que um espectador a possa vivenciar? A pesquisa debruça-se primordialmente sobre essas duas questões e, logo de início, devo alertar que não lhes pude dar resposta inteira e conclusiva. Tal dificuldade explica-se pelas características intrínsecas da experiência trágica, por consistir, consoante a vivência de um espectador, em algo que se entrelaça e entremeia com uma estrutura individual distinta e previamente forjada por percepções, vivências, experiências pessoais e subjetividades únicas a cada um dos espectadores.

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Essas estruturas, que vêm à tona no instante exato em que a experiência trágica ocorre separadamente em cada indivíduo, são únicas e específicas para cada um dos espectadores que as experimenta. Isso por si só já aponta para a dificuldade com que se depara o pesquisador ao tentar capturar a experiência trágica a partir de uma visão mais acadêmica. Não obstante o desafio, me aproximei na pesquisa de certa conceitualização sobre o tema e, como meio para atingi-la, recorri à alguns autores que, combinados às minhas próprias experiências, me permitiram analisar até que ponto se faz possível consolidar, ao menos alguns critérios, que possam, porventura, serem generalizados em favor de uma visão mais ampla do fenômeno. Foi trabalhado um construto teórico, que facilita a compreensão desse fenômeno, buscando preceitos fomentadores para que uma experiência trágica possa vir a ocorrer.

A possibilidade de uma experiência trágica

Em alemão existem dois termos para experiência, ‘ Erlebnis’ e ‘ Erfahrung’ mas não existem duas traduções equivalentes em português. ‘ Erlebnis’ se refere a uma experiência imediata, vivida na qualidade de realidade específica, ao ato de experimentar algo, percebido 14 através dos sentidos, aproximando-se ao termo vivência. Já ‘ Erfahrung’ se constitui como uma experiência adquirida, que traz algum tipo de conhecimento e representa uma ou mais experiências imediatas acrescidas de uma reflexão a respeito . (CARNEIRO, 2013, p.60) 15

Nesta pesquisa refiro-me ao segundo termo, já que, de acordo com minha compreensão da experiência trágica como um momento fundamental da vida, a reflexão configura-se com um critério essencial, como será demonstrado mais adiante.

Muitos autores refletiram sobre a experiência, acerca da qual todavia não há unanimidade de uma conceituação. Observa-se que há duas grandes vertentes de concepções, uma que foca mais na experiência vivida, defendida pelo empirismo e outra que ressalta mais a reflexão ativa sobre uma experiência passada, representada pelo racionalismo. Nomeadamente nesta pesquisa não estou falando da experiência em geral, porém da experiência trágica de um espectador em um contexto teatral. Todas as reflexões sobre

14 Neste trabalho eu entendo o conceito de ‘realidade’ ou ‘real’ em um sentido mais amplo, que inclui

o imaginário.Ver: CHAVES, Wilson Camilo: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE REAL EM LACAN. http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n1/a06v14n1.pdf Acesso em 08/02/018

15 Jeanne Marie Gagnebin na tradução de ‘ Erfahrung’ acrescenta o aspecto de coletividade. Ver

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estética, o trágico e a experiência trágica em si, são feitas a partir do ponto de vista de um espectador. Isso é possível em pontos de vista objetivos, porém, quando se trata de um caso específico, de uma experiência trágica de um espectador, e onde suas subjetividades são condição sine qua non , refiro-me às minhas próprias.

É importante ressaltar, que a experiência analisada na pesquisa não é algo que o espectador possa buscar ou criar deliberadamente, é algo que ocorre a ele em um contexto teatral. É um acontecimento raro e subjetivo, que confronta o sujeito com ele mesmo e com o mundo ao seu redor. É o acometimento de algo intensamente estranho, que leva a uma reflexão, a busca por uma ‘resposta’, uma absorção pensante. Alimentado por uma experiência imediata, o espectador cria conexões com conhecimentos, vivências e sensações passadas e é atravessado por relações, muitas vezes, inesperadas, conduzindo a uma reflexão sobre si ou o mundo.

Um exemplo é a performance ‘Dilma’ de Naira Ciotti , elaborada nos experimentos 16 para a ‘Estrada V’. Eu tinha pedido para cada um dos performadores trazer um relato ou um experiência trágica para trabalhar uma cena individual. Naira tinha trazido o momento do impeachment de Dilma Rousseff, captado por um fotógrafo da Folha de São Paulo. Discutimos a cena e elaboramos o seguinte roteiro:

Naira se encontra no fundo do palco, agacha e grita “Dilma” com um tom de desespero e no volume máximo da voz. Ela levanta e anda alguns passos de olhos fechados e insegura, levantando as mãos como uma sonâmbula e, como em um pesadelo, tenta afastar algo assustador com as mãos. O corpo oscila pelo caminhar instável com as mãos buscando apoio ao redor do corpo, mas não acha nada a não ser o vazio e não consegue se livrar da insegurança e do desconforto. Após mais alguns passos ela desaba e fica de joelhos, começando a balançar o corpo como que jogada e empurrada por uma intempérie. Na frente dela um jornal. Ela pega um lápis de giz preto rabiscando grosseiramente enquanto começa a descrever seu desenho:

“Folha de São Paulo, Abril de 2016. Uma foto na capa. Dilma em uma blazer amarelo, calça preta, o braço esquerdo levemente jogado ao longo do corpo. Infantil. O outro braço começa a se erguer, protegendo a cabeça da

16 Drª Naira Neide Ciotti, Professora de Teatro do Departamento de Artes, Professora performer e

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presidenta do seu algoz. Ela dobra o cotovelo. Ela faz um gesto triste de adeus, que faz pesar seu corpo para um lado. Na manchete, Impeachment de Dilma sai hoje.”

Naira pega e segura o jornal na sua frente escondendo o rosto. Começa a rir, depois gargalhar até que o riso se transforma quase em um grito de desespero.

A meu ver, esta cena consegue evocar um imenso desespero de um indivíduo que sente que o mundo todo está conspirando contra ele e cujo trabalho de anos está sendo destruído em um instante. Isso me remete à força destruidora da natureza e à fragilidade do ser humano em um mundo que não é dele, mas que ele tem a pretensão de controlar, porém que restará sempre indominável, principalmente, se considerar o fator tempo. É importante ressaltar, que eu não fui buscar esta reflexão nesta performance, a cena que me remeteu à solidão e à fraqueza do ser humano e me levou às ponderações de como eu me sinto diante de forças maiores. Já tive essa sensação olhando o céu em algum lugar do Sertão em noite de lua nova, viajando de moto e acampando em algum leito seco de um rio . 17

Um outro momento marcante foi durante uma caminhada solitária na ilha sul da Nova Zelândia, longe da civilização e imerso em uma natureza exuberante. Senti a tragicidade de ser

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o único espectador de um palco grandioso. Vivenciei uma mescla de opressão com júbilo, uma intensificação do momento, que levou a um esvaziamento dos valores adquiridos, igualando a minha importância a de um grão de areia. 18

O mundo não está à frente do sujeito como um objeto que pode ser observado e analisado de forma neutra. De acordo com Lehmann (2014, p.146), estamos inseridos nele como seres dinâmicos, com nossos corpos, sensações e pensamentos, em estruturas voláteis, atravessadas por milhares de conexões, conscientes e inconscientes e com a tarefa impossível de lidar com a totalidade destas relações. Vivenciamos na experiência trágica uma permanência do imaginário emocionalmente carregado, sempre com um elemento surpresa, distanciamento, reflexão ou de ‘ insight ’ momentâneo. Mesmo em um sujeito, a experiência é constantemente 19 quebrada, fragmentada e não pode ser inteiramente fixada ou conceituada. É a conjugação de uma dimensão individual com uma coletiva, do passado histórico geral com o pessoal, onde intercorrem fusões do consciente com o inconsciente, influenciadas de forma oscilante por nossas escolhas.

Apesar de tudo isso, não se deve elevar a experiência trágica a um evento totalmente incompreensível ou a uma dimensão do estranho, que escapa por inteiro a uma conceituação. No entanto, também não se pode reduzir a experiência a um fato cognitivo objetivo e inteligível, em que não há mais necessidade de reflexão a respeito. Há requisitos e vivências que caracterizam e influenciam uma experiência trágica e estes precisam ser destrinchados para

18 https://www.finetoursnewzealand.co.nz/scenic-drives-south-island-new-zealand-blog182

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formarem um conjunto que deixam este fenômeno mais averiguado e para que se possa , ‘quod sid demonstrandum’ , tentar reproduzir as condições para a experiência trágica acontecer20 recorrentemente.

O trágico teatral

Em alemão existem duas palavras para tragédia, a ‘ Tragödie’ e o ‘ Trauerspiel’ . 21 ‘Trauerspiel’ significa literalmente ‘ jogo da tristeza’ . Este ‘ jogo da tristeza’ deve ser entendido como uma prática de lidar com a perda, trazendo a morte para o presente, através de um ritual, uma invocação ou por uma exposição. Tragédia, entendida assim, não é representação, não oferece uma imagem do mundo, nem sua descrição, ela é exceção, um encantamento do mundo para tentar aliviar ou ajudar a enfrentar a finitude da vida.

Para o espectador o trágico teatral pode representar uma experiência que inclui uma articulação estética, sem ser um fenômeno da realidade, que pode ser descrito como um modo artístico de reconhecimento do mundo, porém sem denotar uma caracterização do ser humano, nem um modo de se colocar perante a sociedade. Este trágico transcende um simples fenômeno estético ou um processo do pensamento, exprimindo também um afeto, o qual não pode ser reduzido somente a um processo filosófico de reconhecimento ou de reflexão.

A meu ver, trata-se de um catalisador que age sobre diversos níveis, um impulso sem direção definida, que se metamorfoseia em uma experiência trágica consoante às idiossincrasias específicas em cada sujeito. Em suma, o mesmo impulso pode significar uma forte emoção para um dado indivíduo, enquanto passa completamente despercebido por outro. A performance da despedida de Dilma poderia me conduzir a questionar profundamente a minha própria razão de existir, ao passo de apresentar-se inócuo a outro. Imprescindível para tal acontecimento é o afeto, apesar da multiplicidade das formas de afetação dos sujeitos.

Esse afeto se dá pela conexão com o depreendido e pela configuração de contaminação relacionada aos valores e pensamentos dos indivíduos e vinculado às respectivas associações

20 O que deve ser demonstrado. Tradução F.D. 21 Tragédia

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com o mundo. Diferente de magnânimos momentos de encenações trágicas do passado como as tragédias gregas, no mundo moderno, a mística do excesso não precisa ser grandiosa, não há uma busca pelos excessos heroicos de outrora, mas exige-se uma aumentada atenção com o comum, como, por exemplo, através de um exame minucioso das subjetividades do homem moderno ou das microrrelações sociais. Assim, um simples gesto de despedida pode ganhar um sentido mais amplo.

De acordo com Lehmann (2014, p. 603), Aristóteles entendia a tragédia como um ataque agressivo contra o público, para cumprir a função de gerar emoções, terror e piedade, ocasionando uma ‘ catarse’ incitando uma purificação, alimentado pelo intuito de tirar o espectador da sua posição confortável de mero observador e fazê-lo participar ativamente das questões relevantes para a ‘polis’. Esse pensamento pode ser expresso pelo seguinte enunciado: sem quebra de tabu não há arte que afete, sem riscos ou violações de preceitos provavelmente só se produz entretenimento.

A meu ver, reality shows como por exemplo Big Brother Brasil , não trabalham com a verdade da recorrência da opressão, porém com uma exploração de sensualidades superficiais, com o prazer do sofrimento alheio e com a impostura de emoções mercenárias. Na minha opinião, um teatro de qualidade não pode ser inofensivo, ele deve perscrutar pontos vulneráveis ou angustiantes e, amiúde, é preciso trabalhar com o que é moralmente indefensável, com o intuito de tirar o público da zona de conforto.

Infelizmente me parece que na sociedade atual prevalece um espectador buscando apenas entretenimento e diversão, lotando cinemas para assistir ‘blockbusters’ americanos, ao mesmo tempo, esvaziando os teatros. Esses espectadores representam um público buscando uma ‘cultura’ que quer esquecer o mundo como ele realmente é, a catástrofe constante, o sofrimento generalizado, a mentira e a hipocrisia. Já o teatro da tragédia e do excesso corre o risco de tocar em algo que seja lancinante, vergonhoso, assustador ou que incomode, algo que foi esquecido, escondido, negado ou que tenha desaparecido da superfície da consciência e por isso não atrai um público que busca entorpecimento.

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Mesmo se vivemos em uma sociedade do discurso e das mídias, onde todos os tipos de quebras de tabus superficiais são o dia a dia da comunicação em rede, ainda existem muitos tabus. A arte trágica anda em uma linha tênue entre um verdadeiro questionamento da compreensibilidade cultural e uma provocação da moda. A tragicidade representa um risco concreto de ultrapassar uma fronteira. Ela é memória da ‘ hybris’ , do desejo de transcender o 22 limite, que faz parte da tentativa humana de auto definição.

Conforme Lehmann (2014, p.172), existe uma conexão entre a formação do sujeito e a linguagem clássica das tragédias. O verso das tragédias tende a ser duro e afiado, criando, propositalmente, um isolamento e distanciamento do herói, alienado em sua peleja solitária, cercado por destruição e desolação. Essa linguagem da antiguidade não refletia apenas uma convenção retórica, ela fazia parte da manutenção do distanciamento e correspondia diretamente à experiência trágica. A exposição da presença física do herói na tragédia clássica era destacada pela solitária exibição do seu corpo no proscênio, visivelmente separado do coro e do público. Isolado, com sua voz saindo por trás de uma máscara, inserido no imenso espaço do ‘ theatron’ abaixo do céu aberto. Esta exibição do corpo do ator do herói no espaço vazio, objeto dos olhares e da atenção acarretava seu julgamento, primeiro pelo coro e, em seguida, pela pólis inteira, e, em conformidade com o pensamento da época, até dos deuses.

O indivíduo do Ocidente nascido no período clássico, assim a argumentação de Lehmann prossegue, tomava consciência de sua individuação e realidade específica, exatamente no momento em que ele escolhia assumir este lugar de elevação no palco da vida. O sujeito compreende neste instante específico, que o desejo de elevação causa isolamento e solidão, em razão da escrutinação implacável pelos outros, justamente por sua posição elevada. Diferente do herói da tragédia grega, onde o mesmo comparece perante a polis sabendo de antemão, que será condenado ao sofrimento e à morte.

O traço do inescapável de quem se expõe e cuja decorrência é notória, é o fundamento do teatro trágico. Isto compreende o paradoxo de que estas figuras chamam o destino sobre si mesmas, causando a ruína pela ambiguidade da ação autônoma, porém, de alguma forma, imposta para eles. Novamente trata-se de uma linha tênue entre o inevitável e o lógico. A partir

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do momento em que o destino se torna moralmente correto ou histórico, a experiência trágica deixa de existir e a tragédia se transforma em uma lição moral, religiosa ou histórica, perdendo seu efeito renovador.

A tragédia teatral no mundo contemporâneo

Em tempos incertos de conflitos inescrutáveis ao redor do mundo, onde assistimos e vivemos de forma impotente as crises e catástrofes cada vez mais diversas, a fé anti-trágica do poder da razão, de resolver de forma pacífica os problemas encontrados em todos os níveis e lugares, está se esgotando. A meu ver, fica cada vez mais difícil idealizar soluções ou pessoas específicas que possam resolver as inúmeras questões do mundo contemporâneo e faz pouco sentido fantasiar com heróis éticos os quais, com uma cura miraculosa, resolvem as questões que a humanidade enfrenta atualmente, principalmente se o cenário político, social e econômico denuncia uma outra realidade. Já não convém mais a falsa estilização dos poderosos, que se tornou ridícula diante da anonimidade dos processos económicos, geoestratégicos e sociais que pesam na vida das pessoas. A TV oferece aos observadores passivos um triste espetáculo de um mundo falido e nada mais acontece, a não ser a sensação de desamparo que aumenta junto com a sensação de impotência.

Por isso a tragédia teatral mantém sua relevância até hoje, já que no teatro da tragédia pode-se apresentar um retrato desiludido do sofrimento e do fracasso, sem buscar emoções ‘baratas’ pelo uso de utopias ou estilizações, que representam apenas um apaziguamento ou uma falsa ilusão. Pela compaixão com a fraqueza humana, pela conscientização da inadequação, da convivência com o terror, medo e o abalo dos ideais culturais, a tragédia tem uma ação anti-ideológica (LEHMANN, 2014, p.595). Essa qualidade pode provocar um antídoto à ideologização rasa da realidade com o qual a consciência tenta superar seu desamparo. Assim, o teatro da tragédia pode ir além de um posicionamento político, ele pode ganhar sentido pelo desencantamento dos mitos consoladores da possibilidade de viver em harmonia neste mundo, e no melhor caso convidar as pessoas a refletirem sobre seus destinos.

De acordo com Lehmann, no teatro contemporâneo os excessos trágicos podem se manifestar tanto por distúrbios agudos como por uma frugalidade silenciosa, levando a uma

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acentuação das incertezas e um auto-questionamento do teatro. Lehmann chama este teatro do ‘entre’ (LEHMANN, 2014, p.598), por criar uma tensão, um desejo de ver mais, sabendo da impossibilidade de ver ‘tudo’. A situação teatral reflete o momento da conscientização trágica do desejo. O aparecimento de algo que nunca aparecerá, uma cisão trágica intermitente que fratura o modelo da possibilidade de apresentação. A tragédia teatral desafia o pensamento retilíneo e simplista, mostrando que um comportamento ético e nascido da razão, pode levar ao fracasso.

Uma constelação pode aparecer, por exemplo, em um conflito onde dois partidos têm um direito normativo fundado. Cada um dos lados se sente amparado pelo direito absoluto, causando uma cegueira que torna o próprio direito como único, podendo prevalecer destarte apenas se tiver negando o outro. A tragicidade desta incompatibilidade pode aparecer a um público que observa esta constelação de outra perspectiva, idealmente neutra, por não estar defendendo a princípio nenhum dos pontos de vista. A distância do espectador é necessária para a compreensão do trágico, porque na vida real esta separação é inexistente. No fracasso existencial, a dor infinita do próprio erro é irremediável e destrói qualquer distância para o jogo teatral. Através do olhar estético, o sentido de unidade de uma tragédia é possibilitado e, pelo atravessamento de uma experiência trágica, pode-se chegar, a um auto-conhecimento.

Tragédia sem o formato dramático

Lehmann dedica uma grande parte do seu livro à análise da tragédia em um contexto dramático. (Lehmann, 2014 p.236-488) A experiência trágica exige a presença do trágico, porém quando se discute a tragédia teatral, o mais comum é se referir ao trágico em um contexto dramático, muitas vezes enquadrado em uma narrativa com início, meio e fim. Para que aconteça uma experiência trágica no teatro contemporâneo, a tragédia teatral precisa ser desvencilhada da identificação com o formato dramático.

Mais de dois mil anos após os parâmetros teatrais aristotélicos, a tragédia teatral contemporânea pode se caracterizar por uma opacidade e ausência de transparência, resistente a uma ampla penetração perceptiva e a uma maior racionalização. O teatro contemporâneo não se singulariza pelo drama, mas se evidencia muito mais por ações corporais e cênicas,

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acontecimentos auditivos e visuais em um espaço e tempo específico, com um processo material que implica uma deslocada afetação do espectador. Nos últimos 30 anos foram criados uma multiplicidade de abordagens, adaptações e atualizações da tragédia teatral. O motivo trágico pode se realizar no teatro contemporâneo tensionando as convenções tradicionais e as auto-confirmações culturais. Não se trata de desconsiderar ou eliminar o dramático por inteiro, mas de oferecer uma outra abordagem. e levar ao público um outro repertório cinestésico e mímico ou de criar uma atenção distinta, por exemplo, pelo uso de uma linguagem desnaturalizada através das linguagens corporais e gestuais.

Assim, o caminho para uma experiência trágica no teatro contemporâneo resulta em uma formulação do excesso trágico e uma reflexão virulenta do momento. Encontrei elucidações a respeito em alguns textos de Heiner Müller (Heiner, Gespräche 1, 2008a, p.442) onde ele constata, por exemplo, que é difícil existirem textos teatrais que já venham com a cena predefinida. Cada vez mais os autores e diretores querem fomentar a participação ativa dos espectadores na construção de cenas, criando mundos imaginários individuais, através de um questionamento afetivo inesperado do quadro teatral.

Para Heiner Müller, querer levar uma história pronta para o público, querer ‘explicar’ ou construir pontes tratava-se de um engano, pois espectador deveria ser levado para um espaço próprio de arte e de imaginação, criando sua realidade única, mantendo-se contra a realidade externa com uma existência própria. Como diretor, Heiner Müller pedia para os atores ‘separarem’ o texto das ações, em outras palavras, não representarem o texto com o corpo, fugir das ligações óbvias entre o texto falado e a respectiva corporeidade. Com isso, ele buscava incomodar o público, tirá-lo da zona de conforto e das convenções sem dar espaço para uma reflexão dominada pelo racional. Através desta separação, Müller buscava uma atenção aumentada, dificultando a posição de um mero observador sem envolvimento.

A encenação pode afirmar um ponto de vista em um momento e afirmar o contrário logo em seguida, desdizendo o que foi dito um minuto antes. Desta forma, a encenação cria uma dificuldade específica com o intuito de oferecer ao público a oportunidade de assumir um ponto de vista próprio. Heiner Müller queria que o espectador se sentisse como estivesse sendo julgado em um tribunal. (MÜLLER, Heiner, Gespräche 1, 2008a, p.443) Heiner Müller

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pôs isso em prática na encenação de HAMLET-MASCHINE com a estreia no dia 24 de março de 1990 no Deutsches Theater em Berlim. A encenação tinha uma duração de quase oito23 horas iniciando com o texto a seguir:

Eu era Hamlet. Estava parado à beira-mar e falava BLA-BLA com a ressaca. Atrás de mim, as ruínas da Europa. Os sinos anunciavam os funerais nacionais: assassino e viúva um casal: em passo solene atrás do caixão do nobre cadáver os conselheiros, choramingando em luto mal pago. QUEM É O CADÁVER DO CARRO FÚNEBRE / POR QUEM TANTO SE CHORA E TANTO SE GRITA / O CADÁVER É DE UM GRANDE / HOMEM QUE DAVA ESMOLAS, nas fileiras da população, obra de sua política. ERA UM HOMEM QUE APENAS TOMAVA TUDO DE TODOS. 24

Numerosas associações são possíveis a partir deste texto, além das referências mais óbvias ao Hamlet de Shakespeare , a obra trata de guerras e ditaduras, dos gêneros e da25 morte, remetendo-me especificamente à Kafka , quando aparece o inevitável, na descrição de 26 algo indescritível, escondido no fundo da alma humana, mas sempre presente pela ameaça suprimida. Esta criação possibilita abundantes interpretações, abrangendo muito ‘material’ e27 uma apresentação das poucas linhas deste composição teatral transforma-se destarte em algo exigente para o público. Uma ‘abertura’ para perspectivas múltiplas depende em grande parte do espectador no qual a recepção ocorre . Assim, a inserção no momento histórico traz uma 28 grande diferença. Quem viveu na RDA durante a ditadura vai fazer uma leitura diferente de 29 quem viveu no outro lado do muro de Berlim e ambos vão ser impactados de forma distinta 30

23 https://www.deutschestheater.de/

24 MÜLLER, Heiner. Medeamaterial e outros textos. Tradução de Christine Röhrig e Marcos Renaux

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 206

25 William Shakespeare (1564 - 1616) foi um poeta, dramaturgo e ator inglês, tido como o maior

escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do mundo.

26 Franz Kafka (1883 — 1924) foi um escritor de língua alemã, autor de romances e contos,

considerado como um dos escritores mais influentes do século XX. Em relação à morte, refiro-me principalmente à ‘Metamorfose’ e à morte de Gregor pelas maçãs arremessadas pelo pai. Uma morte nesse sentido para mim é o final da Parte II da ‘Estrada V’ quando o homem se transforma

parcialmente em uma mesa.

27 Termo muito usado por Heiner Müller

28 Para mim, esse texto remete muito às múltiplas interpretações possíveis do ‘Fausto’, de Goethe,

onde cada nova leitura descortina outras compreensões.

29 A Alemanha Oriental, oficialmente República Democrática Alemã (RDA), foi um Estado criado em

1949 no território da zona de ocupação soviética após a segunda guerra mundial.

30 O Muro de Berlim foi construída em 1961 pela RDA durante a Guerra Fria para manter a divisão

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logo após a queda do muro . Em Müller, o corpo do espectador é ‘atravessado’ e, 31 dependendo da sua ‘porosidade’, arrastado em uma ou outra direção. O objetivo não é o público entender algo ou receber uma mensagem predefinida. Trata-se mais de um convite para esvaziar-se e sentir a presença de uma polifonia, convidando cada um a se deixar levar para uma forma de concepção. Não há uma moral, nem soluções, são apenas fomentos para processos de pensamentos, trazendo impressões de profundas angústias e advertências, como também incompreensão e rejeição. Para mim, Müller expressou isso em seu poema “Schwarzfilm” do ano 1993: 32

Das Sichtbare

kann fotografiert werden O PARADIES

DER BLINDHEIT Was noch gehört wird Ist Konserve

VERSTOPF DEINE OHREN SOHN Die Gefühle

sind von gestern Gedacht wird Nichts Neues Die Welt

Entzieht sich der Beschreibung Alles Menschliche

Wird fremd 33

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche reflete a tensão entre a gravidade existencial da tragédia e a liberdade estética do público em algumas fases do seu pensamento. Considerando que o participante e observador tem perspectivas sobrepostas da existência, o teatro fornece uma participação por analogia. Nesta perspectiva, as características do teatro abrem uma liberdade que Nietzsche resumiu na metáfora do ‘terceiro olho’, que enxerga o teatro do mundo com uma certa distância e encontra um refúgio nisso, mesmo quando as paixões

31 Durante uma onda revolucionária de libertação iniciado pelo líder soviético Gorbachev, o governo

da Alemanha Oriental anunciou em 9 de novembro de 1989 o fim do muro.

32 MÜLLER, Heiner. Werke 1: Die Gedichte Herausgegeben von Frank Hörnigk. Berlin: Suhrkamp

Verlag, 1998 ‘Filme preto ’ Tradução F.D.

33 O visível / pode ser fotografado / OH PARAÍSO / DA CEGUEIRA / O que ainda se ouve / É

conserva / ENTOPE SEUS OUVIDOS FILHO / Os sentimentos / são de ontem Não tem / pensamento novo O mundo / foge da descrição / Tudo humano / Fica estranho. Tradução F.D.

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parecem tomar conta do sujeito (NIETZSCHE, 2007, p.311). O teatro, visto assim, ‘abre o terceiro olho’ para descortinar, através dele, os outros dois mundos.

Esta metáfora se destaca pela compreensão de que é preciso uma visão imaginária como alargamento do ponto de vista mais ‘objetivo’. É um aumento da visão para dentro, que permite que o indivíduo crie um distanciamento para si mesmo, para poder se enxergar. Isto leva ao reconhecimento implacável da possibilidade de autodestruição. De acordo com Trautsch (2008, p. 7), o conhecimento trágico, que acarreta a perda de confiança no mundo,34 pode trazer a perspectiva de um auto-conhecimento distanciando, que faz com que o sujeito possa suportar a vida, para gradualmente compreender, que a tragédia permite uma forma existencial de enxergar o mundo.

Em nosso mundo midiatizado é importante ressaltar, que o trágico não é um simples mecanismo de acionamento emocional, onde uma dimensão privada traz uma reação individual de pena ou de comoção. O trágico, ao qual eu me refiro aqui, é oriundo de um processo de construção de cena, figura ou de ações, seguido de uma cisão do estético e uma reflexão, que pode levar a uma compreensão distinta da apreensão do herói, sendo esse um entendimento que articulou uma conexão com um espectador específico. A vivência do herói é transmitida de forma estética, e através da projeção, compreensão e da empatia, essa assimilação pode levar a uma experiência compreensível do receptor, que é distinta para cada um, de acordo com sua subjetividade. Como então diferenciar entre o trágico e o apelo emocional? Essa diferenciação não é inteiramente objetiva, porque o trágico pode aparecer em muitos momentos, porém o primeiro divisor é a cisão do estético. Se temos apenas um acúmulo de momentos trágicos que querem somente atrair a atenção do espectador, nada mais vai acontecer.

De acordo com Lehmann (2014, p.181), a comoção ou a identificação precisa ser interrompida, o espectador tem que enxergar o trágico com um distanciamento, superar a emoção pura e criar um separação pela conscientização do processo de apresentação. Isso pode acontecer através de um questionamento da sua própria presença como espectador, seu papel de observador, com a sua identidade presumida, que também é questionada neste processo. Se o

34 Formado em composição, filosofia e germanística em Berlim e Londres com doutorado na

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apelo emocional traz só uma afirmação de presença, o trágico pode acarretar a exposição ou uma deposição do sujeito.

Um exemplo disso para mim é a performance de San Mascarenhas apresentada no 35 Deart em 2015, onde San se pendurou na árvore na frente da lanchonete, com ganchos de carne de açougue enfiados por um especialista de perfuração na pele das costas. Há uma transgressão das normas, da moral, do bom senso. Imaginei a dor com um gosto de horror, porém há uma mistura de prazer na transgressão, um alívio de não sentir a dor na própria pele, destarte, um foco muito grande imaginando como deve ser esta sensação específica de se pendurar desta forma. Em um segundo nível tem uma forte estetização do corpo pintado todo de branco, o rosto impassível e a recitação de poemas com uma intensificação da corporalidade extrema através de uma gota de sangue que desceu lentamente pelas costas saindo de um dos buracos furados. Continuamente senti uma invasão do real, a dor física, mesmo imaginando a preparação e o consentimento da performer. A estetização é quebrada pelo questionamento se eu quero ver isso, misturado com a pergunta sobre a motivação da performer para esta ação. Me coloquei a pergunta: por qual motivo eu me submeteria a um procedimento desse? Sendo assim, para mim houve uma experiência trágica e lembro dela bem até hoje.

O trágico teatral como jogo

A tragédia no teatro, sendo mais ou menos dramático, é uma possibilidade de explorar, através do jogo, a conflituosidade de situações específicas, que podem ser alimentadas, por exemplo, por interesses em questões pessoais, políticos ou culturais. Muitas vezes, essas indagações se inspiravam tanto em fatos reais quanto em mitos, com uma relevância real para a respectiva situação. Na modernidade, estes conflitos são cada vez mais difíceis de serem captados pela representação de ações simples e como houve uma mudança considerável dos paradigmas do teatro no século XX e XXI, estes não se restringem mais exclusivamente à lógica das apresentações dramáticas.

35 San Mascarenhas é atriz e performer de São Paulo e trabalha entre outros temas com a prática da

suspensão corporal. http://www.frrrkguys.com.br/entrevista-com-a-artista-multimidia- san-mascarenhas/ Acesso em 14/02/2018

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Com a redução do uso dos meios dramáticos e com a valorização de outras formas teatrais, que deixaram a escrita teatral fora do topo da pirâmide das hierarquias, se buscou a tragédia em outros formatos, além do texto literário representado no formato dramático. Na consideração da tragédia teatral houve uma ampliação das visões para outros fatores além do texto. A tragédia não se encontra apenas na escrita, nem depende somente de uma dramatização teatral, ela se cria na presença, na pluralidade de vozes, em uma dinâmica própria e em uma constelação específica teatral. De acordo com (LEHMANN, 2014, p.154), o princípio básico da tragédia no teatro contemporâneo não é a ‘mimese’ , o foco está no jogo teatral com todas as suas implicações e conexões com o público, que permite uma abertura para outros horizontes, talvez, até, uma penetração do porvir mais profundo do que dantes.

A tragédia e a morte

O confronto com a morte é uma experiência solitária, mas os pensamentos a respeito se referem muito mais à morte do outro. Quando penso na minha morte, penso mais o que isso poderia causar aos outros, do que tento imaginar a passagem para o desconhecido. A palavra ‘ morte’ parece uma metáfora vazia para algo desconhecido, como o nada absoluto, mas a experiência do vazio, sua insustentabilidade e intolerabilidade é muito pessoal. Para enfrentar este dilema dos seres humanos, a tragédia teatral inserida em um coletivo teatral oferece uma possibilidade de se aproximar à morte de uma forma muito singular. No caso de sofrer afetos muito fortes, penso que existe uma tendência de se unir a outras pessoas. Em um funeral ou um momento de grande tristeza, com emoções significantes fora do dia a dia, que vão além de uma comoção passageira, muitos sentem vontade de se reunir aos outros. O motivo pode ser a necessidade que temos para dividir o peso da perda ou para não termos que enfrentar sozinho a face da morte. O teatro da tragédia cria uma ponte, uma comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos, ele oferece uma aproximação a um pensamento indesejável, porém inevitável para a maioria em algum momento.

Uma das questões da tragédia contemporânea é a mudança do significado da morte e a relação das pessoas com o fim da vida. Na sociedade moderna, a morte é combatida na ciência e na tecnologia, ela se transformou em um longínquo horizonte inimigo e ela perdeu seu

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respeito como realidade cultural. A morte se tornou perversa, sem espaço de realidade, sem real significado, apenas pensado, no último caso, como condição final do corpo.

A tragédia teatral pode oferecer uma abordagem e um significado diferente da morte como ela é tratada na cultura trivial, que oferece uma abundância de mortes em noticiários, seriados e filmes como também em guerras e catástrofes reais ou fictícias. Para Lehmann (2014, p.174,177), essas mortes não fomentam uma reflexão, elas representam mais um apaziguamento, um pseudo-tratamento, no qual as mídias atuais se especializaram, explorando-as, apenas para ganhar mercado. Os meios de comunicação em massa buscam emocionar o público apenas para ganhar mídia, porém não aprofundam o tema. Disso resulta um medo difuso da catástrofe, violência ou do ataque terrorista e uma sensação discreta de alívio de não se encontrar neste meio, misturado com sensacionalismo e um desejo de ver mais.

O trágico e o sujeito

Conforme Lehmann (2014, p.586), o homem da antiguidade sofre a experiência da impotência da sua autonomia de ação, contra toda a potência dos deuses do Olimpo, porém, desde aquela época, já alimenta uma semente de revolta contra a ordem mítica estabelecida. O sujeito da tragédia do século XVI e XVII se articula e se constitui pela rivalidade e luta por reconhecimento nas relações interpessoais. É nesta época que o sujeito começa a tomar conta da realidade e ter, aparentemente, algum controle sobre sua existência. É o ponto alto do teatro dramático, que abala e critica justamente esta consciência autocrática. No final desta linha temos o sujeito fraturado da contemporaneidade, com as categorias tradicionais dissolvidas, que eram o fundamento da concepção da pessoa dramática. Nesta dinâmica da história da tragédia encontramos analogias notáveis entre o teatro da antiguidade e as formas mais recentes de teatro. Há uma retomada da proximidade com o ritual, do conceito do coro, de uma medialidade além do texto, criando um outro tipo de subjetividade.

Mas, ao longo de toda esta trajetória, o impulso trágico nunca desaparece completamente. O trágico como experiência de uma excessividade interna, de uma auto-transcendência do sujeito, se mantém em muitas formas teatrais, não só no drama, encontrando no teatro uma condição essencial de apresentação. Neste contexto, o trágico no

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teatro contemporâneo investiga o sujeito fragmentado do mundo atual, tocando na antiga e sempre renovada experiência do excesso. A descrição do ser humano através das suas paixões, pretensões, aparentes ou verdadeiras loucuras e, às vezes, até pelas suas inércias ou incapacidades de agir, se define em grande parte pela sua luta contra padrões estabelecidos, sua busca por esticar os limites além do permitido ou do pensável. Assim, de acordo com Lehmann (2014, p.586), o destino fundamental do caráter trágico é seu desejo não negociável, na investigação por uma verdade absoluta e incontestável, em um mundo onde não há certezas e postulados irrefutáveis.

Para Lehmann (2014, p.587), a tragédia é um formato exemplar de apresentação do dilema da impossível unidade humana. O trágico acontece onde a subjetividade experimenta seus limites e uma necessidade interna de se desvendar se torna contra si mesmo. Tem algo que impulsiona o ser humano para explorar suas fronteiras, parece que a vida em si não é suficiente, algo importante acontece quando alcançamos o limite do possível, testando as demarcações do âmbito do inconcebível.

De acordo com Lehmann (2014, p.589), na presença do trágico, a perda de substância do sujeito se articula, como uma característica da realidade filosófica e sociopsicológica do mundo contemporâneo. Não se trata de uma liquidação do sujeito, mas de outras abordagens, focando ações impensáveis, tentando encontrar imagens para algo, que não se deixa enquadrar nos argumentos morais, filosóficos ou políticos comuns. Com a perda da segurança do pensamento de uma continuidade do indivíduo, sua fragmentação e reconstrução incessante, o conceito de unidade do sujeito se torna um mito, dividido pela Sociologia em vários papéis, que precisam ser negociados para formar algum resto de identidade.

Lehmann ainda argumenta (2014, p.589), que a formação da consciência do sujeito se dá por um campo de pistas espalhadas no inconsciente que, muito por acaso, podem constituir a confissão de uma ‘verdade’ que não consegue se justificar e que não garante uma verdadeira autoconfiança do sujeito. Isso é uma possível resposta à consciência da determinação das nossas ações sociais, inconscientes, culturais e biológicas, que buscam heróis compensatórios com verdadeiras capacidades para lidar com este mundo, porém trazendo a consequência de tirar a consciência de responsabilidade do indivíduo. A tragédia traz à tona esta impotência

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que, diferente das imagens compensatórias de heróis, não permite uma auto-descarga, mas aponta para o abismo.

A meu ver, a questão da identidade do sujeito contemporâneo se coloca cada vez mais na virtualização do nosso mundo. Identidades são apropriadas e trocadas espontaneamente, relações e responsabilidades são assumidas e, da mesma forma, facilmente deixadas. A falta de identidade é quase natural, apesar de uma sensação virulenta da experiência de desamparo desesperador.

O teatro contemporâneo espelha essa tendência em encenações repletas de elementos ‘pop’, vídeos, jogos frontais, discursos agressivos e quebras estilísticas criando, destarte, um espaço aberto, parecido com a realidade do dia a dia, preenchido por processos de alargamento e superficialidade apontando para uma dimensionalidade rasa da vida. O valor da profundidade caiu, no seu lugar ficou a vida em rede, conectada superficialmente, copiada, infinitamente reproduzida, encaminhada e multiplicada. A cultura e a identidade ficaram planas, mal preenchidas pelos fluxos de informações interligadas e infinitamente diferenciadas, com percepções superficiais de encontros sem profundeza.

A dramatização de uma informação é um dos instrumentos usados por alguns meios de comunicação para explorar um fato, muitas vezes sem nenhuma importância, através dos afetos e emoções, com o principal objetivo de chamar atenção, de ganhar mais mídia, para logo em seguida ir para a próxima ‘notícia’, sem deixar nenhum vestígio de um pensamento mais profundo ou algum significado. Vivemos em um mundo inundado por informações, porém sem que estas acrescentem algo essencial às vidas.

Poder-se-ia pensar que a dramatização aproxima a informação à realidade, porém se não tiver uma motivação específica, como por exemplo fomentar uma reflexão, a dramatização leva a um vazio, provavelmente sem deixar rastro, apenas para ser renovado por novas ‘informações’. Algumas destas informações tem a qualidade de permitir uma melhor dramatização, como notícias sobre catástrofes, guerras, crimes violentos, julgamentos e casos individuais de grandes sofrimentos de famosos. Esses acontecimentos foram usados, também, em tragédias, por representarem notícias atrativas, que permitiam iniciar um questionamento.

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A grande diferença é que autores de tragédias buscavam por trás da superfície do terror e do afeto, uma profundidade humana maior, um questionamento, algo significativo para o mundo. Enquanto as notícias buscam apenas provocar, continuamente, uma série de afetos e emoções, a tragédia representa o momento da parada e interrupção, da reflexão sobre os acontecimentos.

Para Lehmann (2014, p.593), o formato estrutural mais poderoso desta parada, desta suspensão, sempre foi o drama, por permitir um desdobramento de um contexto pelos meios dramáticos, levando a uma demora pensada na lógica interna dos acontecimentos, fomentando, por conseguinte, uma reflexão. Muitas mídias contemporâneas assumiram uma versão encurtada desta dramatização, usando a notícia da catástrofe pontualmente, sem a mediação do afeto com memória, reflexão e consciência crítica. O esquema do drama trágico como imaginário melodramático é tão comum, que as chamadas das notícias já são suficientes para iniciá-las.

Entretanto, este microdrama só funciona na sua brevidade como melodrama, não há reflexão, nem profundidade de pensamento e, a meu ver, isso representa basicamente o mundo das mídias de comunicação social. Nas mídias socias como Facebook ou Instagram, apesar da nomenclatura ‘social’, observo muito pouco intercâmbio entre as pessoas. Prevalecem encaminhamentos de mensagens ou vídeos de origens anônimos, promovendo ações, dando mensagens ou divulgando receitas de cozinha de desconhecidos, tanto pelos encaminhadores como pelos que assistem. O que, no início, parecia fomentar uma troca maior entre um número aumentado de pessoas, se transformou, na minha opinião, em um mundo séptico de representações virtuais, quase sem conexão da pessoa consigo mesmo e entre os ‘conectados’ e milhares de ‘amigos’.

Experiência trágica como experiência limiar

A experiência trágica é uma experiência limiar. É uma passagem, um passo de um estágio para um outro e como não se trata de um acontecimento relâmpago, já que envolve alguns critérios, inclusive uma reflexão, remete a um transcurso, um recorte. Como a soleira

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de porta, ocupando algum espaço que nem é dentro nem fora, a experiência pode levar você para um ou outro lado ou lhe segurar por algum tempo neste espaço de reflexão e questionamento. Esta ombreira ou umbral é um portal que remete à uma passagem mítica, um ritual, a separação de dois mundos cujo atravessamento pode transformar completamente o passante. A questão é onde encontrar estas transições nas sociedades ocidentais?

Walter Benjamin (1982, p.617) escreve “In dem modernen Leben sind diese Übergänge immer unkenntlicher und unerlebter geworden. Wir sind sehr arm an Schwellenerfahrungen geworden.”36 A meu ver, a experiência trágica é uma forma de experiência limiar cada vez menos experimentada devido à configuração atual da sociedade. Jeanne Marie Gagnebin (2014, p.38) reforça:

Se o tempo na modernidade - em particular no capitalismo - encolheu, ficou mais curto, reduzindo-se a uma sucessão de momentos indistintos sob o véu da novidade (como no fluxo incessante de produção de novas mercadorias), o resultado dessa contração é um embotamento drástico da percepção dos ritmos diferenciados de transição, tanto do ponto de vista sensorial como no que diz respeito à experiência espiritual e intelectual. As transições devem ser encurtadas ao máximo para não se “perder tempo”.

Penso que o desvio de pensamento não se encaixa no perfil de comportamento do consumidor, não há fomento à suspensão de valores, nem à indecisão . A disposição para 37 experiências limiares é ressecada, a vida é retirada, pouco se experimenta a intensidade da vida, nem se aproxima da dor da morte. Vejo poucos correndo riscos, a maioria padece no corre-corre extenuante do dia a dia e da indiferença de uma vida aparentemente administrada pelos padrões pré moldadas da sociedade vigente. A meu ver, a experiência trágica como um

36 Dentro da vida moderna estas transições são cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar.

Ficamos muito pobres nestas experiências limiares. Tradução F.D.

37 Para exemplificar, quero trazer a experiência da minha filha mais velha, Sofia, que foi aprovada na

Universidade de Miami. Lembrando da minha época de universidade na Alemanha, pensei que ela ia ter incentivos para refletir a sua vida, o mundo e os valores da sociedade. Constatei que a

universidade dela, pelo menos no curso de economia, não fomenta esses pensamentos. A metodologia e o conteúdo são totalmente mercadológicos, é uma continuação do modelo escolar básico de transmissão de informações com único objetivo de inserir melhor o alumni no mercado de trabalho. Na minha análise muitas das universidades particulares do Brasil funcionam dessa forma, quando, ao invés de fomentar o pensamento crítico, apenas repassam conhecimento com o intuito de lucrar.

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momento limiar é uma possibilidade de afetar as pessoas de forma profunda. Gagnebin (2014, p.40) comenta autores como Freud e Proust buscando:

(…) reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do intermediário, da suspensão e da hesitação - contra as tentações de taxinomia apressada que se disfarça sob o ideal de clareza. (...) ousar pensar devagar, por desvio, sem pressupor a necessidade de um resultado ao qual levaria uma linha reta. Trata-se, portanto, de ousar abandonar as ilusões de soberania e de controle do assim chamado sujeito do pensar e do conhecer em prol da multiplicidade e da riqueza do real (...)

Acho que podemos aplicar estes mesmos desejos para a experiência trágica como um momento de distanciamento de valores pré-fixados, de desvio e estranhamento . É uma 38 tentativa de extensão de um momento limiar escasso. Um desses instantes de experiência trágica natural é ameaça de vida, por exemplo, em caso de doença. Desde sempre observei que muitos grandes artistas passaram por uma ameaça de vida, que, a meu ver, fez eles repensarem seus valores para então se dedicarem à sua arte.

Pré-requisitos para uma experiência trágica

Critérios objetivos para o acontecimento de uma experiência trágica de um espectador são difíceis de designar, porém, Lehmann sugere a possibilidade de elaborar um construto teórico, com alguns critérios que podem, eventualmente, levar a uma experiência trágica. Sem dúvida, cada um destes critérios a seguir tem suas variações e em cada caso precisam ser analisados, como e até onde eles se aplicam. O objetivo é esclarecer por estes critérios como a experiência se constitui, para tentar facilitar a compreensão do referido fenômeno.

Ação : O primeiro critério para Lehmann (2014, p.74) é a ação. Para que uma experiência trágica possa acontecer, faz-se necessário alguma forma de ação. Principalmente com o advento do teatro contemporâneo, não é possível criar uma conceituação unânime da constituição desta ação ou do formato respectivo. No teatro temos ação representada, a ficção,

38 “Kafka foi o gênio do isolamento. Ensinou-nos que nada temos em comum com nós mesmos, muito

menos com terceiros.” em BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p.226

Referências

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