• Nenhum resultado encontrado

EXPERIÊNCIAS QUE CONSTITUEM A IDENTIDADE CAMPONESA E A RELIGIOSIDADE

Meta 2: Universalizar o ensino fundamental de nove anos para toda a população de

3. DIÁLOGO ENTRE EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DO CAMPO

3.3 EXPERIÊNCIAS QUE CONSTITUEM A IDENTIDADE CAMPONESA E A RELIGIOSIDADE

A partir do modo de viver desses camponeses pesquisados, é possível compreender os costumes enquanto constitutivos de tradições culturais. Thompson (2010) faz uma distinção entre costume e tradição, afirmando que o costume está vinculado às lutas concretas, enquanto que a tradição é menos sujeito às transformações:

No século XVIII, o costume constituía a retórica de legitimação de quase todo uso, prática ou direito reclamado. Por isso, o costume não codificado e até mesmo codificado estava em fluxo contínuo. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para mudanças e a disputa, uma arena na qual os interesses opostos apresentavam reinvenções conflitantes. Esta é a razão pela qual os interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. Esta é a razão pela qual se precisa ter cuidado quanto à generalização como a cultura popular (THOMPSON, 2010, p. 16-17).

A argumentação do historiador permite pensar as práticas e os costumes que constroem tradições, nas suas práticas religiosas, nos mutirões e nas experiências que resistem no tempo, mesmo com todas as mudanças que ocorreram nos costumes também do grupo investigado. Ao longo de milênios os camponeses domesticaram grãos e cereais e se tornaram plenos agricultores, domesticaram também vários animais e se tornaram pastores e criadores. Muitos saberes populares estão presentes na vida cotidiana dos camponeses, pois fazem parte da cultura, da tradição e dos costumes, trata-se de um saber da comunidade, constituindo e perpassando coletivamente, não é um conhecimento que ficou guardado a sete chaves, mas um saber que resistiu/sobreviveu por ser transferido entre os grupos sociais. A proposta desta investigação é dialogar com as pessoas sobre como seus antigos costumes resistiram ao progresso e à existência da imposição de uma cultura urbana, para tanto busco em Thompson elementos que ajudem a fazer o debate teórico.

Para Thompson (2010, p. 14), o costume é a principal diretriz da vida humana: “O costume é mais perfeito quando tem origem nos primeiros anos de vida: é o que chamamos de educação, que, com efeito, não passa de um costume cedo adquirido”. Essa relação direta entre educação e costumes em comum de Thompson interessa a esta investigação, principalmente sobre conhecimentos:

Camponês que tem o seu saber desqualificado foi por perderem a transmissão oral da sua bagagem de “costumes”. O conhecimento não só amplia como multiplica nossos desejos, portanto, o bem estar à felicidade de todos os Estado ou Reino requer que o conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos limites de suas ocupações e jamais se estenda, além daquilo que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que é alheio ao seu trabalho e emprego menos capaz será de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria e contentamento (MANDEVILLE apud THOMPSON, 2010, p.15).

O autor refere-se à valorização, ou seja, em oportunizar os costumes em forma de saberes que só estavam registrados na memória dos camponeses, como privilégio da cultura popular39.

Concordo com Thompson (2010, p. 18) quando diz que “pela transmissão dessas técnicas particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da coletividade”. Percebi, durante a pesquisa, que o jeito peculiar que os camponeses têm em perpassar conhecimentos/saberes era no trabalho cotidiano com a vizinhança, pela necessidade, pela ajuda. Isso constituiu a cultura e Thompson (2010, p. 21) refere-se à cultura

39

Cultura Popular pode sugerir numa inflexão antropológica influente no âmbito dos historiadores sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura, entendida como sistema de atitudes, valores, significados compartilhados, e as formas simbólicas em que se acham incorporados (THOMPSON, 2010, p 17).

plebeia como do povo porque consolida aqueles costumes que servem dos interesses do povo; não estamos diante de uma cultura tradicional, mas uma cultura peculiar.

A cultura camponesa é uma cultura de significados que se consolida nos costumes para Thompson (2010, p. 24), quando mais uma vez gerações sucessivas aprendessem com as outras. A partir de Thompson (2010), é possível compreender que as novas gerações, os educandos das escolas do campo, filhos de camponeses, têm a possibilidade de continuar com a cultura camponesa, no interior da qual são constituídas e fortalecidas as identidades, desses sujeitos sociais. A escola do campo local em que precisa interpretar os saberes dos/as camponeses/camponesas e o mundo em que vivem. A Educação do Campo precisa garantir em seus currículos a possibilidade para abrir caminhos, fortalecer e divulgar a cultura entre as gerações mais novas.

No processo de pesquisa, na escuta de suas vozes, nos relatos e depoimentos, não fica difícil compreender que a escola do campo é um espaço para o diálogo cultural, considerando não apenas o educando, mas também toda a comunidade. Percebo como as escolas pesquisadas têm uma relação com a cultura e o saber da comunidade; nesse sentido, a fala da educadora E5 me permite refletir:

E5 - Na roça uma criança sabe mais que o seu professor urbano a respeito do lugar em que vive: as matas, os animais, as plantas, as falas, o imaginário. É claro que o professor tem que ensinar é justamente aquilo que não é sabido, é isso que esperam os alunos e suas famílias.

De acordo com a fala da educadora, carregada de significados, a escola do campo é um lugar do diálogo cultural, pois considera o educando, a família, a comunidade e seus saberes e fazeres. Como no campo, de forma geral, as escolas ficam no centro da comunidade, junto a ela encontra-se o lugar de reza e também de lazer. Ela é parte da centralidade da comunidade.

Ao visitar as famílias, ao trabalhar a partir do que deseja e necessita a comunidade escolar, é possível sentir esses sujeitos em sua historicidade, lutas e conquistas. Na escola do Campo foi possível observar, através das ações que a escola desenvolve, a construção de um currículo potencializado da cultura/identidade camponesa, pois as oficinas que ali já foram realizadas abordam as experiências/vivências, possibilitando fazer e fazer-se sua identidade camponesa.

Outro aspecto forte na comunidade e que aparece nas observações e rodas de conversa é a religiosidade camponesa, pois parece ali estar situado um núcleo de significações. Trata- se de dois assentamentos da Reforma Agrária, em que logo, na constituição, às comunidades pensou na igreja e na escola como centrais, de muita importância.

Foi possível observar que as famílias camponesas, das comunidades das quais pertencem os educandos das escolas do campo, tinham a igreja e a escola como referência. No entanto, enfrentaram inúmeras dificuldades, tanto que atualmente só têm a igreja, pois as escolas fecharam em anos anteriores. A seguir relatarei, através das falas dos camponeses das várias comunidades, que a referência que ainda existe na comunidade é a igreja, como um lugar da subjetividade e da socialização.

C9 - A igreja é a oportunidade de encontro, e de ouvir a palavra de Deus.

C10 - A gente que acredita em Deus, para os sócios quando falecem tem o direito de velar na igreja e tem um lugar no cemitério que pertence à comunidade e as crianças aprendem a participar na igreja e na comunidade e dar valor.

C11 - A igreja é para as pessoas se encontrarem no final de semana para rezar, conversar, resolver problemas, saber como está as nossas vizinhas, porque lá todas podem se ver e ficar sabendo do outro, isso no domingo de manhã e daí à tarde se tem alguma doente a gente já combina de ir visitar.

C12 - A igreja na comunidade é muito importante para reunir as famílias, para celebrar junto e discutir os problemas e tentar resolver. (Linha Sete de Setembro)

C13 - As pessoas têm um tempo para si, para rezar, para refletir sobre a sua vida e também para encontrar com os amigos.

C14 - Sem a igreja a comunidade, não pode continuar com a bodega aberta e nem esporte e sem igreja na comunidade não é comunidade.

C15 - Pra mim é importante porque no final de semana nós se reunimos para fazer o culto e a catequese das crianças. (Linha Oito de Março)

C16 - Todas as famílias se reúnem para celebrar os cultos, a missa, após o culto tem os avisos para reunião e interesse da comunidade.

C17 - É o lugar que a gente se encontra com a comunidade.

C18 - A igreja é para unir as famílias, formar lideranças que representam a comunidade nas reuniões e palestras. (Linha Dois Irmãos)

C19 - É onde nos encontramos para celebrar cultos, nos reunimos para refletir sobre tudo o que se refere a organizações populares.

C20 - É onde a gente se encontra para rezar, se reúne com os amigos, vizinhos e familiares.

C21 - Encontramos para rezar, se divertir, no esporte, algum bailezinho e também tem festa.”é o lugar onde a gente é solidário um com os outros. (Linha São Pedro)

Através dos relatos, em que registrei o depoimento desses camponeses das comunidades, cujos filhos estudam nas duas escolas dos assentamentos, foi possível observar

que, para esses camponeses, a igreja é o que ainda os agrupa e tem como referência a comunidade. Para Brandão (2009, p. 93), a igreja na comunidade é o lugar do “ponto de encontro” das famílias, que vão além de apenas rezar, trata-se de um espaço comunitário no qual encontram-se os amigos, sabem das notícias/novidades, formam lideranças, organizam- se para resolver os problemas etc. Trata-se de um lugar no qual os mais velhos fazem e ensinam os mais novos, eles observam, repetem, aprendem em qualquer celebração coletiva. As pessoas cantam, dançam e representam, e tudo o que fazem não apenas celebra, mas ensina.

Outro aspecto importante e significativo, que vale ressaltar, é o jeito peculiar de organizar as festas. Me refiro especialmente à Festa do Padroeiro, porque é a festa mais significativa da comunidade. E, através dos relatos, percebi que esta é uma ocasião que os movem enquanto cidadãos. Trata-se de poderem atuar, promover, participar e decidir o evento. Nas Festas de Padroeiro foi possível ouvir camponeses de todas as comunidades com o seu jeito peculiar de organizar. E esses camponeses relatam que:

C9 - Cada setor tem um casal festeiro, é feita a arrecadação, o resto que falta é comprado e todos os sócios trabalham. (Comunidade da Linha Sete de Setembro)

C13 - O presidente escala as pessoas para trabalhar, cada um com o seu serviço, um vende carne, arrecadam as coisas para fazer o bolo e daí cada três famílias fazem; As rifas duas jovens vende. Tem o jogo de 48, bolãozinho, bingos e várias outras coisas.

C13 - A festa é organizada meses antes, todos os sócios trabalham na festa, e na missa a bodega fica fechada até o fim e depois segue a festa.

C14 - As festas do padroeiro acontece de uma forma muito participativa. Todos têm que se envolver, cada um faz a sua tarefa, desde arrecadar prêmios para a rifa, como todos os outros serviços e outros se envolvem na igreja. (Comunidade da Linha Oito de Março)

C22 - Todos os associados da comunidade se reúnem para preparar a festa. Para fazer a limpeza do estabelecimento, onde ocorrem os festejos.

C23 - Na nossa comunidade é feita uma celebração na comunidade e depois o almoço comunitário. Fazemos convite para as comunidades vizinhas que trocam visitas.(Comunidade Linha Vinte e Seis de Outubro)

C16 - É escolhido o dia mais próximo do dia da padroeiro,, é escolhido dois ou três casais, para organizar a festa, um fica responsável pela missa, outro pela carn, e pela bebida e uma pessoa para fazer a arrecadação

C17 - Nóis se reunimo em uma reunião para fazer a escalação de quem trabalha na festa. É feita uma arrecadação para ver se alguém doe algo. No dia da festa cada um que é escalado trabalha na sua função. (Comunidade da Linha Dois Irmãos)

C19 - A equipe da liturgia organiza a celebração da missa, com procissões, cantos, pedidos, preces, histórias envolvendo comunidade e padroeiro. A celebração também é para as outras comunidades e todas as famílias. Após seguem os demais festejos, enfim, é uma festa diferente muito esperada por todos. Sem a igreja não pode existir a comunidade, se faz ali a acolhida e a partida para uma ação das diversas pastorais e movimentos sociais.

C19 - É organizada através de muito trabalho, as tarefas são divididas todas em grupo de pessoas. (Comunidade da Linha São Pedro)

C25 - A liderança da comunidade convoca as pessoas para trabalhar, vai quase a semana inteira. (Comunidade da Linha Canela Gaúcha)

A festa é do Padroeiro São Valentin, da comunidade de Linha Canela Gaúcha, fortalecendo os valores e comportamentos próprios da cultura local camponesa como também o trabalho coletivo. As práticas de religiosidade articuladas ao contexto mais amplo das relações e vivências se entende melhor:

[...] e quanto à experiência fomos levadas a reexaminar todos esses sistemas densos, complexos e elaborados pelos quais a vida familiar social é estruturada e a consciência social encontra realização e expressão: parentesco, costumes, as regras visíveis e invisíveis de regulação social, hegemonia e diferenciam, formas de dominação e resistência, fé religiosa e impulsos milenaristas, maneiras, leis, instituições e ideologia (THOMPSON, 1981, p. 188-189).

No caso da festa em questão, é possível compreender que a religiosidade é o que faz o encontro, mas é um elemento de organização, de compartilhar, de resolver os problemas, distribuir tarefas, de formar lideranças e serem respeitadas e, assim, começam a assumir compromisso/responsabilidade na comunidade. A igreja é como um espaço de organização e lugar de encontro entre as famílias da comunidade, lugar de debate, de fazer reuniões, discutir e fazer política, de somar força e solidariedade.

Ressalto como está presente na cultura camponesa a relação de ajuda, de solidariedade e de compromisso coletivo, valores fundamentais para viver em comunidade. A relação cotidiana entre pessoas, famílias, parentes, vizinhos, amigos, companheiros de vivência e de trabalho na comunidade, entre eles estabelece vínculos entre os significados da religiosidade e as práticas cotidianas. A solidariedade, a simplicidade, a humildade, e a relação de vizinhança que se estabelece, que constitui a identidade camponesa desse grupo social, tornam possível dizer que a escola funciona como lugar de encontro e expressão da cultura camponesa.

Através da pesquisa foi possível constatar, em depoimentos, relatos dos/as camponeses/as, que estão carregadas de significados. Constituem suas experiências/vivências em torno da religiosidade, neste espaço de encontro dos sujeitos do campo. O espaço,

também era a escola, porém com a nucleação e o fechamento das escolas em várias comunidade, a igreja é o ponto de encontro. Neste local se constitui o camponês, a sua identidade, manifestações culturais, organização, por isso o elemento da religiosidade foi importante apresentar nesse contexto.

3.4 SABERES POPULARES DO CAMPONÊS/CAMPONESA NO ESPAÇO