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Capítulo 1: O papel do Sociólogo da Ciência no debate sobre os animais de laboratório

1.2. Experimentação animal nos ESCT

Dentre os textos que serviram de inspiração para este trabalho, dois merecem destaque especial: Phillips (1993) e Lynch (1988). Ambos se inserem no campo de estudos dos ESCT, e tratam diretamente da experimentação animal. Embora não sejam tão recentes, são expressivos por defender posições antagônicas sobre o mesmo tema.

O estudo de Mary Phillips (1993) procurou elucidar a percepção dos pesquisadores sobre a dor. A observação etnográfica começou em 1985 e durou três anos. Ela começa explicando a ideologia, típica do século XIX, que atribuía a sensitividade à dor de maneira seletiva, de acordo com o status social, sexo, origem étnica, idade, educação, e hábitos pessoais. As pessoas consideradas mais sensíveis à dor, e, portanto, mais prováveis de receber anestesia, eram mulheres, crianças e membros das classes brancas e ricas. Em oposição, os pobres, pouco educados, bêbados e “selvagens” eram considerados insensíveis à dor, e tinham pouca chance de receber anestesia. No fundo desta escala da dor, junto com as classes baixas, estavam os animais. Tal perspectiva não tinha muita empatia pelo sofrimento alheio.

Atualmente, é rotineiro o uso de anestesia em processos cirúrgicos, tanto em humanos quanto em animais. Já o uso de analgésicos pós-operatórios em cobaias de laboratório é muito reduzido, quando comparado aos padrões para uso em humanos e até mesmo em animais domésticos. Os pesquisadores tendem a enxergar suas cobaias de maneira diferente dos outros animais, como se pertencessem a uma categoria diferente. Isso acarreta consequências nas medidas tomadas - ou não tomadas - para o alívio da dor.

Phillips (1993) estudou 23 laboratórios e observou que, apesar da legislação permitir que os procedimentos sejam feitos sem anestesia quando “cientificamente necessário”, nenhuma cirurgia foi realizada em animais não anestesiados. No entanto, as razões para tal fenômeno foram muito mais políticas, técnicas e legais do que éticas. Os pesquisadores temiam as consequências de contrariar a lei e as críticas das organizações que defendem os animais. Muitos apontaram a facilidade de operar animais imóveis pela anestesia, aumentando a validade dos resultados. Porém, o fator principal era a recusa dos periódicos científicos em publicar resultados de pesquisas realizadas em animais sem anestesia.

Embora os procedimentos fossem realizados com anestesia, não havia nenhum acompanhamento profissional para assegurar que o efeito durasse por todo o experimento. A autora relatou casos em que os pesquisadores não esperaram a anestesia fazer efeito para começar os procedimentos cirúrgicos. O animal (um rato, no caso) demonstrou estar sofrendo por dez minutos, até que a anestesia fizesse efeito. Durante todo o tempo, nenhum dos pesquisadores presentes pareceu se incomodar com a situação. Quando questionados, os cientistas pareceram convencidos de que o animal sentira apenas algum “desconforto”, e não dor. O que realmente importava para eles era a possibilidade de perder dados experimentais caso a cobaia morresse por excesso de anestesia. O sucesso do experimento era muito mais importante do que qualquer preocupação pelo bem-estar do animal.

A situação era pior quanto ao uso de analgésicos nos cuidados pós operatórios. Enquanto estes são usados rotineiramente em pacientes humanos, nos laboratórios de pesquisa com animais raramente são sequer considerados. Isso pois a legislação obrigava o uso de anestesia em cirurgias, mas não requeria o uso de analgésicos sob alguma condição específica. Seu uso era considerado dependente do julgamento individual do cientista. Dentre os 23 laboratórios observados, apenas dois relataram uso de analgésicos. A grande maioria dos pesquisadores entrevistados relataram que as cobaias não pareciam necessitar de medicamentos contra a dor, por estarem aparentemente bem dispostas. Mas o maior motivo era evitar a introdução dos efeitos inesperados de uma nova variável nos resultados das pesquisas. De qualquer maneira, a questão não era tratada como digna de uma discussão ética mais sistemática.

Vale lembrar que o estudo de Phillips foi realizado em uma época em que especialistas em bem-estar animal já clamavam pelo uso de analgésicos nos cuidados pós

operatórios, pois a dor pode estar presente apesar da aparência normal dos animais. Ademais, manuais relatando os medicamentos e dosagens apropriadas para várias espécies já estavam disponíveis. Enquanto o assunto era tratado de maneira séria por médicos veterinários, os pesquisadores nos laboratórios o ignoravam.

Apesar de os pesquisadores reconhecerem a capacidade dos animais de sentir dor, esta capacidade permanece como algo abstrato para muitos deles. Raramente viam dor ou sofrimento em seus laboratórios. As cobaias eram vistas como dados estatísticos, que obscureciam qualquer percepção de sofrimento individual. Não possuíam nome nem identidade, seu único propósito era servir à ciência (Phillips, 1993).

Os “selvagens” e pobres do século XIX encontraram seus pares nas cobaias de laboratório do século XX, mas não por causa de uma crença de que os animais são insensíveis à dor. Dentro do laboratório, são percebidos como criaturas distintas cujo único objetivo é servir como dados científicos. Pesquisadores sabem que todos os animais são capazes de sentir dor, mas o que eles enxergam ao olhar para suas cobaias é um experimento científico, e não a experiência subjetiva de um ser vivo. Por isso raramente consideram se um animal está sentindo dor ou sofrimento, ou mesmo se sente qualquer coisa, fora dos limites dos protocolos de pesquisa (Phillips, 1993).

Michael Lynch (1988) também buscou elucidar a relação entre pesquisadores e suas cobaias através de observações etnográficas em laboratórios. Para ele, a violência e eventual morte do animal fazem parte de uma transformação sistemática de seu corpo em objeto de análise abstrato, com um significado particular para os membros da comunidade científica. Embora cientistas não tratem suas práticas como rituais cerimoniais, Lynch usa um termo normalmente associado com práticas religiosas para definir essa transformação: “sacrifício”. De um ponto de vista técnico, o “sacrifício” dentro do laboratório está relacionado com os diversos métodos de tirar a vida de uma cobaia, seja durante ou após seu uso em experimentos. Mas possui também um sentido transcendental, pois tais métodos acabam por transformar o corpo material em um receptáculo de conhecimento, um objeto de investigação técnica.

Lynch procura diferenciar os animais percebidos pelo senso comum das cobaias de laboratório, vistas sob uma perspectiva científica. O animal em sua concepção ordinária, do senso comum, é definido como “animal natural”, um ser vivo, sujeito por si só e em si

mesmo, que gera empatia e apego emocional; e representa a visão dos grupos que lutam pelos direitos dos animais. Já sua contraparte, o “animal analítico”, é um produto da atividade de pesquisa nos laboratórios. É basicamente um artefato, um produto de intervenção humana, um emaranhado de dados quantitativos, gráficos matemáticos e frequências estatísticas.

O “animal analítico” é, portanto, uma versão reduzida e abstrata do “animal natural”. É um produto do laboratório, um objeto cultural baseado nas práticas e no discurso científico, que transcende sua presença material ao se tornar um objeto analítico de pesquisa. Esta transformação começa antes mesmo da cobaia entrar no laboratório, através da seleção e reprodução voltada para propósitos experimentais.

O “sacrifício”, momento central deste processo, representa muito mais do que a morte das cobaias, mas a transformação de seus corpos em agentes de significados transcendentais. Engloba sua preparação, a destruição de seu corpo, e a produção de dados relevantes para o conhecimento humano. O animal, visto como meio de obtenção de um conhecimento possivelmente benéfico para a humanidade, é dotado de um valor próprio e central dentro do ambiente acadêmico, e tratado com um respeito “ritualístico”.

Lynch conclui seu estudo defendendo que a disseminação da noção de “sacrifício” para fora do meio acadêmico poderia amenizar as críticas sofridas pela experimentação animal. Mas tal estratégia teria pouca ou nenhuma eficácia, pois sua ideia de “animal analítico” pode ser caracterizada como uma objetificação das cobaias, algo duramente criticado pelos ativistas que lutam pelo fim da vivissecção.

Enquanto a questão moral sobre os direitos dos animais é central no argumento de Phillips (1993) para criticar o modo como são feitas as pesquisas com cobaias vivas, Lynch (1988) enfatiza o aspecto técnico-científico para defender as práticas científicas, deixando a moral em segundo plano. Mas ambos os textos são igualmente dignos de consideração, por apresentarem um possível caminho a ser seguido no intuito de amenizar as discordâncias entre a comunidade científica e os movimentos sociais, no que toca as pesquisam que utilizam animais vivos. O acúmulo de estudos sobre a experimentação animal, que busquem elucidar seus aspectos sociais, morais e éticos, pode fornecer elementos para uma compreensão mais crítica da disciplina, tanto para o público leigo, quanto para os próprios pesquisadores. O capítulo seguinte busca contribuir para tais estudos, ao discutir sobre a controvérsia acerca dos experimentos científicos que utilizam animais.

Capítulo 2