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Além dos limites legais : a preocupação com as cobaias de laboratório

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Academic year: 2021

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ALEXANDRE MELONI VICENTE

ALÉM DOS LIMITES LEGAIS: A PREOCUPAÇÃO COM AS COBAIAS DE LABORATÓRIO.

CAMPINAS 2019

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ALÉM DOS LIMITES LEGAIS: A PREOCUPAÇÃO COM AS COBAIAS DE LABORATÓRIO.

TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE

GEOCIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ORIENTADOR(A): PROF(A). DR(A). MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO ALEXANDRE MELONI VICENTE E ORIENTADA PELO(A) PROF(A). DR(A). MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

CAMPINAS 2019

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Marta dos Santos - CRB 8/5892

Vicente, Alexandre Meloni,

V662a VicAlém dos limites legais : a preocupação com as cobaias de laboratório /

Alexandre Meloni Vicente. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

VicOrientador: Maria Conceição da Costa.

VicTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Geociências.

Vic1. Experimentação animal. 2. Ciência - Aspectos sociais. 3. Ciência e

Estado. 4. Ciência - Métodos experimentais. I. Costa, Maria Conceição da, 1956-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Beyond the legal limits : the concern with laboratory guinea pigs Palavras-chave em inglês:

Animal experimentation Science - Social aspects Science and State

Science - Experimental methods

Área de concentração: Política Científica e Tecnológica Titulação: Doutor em Política Científica e Tecnológica Banca examinadora:

Maria Conceição da Costa [Orientador] Felipe Ferreira Vander Velden

Octávio Augusto França Presgrave Janaina Oliveira Pamplona da Costa Rafael de Brito Dias

Data de defesa: 16-05-2019

Programa de Pós-Graduação: Política Científica e Tecnológica Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-5413-5715 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/3572771675569361

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AUTOR: Alexandre Meloni Vicente

ALÉM DOS LIMITES LEGAIS: A PREOCUPAÇÃO COM AS COBAIAS DE LABORATÓRIO

ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Conceição Da Costa

Aprovado em: 16 / 05 / 2019

EXAMINADORES:

Profa. Dra. Maria Conceição Da Costa - Presidente Profa. Dra. Janaina Oliveira Pamplona da Costa Prof. Dr. Rafael de Brito Dias

Prof. Dr. Octavio Augusto França Presgrave Prof. Dr. Felipe Ferreira Vander Velden

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se disponível no SIGA - Sistema de Fluxo de Tese e na Secretaria de Pós-graduação do IG.

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Para meus pais, com amor. E meus avós, com saudades.

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Agradeço, primeiramente, à minha orientadora, Maria Conceição da Costa, pela atenção, pelas correções e pelos comentários que possibilitaram o desenvolvimento deste trabalho, e pela paciência que teve comigo. Con, sua orientação foi imprescindível mesmo antes do início da pesquisa; você me inspirou a conhecer melhor a área dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, e por isso eu gostaria de frisar o quanto sou grato. Muito obrigado.

Obrigado aos professores do Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP pela contribuição, direta ou indireta, neste trabalho. Foram também fundamentais para a minha formação, em especial os professores Marko Monteiro, Leda Gitahy e Rafael Dias.

Aos professores da Banca de Qualificação, Janaina Oliveira Pamplona da Costa e Rafael Bennertz, pelo tempo dedicado à leitura do trabalho e sugestões apresentadas para sua melhoria. Agradeço também ao coordenador do BraCVAM, Dr. Octavio Augusto França Presgrave, por responder às minhas dúvidas sobre o Centro e pela participação na Banca de Defesa.

Aos demais membros da Banca de Defesa, Doutores Felipe Vander Velden, Rafael de Brito Dias e Janaina Oliveira Pamplona da Costa, foi uma honra contar com vossa presença.

Aos funcionários do IG, Val, Gorete, Adriana, Cris, por toda a ajuda e dedicação. Obrigado pela eficiência e paciência, estaríamos perdidos sem vocês. Abraço especial pro Max, pela correria pra deixar tudo pronto para a minha defesa.

Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), código de financiamento 001 e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – n° de processo (141444/2013-4) pela bolsa concedida.

Aos colegas de departamento, Lucas, Alexis, Fernanda, Mônica, Milene, Jana, Sílvia, Giovanna, Rodrigo, Renan e Alcides, pelos momentos de descontração e pelos palpites sobre a minha tese. A todos os ex-frequentadores da sala 17, especialmente à Nicole e ao Murilo, pelas discussões interessantes, fossem elas acadêmicas ou não. Desculpem se me esqueci de citar alguém, mas vocês todos moram no meu coração.

Aos velhos camaradas de moradia, Rafa, Rolo e Math, pelo companheirismo, risadas e debates filosóficos sobre temas atípicos.

Agradeço do fundo do meu coração aos meus pais, Zé e Carlota, meus maiores exemplos de conduta e inspiração; e minha irmã Carol, talvez a pessoa que mais admiro no mundo, por sua força e independência. Queria ser mais como você, maninha. Meus avós José, Roma, Jorge e Ivone, que já partiram e deixaram saudades. Meus tios, Rose, Jô, Fafinha, Zé Nino, Carmo; e primos, Victor, Marina, Nina, Lara, Lucca, por todo apoio e pela infância

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Aos amigos mais antigos, Dudu, Tanaka, Hosoi, Nenê, Raphael, Peter, Nortinho e Karenzinha, pelos mais de 20 anos de diversão e aporrinhação. Será que algum dia eu consigo me livrar de vocês?

Profundo e Pratina, que conheço de longa data, mas que recentemente se tornaram parte mais presente da minha vida; e Sarah, que veio com eles. À amiga Carlinha, pelas risadas, de perto e de longe, no último ano. Bárbara, pelos mimos, cafunés e momentos de descontração e ternura que amenizaram minha preocupação na reta final do doutorado.

E a todos os outros que posso ter esquecido, meu muito obrigado por me ajudarem a chegar até aqui.

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“And I am my brother's keeper, And I will fight his fight, And speak the word for beast and bird, Till the world shall set things right.” - Ella Wheeler Wilcox.

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A presente tese pretende contribuir para a discussão sobre uma prática científica controversa, a experimentação animal, no caso brasileiro. Através de uma perspectiva construtivista entre Ciência e Sociedade proveniente do campo acadêmico dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, mais particularmente de uma tendência mais recente de ativismo e engajamento destes estudos, procura analisar a política do Brasil sobre o tema, bem como demonstrar a mudança ocorrida no status moral dos seres não humanos no século XX. A doutrina cartesiana que justificou, no século XVII, o uso indiscriminado de animais para as necessidades humanas, inclusive para experimentos científicos, foi confrontada por novas teorias morais que definiram os animais como seres sencientes e autônomos, merecedores de consideração e dignos de respeito; é amplamente aceito atualmente que esse respeito é necessário. É argumentado que, embora nossa legislação nacional não expresse de maneira satisfatória esse status moral, ele está presente na comunidade científica, através de esforços que visam à substituição dos modelos animais in vivo por técnicas baseadas em modelos in vitro e in

silico; ou, quando a substituição completa ainda não parece possível, procuram ao máximo

reduzir o número de animais utilizados em experimentos e minimizar seu sofrimento. Por fim, são apresentados argumentos de caráter normativo que podem contribuir com a discussão.

Palavras-chave: Experimentação Animal, Sociologia da Ciência, Política Científica,

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This PhD study aims to contribute to the discussion on a controversial scientific practice, the animal experimentation, in the Brazilian case. Using a constructivist perspective between Science and Society from the academic field of Social Studies of Science and Technology, more particularly from a more recent tendency of activism and engagement of these studies, this text seeks to analyze Brazil's policy on the subject, as well as to demonstrate the change that occurred in the moral status of non-human beings in the twentieth century. The Cartesian doctrine that justified, in the seventeenth century, the indiscriminate use of animals for human needs, including for scientific experiments, was confronted by new moral theories which defined animals as sentient and autonomous beings, deserving of consideration and worthy of respect; it is widely accepted today that such respect is necessary. It is argued that, although our nation's legislation does not adequately express this moral status, it is present in the scientific community through efforts to replace animal in vivo models with techniques based on in vitro and in silico models; or when full replacement still seems impossible, they try to reduce the number of animals used in experiments and minimize their suffering. Finally, normative arguments that may contribute to the discussion are presented.

Keywords: Animal Experimentation, Sociology of Science, Scientific Policy, Alternative

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Figura 1 - Distribuição do uso de animais segundo a finalidade (Baumans, 2004). ... 20

Figura 2 - Estrutura administrativa proposta para o BraCVAM (Presgrave, 2012). ... 147

Figura 3 - Processo de Validação para Métodos Alternativos (Lang, 2014). ... 150

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3Rs Reduction, Refinament, e Replacement

AIDS Síndrome de Deficiência Imunológica Adquirida

AIP Animals in Politics

ALDS Animal Legal Defense Fund

ALF Animal Liberation Front

AMA American Medical Association

ANDA Agência de Notícias de Direitos Animais

ANT Teoria Ator-Rede

ANPAC Animal Political Action Comittee

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária ARE Resposta antioxidante/eletrofílica

ATLA Alternatives to Laboratory Animals

ATP Adenosina trifosfato

AVAR Association of Veterinarians for Animal Rights

BCOP Bovine Corneal Opacityand Permeability

BPL Princípios das boas práticas de laboratório

BraCVAM Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos BrdU Medidor 5-bromo-2-desoxiuridina

C&T Ciência e Tecnologia

CAF Culture and Animals Foundation

CCJC Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania

CCTCI Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática CDC Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias

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CICB Comissão Institucional de Controle dos Biotérios CIEnP Centro de Inovação e Ensaios Pré-clínicos

CIOMS Council for International Organizations of Medical Sciences

CIUCA Cadastro das Instituições de Uso Científico de Animais CNPEM Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico COBEA Colégio Brasileiro de Experimentação Animal

COLIPA The European Cosmetics Association

CONCEA Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal CRUB Conselho de Reitores das Universidades do Brasil

DES Diethylstilbestrol

DNA Ácido desoxirribonucléico

DOU Diário Oficial da União

DPM Desintegração por minuto DPRA Direct Peptide Reattivity Assay

ECVAM European Centre for the Validation of Alternative Methods

EMA European Medicines Agency

ESCT Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia EUA Estados Unidos da América

FDA United States Food and Drug Administration

FEBRAFARMA Federação Brasileira de Indústria Farmacêutica Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz

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HALF Human/Animal Liberation Front

HET-CAM Hens Egg Test on the Chorio-Allantoic Membrane

HEPG2 Células de hepatocarcinoma humano

INCQS Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde INMETRO Instituto Nacional de Metrologia Qualidade e Tecnologia

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IACUC Institutional Animal Care and Use Committees

ICCVAM Interagency Coordinating Committee on the Validation of Alternative Methods

JaCVAM Japanese Centre for the Validation of Alternative Methods

JRC European Commission’s Joint Research Centre

LAL Lisado de amemócito de Limulus sp.

LD50 Dose Letal 50

LIMAUA Laboratório de Imunologia e Métodos Alternativos ao Uso de Animais LNBio Laboratório Nacional de Biociências

MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MAT Teste de Ativação de Monócitos

MCTI Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

MCTIC Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações MRMC Medical Research Modernization Comittee

MTT Corante brometo de 3-(4,5-dimetil-2-tiazolil)-2, 5-difenil-2H-tetrazólio NAAL National Alliance for Animal Legislation

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NICEATM Interagency Center for the Evaluation of Alternative Toxicological Methods

NIEHS National Institute of Environmental Health Sciences

NR Corante Neutral Red

NTP National Toxicology Program

NUDFAC Núcleo de Desenvolvimento Farmacêutico e Cosmético

OECD Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ONU Organização das Nações Unidas

OPA Organização Pan-americana de Saúde PETA People for the Ethical Treatment of Animals

PL Projeto de Lei

pNA p-nitroanilina

PREMASUL Plataforma Regional de Métodos Alternativos do Mercosul PsyETA Psychologists for the Ethical Treatment of Animals

RECyT Reunião Especializada de Ciência e Tecnologia RENAMA Rede Nacional de Métodos Alternativos

RhCE Reconstructed human cornea-like epithelium

RLU Unidades de Luminescência Relativa

SBCAL Sociedade Brasileira de Ciência em Animais de Laboratório SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

SI Índice de Estimulação

SigmaXi Scientific Research Society

SINLAB Sistema Nacional de Controle de Animais de Laboratório SIRC Statens Seruminstitut Rabbit Cornea

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STE Short Time Exposure Test

TER Resistência Elétrica Transcutânea

TS Tecnologia Social

UAA United Action for Animals

UE Unidades de endotoxina

UEM Universidade Estadual de Maringá

UFAW Universities Federation for Animal Welfare

UFBA Universidade Federal da Bahia UFF Universidade Federal Fluminense UFG Universidade Federal de Goiás UFIR Unidade fiscal de referência

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFPE Universidade Federal de Pernambuco UIPA União Internacional Protetora dos Animais

UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura UNESP Universidade Estadual Paulista

UNIFESP Universidade Federal de São Paulo

UPC Unidade de Pesquisa Clínica

USDA US Department of Agriculture

USP Universidade de São Paulo

VNN Voice of Nature Network

ZEBET Centre for Documentation and Evaluation of Alternatives to Animal Experiments

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Introdução ... 19

Capítulo 1: O papel do Sociólogo da Ciência no debate sobre os animais de laboratório ... 28

1.1. ESCT, controvérsias científicas e ativismo ... 32

1.1.1. Expertise e Participação Pública... 37

1.1.2. O “Baixo Clero” ... 42

1.2. Experimentação animal nos ESCT ... 51

Capítulo 2: A controvérsia acerca da Experimentação Animal ... 55

2.1. O fortalecimento da experimentação animal como prática científica ... 56

2.2. As primeiras críticas ... 59

2.3. Peter Singer e o renascimento da questão moral ... 63

2.3.1. A Deontologia de Regan... 67

2.3.2. Steven Wise e o Legalismo ... 69

2.3.3. Contratualismo ... 71

2.3.4. Ética das virtudes e do cuidado, e Bioética da Proteção ... 71

2.3.5. Natureza Orgânica ... 72

2.3.6. A contribuição do campo da neurociência ... 73

2.4. O debate atual ... 74

2.4.1. A Defesa da Ciência Experimental ... 74

2.4.2. O Movimento do Bem Estar Animal ... 77

2.4.3. A luta pelos Direitos dos Animais ... 83

2.5. Uma controvérsia complexa ... 88

Capítulo 3: A situação no Brasil ... 92

3.1. O PL N° 1.153/1995 ... 95

3.1.1. O parecer da CCTCI ... 99

(18)

3.3. O Decreto 6.899/2009 ... 113

3.4. As críticas à Lei N° 11.794/2008 ... 119

Capítulo 4: Além dos limites legais? ... 129

4.1. A Rede Nacional de Métodos Alternativos ... 130

4.2. O Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos ... 144

4.3. O reconhecimento de métodos alternativos pelo CONCEA ... 151

4.4. Além dos limites legais ... 165

Considerações Finais ... 169 Referências Bibliográficas ... 176 Anexo I ... ... 190 Anexo II ... ... 198 Anexo III ... ... 204 Anexo IV ... ... 220 Anexo V ... ... 223

(19)
(20)

Estimativas do início do século atual mostram que, anualmente, entre 75 e 100 milhões de cobaias vertebradas são utilizadas para fins científicos ao redor do mundo. Deste total, uma pequena minoria está relacionada às atividades de ensino (1%), enquanto a imensa maioria (99%) é utilizada em pesquisas científicas e testes clínicos (Figura 1). As áreas mais representativas são o desenvolvimento de medicamentos, teste de vacinas e pesquisas em câncer, seguidas de perto pela pesquisa básica e área de diagnósticos. Ratos e camundongos representam cerca de 75% das espécies comumente utilizadas, mas pássaros, peixes, coelhos e cachorros também tomam parte nos experimentos (Baumans, 2004). Os números demonstram que a experimentação animal é uma prática comum e fortemente institucionalizada dentro dos laboratórios de pesquisa, mas isso não significa que ela não seja controversa e duramente criticada fora deles, como uma questão ética, onde a nossa relação com os animais é vista como uma questão de moralidade.

Figura 1 - Distribuição do uso de animais segundo a finalidade (Baumans, 2004).

Embora as primeiras críticas tenham aparecido já nos séculos XVII e XVIII (Bentham, 1781), foi no século XX que elas se intensificaram. Monamy (2009) destaca alguns episódios que ilustram a situação. Em um deles, ocorrido em Battersea Park, Londres, no ano de 1906, uma estátua de bronze foi levantada em tributo a um cão utilizado em experimentos

(21)

por pesquisadores e estudantes da University College. A International Anti-Vivisection

Society, apoiada pelo Battersea Borough Council, incluiu a seguinte inscrição na estátua:

“Em memória ao cão Terrier marrom morto nos laboratórios da University College em Fevereiro de 1903, depois de ter sido submetido a experimentos vivisseccionistas por mais de dois meses e passado de um vivissector para outro até que a morte veio a libertá-lo. Também em memória dos 232 cães vivisseccionados no mesmo local durante o ano de 1902. Homens e Mulheres da Inglaterra, por quanto tempo isso continuará?” (Monamy, 2009, p. 25).

Os outros dois ocorreram nos Estados Unidos da América (EUA), no início dos anos de 1960. O primeiro conta a história de um cão dálmata chamado Pepper, roubado de seus donos provavelmente por um comerciante de animais para ser vendido pra fins científicos. Embora não se tenha provado que o cão, utilizado em experimentos para depois ser sacrificado e incinerado, fosse realmente Pepper, a situação causou uma enorme resposta emocional do público, em relação não só ao dálmata, mas a todos os milhares de animais mortos em circunstâncias similares. O segundo evento trata de um artigo foto jornalístico publicado na revista Life em 04 de fevereiro de 1966, expondo as condições degradantes aos quais os animais eram submetidos pelos comerciantes antes de serem vendidos às instituições de pesquisa.

Paralelamente, a questão moral acerca dos direitos dos animais ganhou força com a publicação dos trabalhos dos filósofos Peter Singer (“Libertação Animal”, de 1975) e Tom Regan (A Case for Animal Rights, de 1983), que deram credibilidade intelectual ao que antes era taxado como mero sentimentalismo e evidenciaram a preocupação pública crescente com o sofrimento dos seres não humanos1. As questões morais levantadas por Tom Regan e Peter Singer tiveram grande impacto no debate mundial sobre a vivissecção2, resultando no apoio popular necessário para que a discussão, sobre como os animais são tratados, recebesse maior

1

Este trabalho considera “seres não humanos” e “animais” como sinônimos.

2

O termo “vivissecção” significa, literalmente, cortar (uma cobaia) viva, mas é aplicado genericamente a qualquer forma de experimentação que implique em intervenção visando à observação de um fenômeno, alteração fisiológica ou estudo anatômico (Greif & Tréz, 2000). Deste modo, este trabalho considera “experimentação animal” e “vivissecção” como sinônimos.

(22)

atenção; e influenciando politicamente, em todo o mundo ocidental, as condições às quais as cobaias utilizadas em experimentos eram submetidas.

Esse impacto pode ser visto na legislação referente à experimentação animal de diversos países. Os EUA criaram em 1966 o Animal Welfare Act, para licenciar tanto os comerciantes de animais quanto os laboratórios que os utilizavam, além de impor inspeções regulares nas instalações de pesquisa, realizadas pelo US Department of Agriculture (USDA), e garantir melhores cuidados a animais de sangue quente. Também passou a exigir, em 1991, o estabelecimento de comitês de ética, a obrigação de cuidado veterinário apropriado, a necessidade de minimização da dor e estresse nos experimentos, e a formulação de guias para o bem estar psicológico de primatas (Stevens, 1990).

O Reino Unido tem, desde 1986, o Animal Scientific Procedures Act, segundo o qual os experimentos devem ser submetidos à aprovação do Home Office, junto ao Ministério do Interior. Exige também que o pesquisador esteja licenciado a uma instituição idônea, e envie um dossiê ao órgão governamental em questão justificando qualquer experimento que utilize animais, para que sejam feitas as análises, do ponto de vista científico e ético, pertinentes (Greif & Tréz, 2000).

A Comunidade Europeia, através do Convênio Europeu sobre Proteção de

Animais Vertebrados Utilizados para Fins de Experimentação, datado de 18 de março de

1986, dita normas referentes à experimentação animal de forma conjunta, sem desconsiderar a legislação interna de cada país. Todos os animais submetidos a experimentos devem ser alojados em locais salubres, com espaço suficiente, água e comida, tendo em vista seu bem estar; o alojamento deve ser inspecionado e limpo diariamente; os experimentos podem ser realizados apenas por profissionais competentes e mediante autorização prévia; e todos os animais submetidos a experimentos devem ser anestesiados (Levai, 2001).

Na Alemanha, a legislação de 1987 postula que experimentos que causem dor, estresse ou sofrimento nas cobaias possam ser executados apenas na hipótese de prevenção, detecção de anomalias e pesquisa básica considerada imprescindível. Possui também uma cláusula adicional que obriga, por parte do governo federal, a formulação de relatórios bianuais endereçados ao Bundestag, com a finalidade de documentação do progresso em relação à implementação de medidas de proteção animal (Ferrari, 2004). Já o Decreto n° 87-848 de 1987 da França exige autorização oficial para a realização da experimentação animal, e a condiciona à existência de caráter de necessidade, à inexistência de métodos que a

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substituam, e à utilização para fins expressos por lei. Prescreve também a utilização de anestesia e analgésicos, mas exclui de seu alcance os animais invertebrados e as formas embrionárias de vertebrados ovíparos (Levai, 2001). Na Holanda, vigora o Act on Animal

Experimentation, de 1977, que requer dos pesquisadores competências que incluem, dentre

outros aspectos, o conhecimento da ética e dos métodos alternativos. Regulamenta também a necessidade do uso de anestesia, exceto nos casos em que comprometa o propósito do experimento (Greif & Tréz, 2000).

Mas, embora existam leis que regulamentem as pesquisas científicas com animais em boa parte do mundo ocidental, elas são consideradas demasiado permissivas, ou ao menos insuficientes, por grupos que defendem os direitos dos animais, especialmente em relação aos métodos alternativos que possibilitam a redução do número de cobaias utilizadas, a diminuição de seu sofrimento ou até mesmo sua completa substituição por material sem sensibilidade. Tais técnicas são pouco utilizadas, e raramente possuem caráter de obrigatoriedade. São necessários mais estudos sobre a experimentação animal, que busquem elucidar seus aspectos sociais, morais e éticos, e forneçam elementos para uma compreensão mais crítica da disciplina, tanto para o público leigo, quanto para os próprios pesquisadores. Ademais, o acúmulo de informações sobre o assunto pode servir de subsídio para a aproximação de grupos antagônicos, facilitando a tomada de decisões e elaboração de Políticas Públicas ligadas à Ciência e Tecnologia (C&T).

O presente trabalho procura contribuir para tais estudos, com foco no Brasil. Não é uma tarefa fácil. Primeiro, por se tratar de uma controvérsia ainda longe de alcançar um consenso. Um episódio interessante para exemplificar a situação foi o ocorrido em 2013 no Instituto Royal, em São Roque/SP, de onde 178 cães da raça Beagle usados em experimentos científicos foram levados por ativistas que defendem os direitos dos animais. Tratado como um “resgate” ou uma “libertação” pelas organizações que criticam a experimentação animal e considerado como uma das maiores conquistas dos direitos animais no Brasil, de importância histórica por chamar a atenção da sociedade para a experimentação (ANDA, 2015), o mesmo episódio foi caracterizado, pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), como uma “invasão” que prejudicou uma década de pesquisas ao destruir materiais de estudos, um ato que representa “um luto para a ciência”. A presidente da entidade na época, Helena Nader, declarou que os prejuízos para o progresso científico nacional foram “incalculáveis” (SBPC, 2013).

(24)

Segundo, por ser um processo ainda muito recente no Brasil. Embora as primeiras organizações relacionadas aos direitos dos animais em solo brasileiro tenham sido fundadas há tempos3, somente em 2008, ou seja, há apenas 10 anos, nosso País aprovou uma legislação nacional que regulasse efetivamente a experimentação animal, a Lei N° 11.794, que obrigou o estabelecimento das comissões de ética nas instituições de pesquisa e criou o Conselho Nacional responsável por seu credenciamento. No que tange os métodos alternativos ao uso de cobaias em experimentos científicos, de importância central para os defensores dos direitos dos animais, as iniciativas são ainda mais recentes. A Rede Nacional de Métodos Alternativos (RENAMA), que coordena os estudos voltados para desenvolvimento e validação de métodos alternativos no Brasil, foi criada em 2012. O Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), primeiro centro de validação de métodos alternativos da América Latina, é ainda mais recente, de 2013. Somente em 2014 o País reconheceu oficialmente, pela primeira vez, a substituição de algumas técnicas tradicionais de pesquisa por métodos alternativos à utilização de animais4. Mesmo recentes e ainda pouco numerosos, tais esforços demonstram que, apesar de não haver uma obrigação legal no sentido do desenvolvimento e aplicação de métodos alternativos ao uso de cobaias vivas em pesquisas científicas no Brasil, a comunidade acadêmica não é indiferente à preocupação moral da sociedade em relação ao bem estar dos animais. A hipótese aqui defendida é de que o entrave parece ser mais político do que científico.

Dentre os campos acadêmicos que podem contribuir com este objetivo estão os Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (ESCT, foco do primeiro capítulo), que buscaram compreender as relações entre ciência, tecnologia e os ordenamentos sociais, através de uma concepção construtivista. Esta perspectiva rejeita a ideia de Ciência como um empreendimento linear, produtor de conteúdos neutros e objetivos, e caracteriza as formas de conhecimento como contingentes aos contextos sociais em que emergem, afetadas pelas formas de cognição predominantes, pelas culturas e interesses presentes. A Ciência é compreendida, portanto, como um produto social (Gayard, 2016). Parte desses estudos dedicou-se à questão das controvérsias científicas, buscando entender não somente o comportamento da comunidade científica, mas também as motivações que levam agentes

3

No Brasil, a pioneira foi a União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), fundada na cidade de São Paulo em 1895, que existe até hoje. Já a extinta Sociedade Brasileira Protetora dos Animais foi fundada em 1907 no Rio de Janeiro (Ostos, 2017).

(25)

públicos e movimentos sociais a participar dos debates, bem como as incertezas que marcam o processo de construção do conhecimento. Tais disputas podem evidenciar as contradições sociais inerentes ao processo decisório relativo a questões sobre ciência e tecnologia, bem como as dificuldades em se desenvolver políticas públicas na ausência de um consenso definitivo sobre potenciais riscos. Podem revelar as ideologias que transformam diferenças políticas em dilemas morais profundos, e os enigmas éticos envolvidos nas escolhas que englobam diferentes, e muitas vezes conflitantes, valores (Nelkin, 1992).

Observa-se também, em parte dos estudiosos que compõem os ESCT, uma tendência mais recente de procurar adaptar o conhecimento científico-tecnológico ao interesse público, tendo em vista a igualdade, o bem-estar e o meio ambiente, optando por uma investigação politicamente engajada. Esta literatura mais ativista e engajada dentro dos ESCT foi parte da inspiração do presente trabalho. Enquanto a dissertação de mestrado foi um estudo mais teórico, que buscou analisar e descrever o processo de regulamentação dos procedimentos científicos com animais no Estado de São Paulo, agora objetivo examinar a questão da experimentação animal no Brasil, procurando, além de caracterizá-la como uma controvérsia social complexa, realizar uma aproximação entre ciência e grande público, particularmente entre pesquisadores membros da comunidade científica e as organizações civis engajadas na luta em prol dos direitos dos animais. Tal aproximação tem o intuito de contribuir para um ambiente mais favorável de discussão e um possível acordo entre os diferentes grupos envolvidos, condições indispensáveis para um debate mais efetivo sobre novos limites legais à experimentação animal, menos sujeitos às críticas sofridas pela nossa atual legislação sobre o assunto. De maneira mais específica, procuro demonstrar que, embora pareçam justificadas as críticas de que a lei atual é demasiado permissiva e, em relação aos métodos alternativos, insuficiente, existem iniciativas da comunidade científica visando alternativas ao uso de cobaias nas pesquisas e procedimentos científicos que, por não constituírem uma obrigação legal, podem ser considerados como esforços além dos limites legais, demonstrando uma preocupação moral com o bem estar dos animais.

O segundo capítulo procura contextualizar a experimentação animal, apresentando um breve histórico e as primeiras críticas. Discute também o fortalecimento da questão moral em torno dos animais a partir do começo da década de 1980, devido, em grande parte, à publicação em 1975, pelo filósofo Peter Singer, do livro “Libertação Animal”. O capítulo também apresenta algumas das mais importantes teorias morais que envolvem direitos dos animais, como “Deontologia”, “Legalismo”, “Contratualismo”, “Ética das virtudes e do

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cuidado” e “Natureza Orgânica”, além da contribuição do próprio campo científico da Neurociência para o tema. Por fim, são discutidas as diferentes posições que compõem o debate atual acerca da experimentação animal, notadamente a “Defesa da Ciência Experimental” por parte da comunidade científica, a crítica moderada do “Movimento do Bem Estar Animal”, e a posição dos grupos abolicionistas ligados ao “Movimento pelos Direitos dos Animais”, que rejeitam por completo a utilização de cobaias em pesquisas científicas.

Já o capítulo 3 é dedicado à legislação brasileira sobre a experimentação animal. São analisados o Projeto de Lei N° 1.153 de 1995, de autoria do então deputado Sérgio Arouca; a Lei N° 11.794 de 2008 (derivada do PL N° 1.153/1995, que por isso ficou conhecida como Lei Arouca); e o Decreto N° 6.899 de 2009, que regulamenta a Lei. Em seguida são apresentadas as principais críticas das organizações envolvidas com a defesa dos direitos dos animais à legislação, vista como um instrumento cujo único propósito é legitimar e até mesmo fortalecer a experimentação animal, beneficiando somente os interesses das instituições de pesquisa, em detrimento das demandas dos grupos que lutam pelos direitos dos animais. Também são abordadas as críticas direcionadas às Comissões de Ética no uso de Animais (CEUAs) e ao Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), ambos criados pela Lei Arouca; essencialmente de que a participação das sociedades protetoras dos animais seria muita reduzida e incapaz de fazer frente às demandas dos cientistas.

O quarto capítulo foca nas iniciativas da comunidade científica visando o bem estar das cobaias, em especial os projetos coordenados pela RENAMA e realizados em três laboratórios centrais (o Instituto Nacional de Metrologia Qualidade e Tecnologia – INMETRO, o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde – INCQS, e o Laboratório Nacional de Biociências - LNBio) e diversos laboratórios associados localizados nos Estados de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Paraná, Santa Catariana, Rio de Janeiro e São Paulo; e a criação do BraCVAM, primeiro centro de validação de métodos alternativos da América Latina. Buscando promover o desenvolvimento, a validação e a certificação de novos métodos alternativos ao uso de animais, as ações da RENAMA e do BraCVAM foram essenciais para o reconhecimento, por parte do CONCEA, de um total de 24 métodos alternativos relacionados com a experimentação animal. Tal reconhecimento foi oficializado nas Resoluções Normativas n° 18, de 24 de setembro de 2014, e n° 31, de 18 de agosto de 2016; ambas também analisadas no capítulo. É argumentado que tais esforços não

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constituem propriamente uma obrigação legal, mas são reflexo da atual preocupação que a sociedade tem em relação ao tratamento dos animais não humanos. Preocupação esta também presente na comunidade científica.

Por fim, apresentam-se as conclusões e considerações finais sobre o tema, procurando fechar os resultados da tese.

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Capítulo 1

O papel do Sociólogo da Ciência no debate sobre

os animais de laboratório

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Testemunhamos, atualmente, a expansão da biomedicina5, amparada por desenvolvimentos técnicos e científicos acumulados nos últimos quarenta anos, como novas vacinas, anestésicos e antibióticos. A Biologia Molecular e a Genética trouxeram novas possibilidades, como a inserção de material genético ou transplante de tecidos entre espécies diferentes, além da clonagem; práticas científicas que utilizam, em maior ou menor escala, cobaias vivas. A pesquisa básica ou fundamental inclui experimentos que visam entender sistemas fisiológicos em nível celular, molecular e genético, além dos estudos do funcionamento de órgãos ou mesmo de todo o corpo animal. Também na pesquisa aplicada os animais são usados de diversas formas. Em alguns casos, certas espécies são consideradas modelos fiéis do efeito de algumas doenças que afetam seres humanos, e os experimentos consistem na exposição do animal/modelo à doença estudada, para o desenvolvimento de técnicas terapêuticas e de prevenção (Monamy, 2009).

Em outros estudos aplicados, é necessária a retirada de órgãos das cobaias, ou animais são utilizados para testar a eficiência e segurança de novas vacinas. O desenvolvimento da vacina contra poliomielite é um bom exemplo. Certas espécies de macacos (sobretudo o macaco Rhesus), que podiam contrair a doença, foram amplamente utilizadas nas pesquisas para o desenvolvimento da vacina e, para sua produção, os rins dos animais eram necessários para o cultivo em larga escala do vírus. Enquanto muitas cobaias eram sacrificadas por seus rins, outras precisam ser mantidas vivas, para os testes de segurança da vacina (Monamy, 2009).

A pesquisa genética envolvendo animais também cresceu extraordinariamente nos últimos anos, com destaque para as áreas de transgenia e clonagem. A grosso modo, a modificação genética consiste na alteração do código genético de um organismo, para a indução de uma mutação que possibilite o estudo da função genética. Animais portadores de tais modificações genéticas induzidas são amplamente utilizados em pesquisas sobre a patologia de diversas doenças humanas, tais como artrite, câncer, diabete e condições cardíacas. Em 1992, a pesquisa genética representava cerca de um por cento do total da experimentação animal. Em 2001, este número cresceu para cerca de vinte por cento. Em 2005, aproximadamente um milhão de procedimentos envolviam a utilização de animais

5

O termo “biomedicina” refere-se aos aspectos científicos biológicos cada vez mais presentes nas práticas da medicina clínica, ou seja, a junção entre as práticas tecnocientíficas das ciências básicas da vida e a medicina clínica aplicada (CLARKE et al., 2003).

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geneticamente modificados, representando um terço das pesquisas envolvendo experimentação animal (Monamy, 2009). A cobaia mais utilizada é o rato de laboratório, que corresponde a 98% do total de animais empregados em tais pesquisas, e são necessários programas complexos de engenharia genética para garantir a geração da quantidade de cobaias geneticamente modificadas que os laboratórios demandam, o que acarreta a emergência de novas preocupações éticas e morais.

Pesquisas comportamentais também utilizam animais para entender o fenômeno psicológico humano, em diversas áreas de pesquisa, como depressão, vício em drogas, comportamento agressivo, comunicação, aprendizado, comportamento social normal e anormal, reprodução e cuidado parental. Enquanto parte destes estudos se limita à observação dos animais em seu habitat natural, muitos outros sujeitam as cobaias à exposição constante a estímulos dolorosos, como choques elétricos, ou ainda uma série de privações materiais ou emocionais, com o intuito de observação das reações a situações extremas, acarretando dano psicológico irreparável (Rowan, 1984). Ademais, animais também são utilizados para testar a ação de drogas para tratamento de doenças do sistema nervoso, tais como soníferos, estimulantes, sedativos, antidepressivos e tranquilizantes.

Na área de Ensino, grande parte dos estudantes é exposta à dissecção de animais em algum estágio de seu aprendizado. O primeiro contato ocorre mesmo antes dos cursos superiores, geralmente com animais de pequeno porte como anfíbios e roedores. Em cursos superiores ligados à área da Saúde, como medicina e fisioterapia, a experimentação animal é utilizada para fins pedagógicos, assim como nos cursos de veterinária e agronomia. Em profissões mais orientadas para a pesquisa, como genética, fisiologia, zoologia, farmacologia, bioquímica e psicologia, animais são usados como meios para se obter respostas a problemas científicos específicos, ou conhecimentos gerais sobre o mundo natural.

Animais também são utilizados para a produção de substâncias biológicas, como antibióticos utilizados na avaliação de processos imunológicos, e antídotos, como os produzidos pelos cavalos, para tratamentos de mordidas de cobras. Ademais, animais de laboratório são utilizados para testes de segurança de substâncias diversas, geralmente de ordem química, farmacêutica ou cosmética, antes que estas sejam introduzidas no mercado. São exemplos os testes de toxicologia aguda, que consistem na administração de uma dose única de determinado produto químico em concentração suficiente para produzir efeitos tóxicos e morte; os testes de triagem biológica, designados para determinar a atividade

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biológica de determinados compostos orgânicos; testes de carciogenicidade, definidos pela exposição repetida a potenciais agentes cancerígenos; testes de toxicidade reprodutiva, que consistem em uma série de procedimentos com o intuito de avaliar o potencial que certas substâncias químicas têm de induzir infertilidade ou defeitos de nascença; testes de irritação dos olhos e pele, realizados para determinar se a exposição a uma substância química em particular pode causar irritação; testes de mutagenicidade, designados para descobrir a capacidade de certos produtos de produzir mutações genéticas; Testes de neurotoxicidade, para determinar a extensão dos efeitos tóxicos no sistema nervoso dos seres vertebrados; e testes de toxicologia crônica, normalmente realizados em roedores, para testar os efeitos da exposição contínua (2 a 12 meses) a uma determinada substância química (US CONGRESS OFFICE OF TECHNOLOGY ASSESSMENT, 1986).

Os experimentos com animais são, portanto, considerados um importante elo entre as pretensões científicas biomédicas e os resultados de fato. No entanto, este processo de construção de conhecimento é repleto de conflitos. Com o enfraquecimento da doutrina cartesiana e do antropocentrismo religioso que marcou a pesquisa científica experimental até fins do século XVIII, começaram a surgir novas teorias filosóficas morais que desafiaram o uso indiscriminado de animais para as necessidades humanas, inclusive para experimentos científicos. Os seres não humanos passaram a ser vistos como possuidores de interesses próprios e passíveis de sofrimento, merecendo, portanto, algum tipo de consideração. Maus-tratos e violência desnecessária passaram a ser cada vez mais condenados (Baumans, 2004), e tais teorias morais se fortaleceram o suficiente no final do século XX para pressionar politicamente os governantes a tomar medidas legais.

No caso da experimentação animal, a formulação de tais medidas é particularmente complexa, pois precisa procurar conciliar interesses antagônicos: de um lado, as pretensões científicas dos Institutos de Pesquisa; e de outro, as demandas dos grupos que lutam pelo reconhecimento do status moral dos animais.

No Brasil, o desfecho deste processo foi a aprovação, em 2008, da Lei N° 11.794, baseada do projeto de lei n° 1.153 proposto em 1995 pelo então deputado Sérgio Arouca. A medida legal, que ficou conhecida como Lei Arouca, intentou restringir a prática da experimentação animal a estabelecimentos de ensino superior e educação profissional técnica na área de biomedicina devidamente credenciados, além de criar o Conselho Nacional de controle de experimentação animal (CONCEA), encarregado do credenciamento das

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instituições para criação ou utilização de animais em ensino e pesquisa científica, e da formulação de normas relativas à utilização humanitária das cobaias, bem como da fiscalização de seu cumprimento. Procurou também promover um certo controle social através das comissões de ética no uso de animais (CEUAs), que contam com a presença de um representante de sociedades protetoras dos animais legalmente estabelecidas, e têm o poder de desautorizar procedimentos científicos que não estejam de acordo com a legislação; mas a lei não ficou isenta de críticas.

Para algumas organizações defensoras dos direitos dos animais, de caráter abolicionista, a lei simplesmente deu respaldo legal a uma prática que consideram brutal e totalmente em desacordo com o status moral dos animais na atualidade. Argumentam que a Lei N° 11.794/2008 beneficia apenas a comunidade científica, e que o aparente rigor e fiscalização para o uso de cobaias são meros artifícios para a continuação da tortura e assassinato de animais dentro dos laboratórios (Tinoco, 2008).

Mesmo depois do estabelecimento de limites legais, ainda enfrentamos dificuldades para definir quais são nossas obrigações morais para com os animais e quais tipos de seres vivos são mais merecedores de nosso respeito. Contudo, é amplamente aceito atualmente que esse respeito é necessário. A continuidade da experimentação animal ainda gera atritos entre a comunidade científica e grupos que defendem os direitos dos animais. Dentre as áreas acadêmicas que podem contribuir para a resolução da controvérsia estão não somente a biomedicina, biologia, antropologia, filosofia e ciências políticas, mas também o campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT).

1.1. ESCT, controvérsias científicas e ativismo

É impossível deixar de notar os avanços no campo dos Estudos Sociais da Ciência6. Pouco restou da abordagem internalista mertoniana, demasiadamente interessada na comunidade científica e em sua suposta autonomia (Knorr-Cetina, 1982), onde o que havia para se explicar não era o método ou o conhecimento científico, mas somente a dinâmica e a posição social da empreitada científica na sociedade. A ciência deixou de ser vista como

6 A partir de meados da década de 1980, os Estudos Sociais da Ciência foram expandindo seus interesses de

pesquisa, voltando-se também para o fenômeno da Tecnologia, e o campo passou a ser conhecido como Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) (Woolgar, 1991).

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“pura” e imparcial, como uma cultura autônoma, dotada de acesso privilegiado à natureza, para ser caracterizada como um processo social. O interesse excessivo na comunidade científica e em seu alto grau de autonomia deu lugar às preocupações com a relação entre a produção científica e a sociedade, de maneira mais ampla. O foco de análise passou a ser, portanto, a ciência em si, e não somente os usos do saber científico nas instituições sociais. Trata-se, segundo Collins & Evans (2002), de trazer fatores “extra-científicos” para o debate científico-tecnológico.

O construtivismo dos ESCT caracterizou o conhecimento científico como socialmente criado ou construído (Collins & Pinch, 1979), e desafiou, através de investigação sociológica, a premissa considerada positivista7 da autoridade científica como formadora de opinião e palavra final nos debates científico-tecnológicos, independente de condições históricas, sociais ou culturais. A conclusão de uma controvérsia científica passou a ser entendida, portanto, resultado não de testes rigorosos realizados exclusivamente no âmbito científico, mas de pressões e demandas da comunidade, que refletiam não somente o conhecimento aceito por essa comunidade, mas também seus interesses e objetivos sociais. Foi descartada, deste modo, a premissa de que seria final a palavra dos cientistas e experts8, imparciais e livres de qualquer contaminação de ordem política ou social, sobre aspectos técnicos e tomada de decisões em qualquer assunto que envolvesse ciência e/ou tecnologia.

O desenvolvimento da ciência e tecnologia foi pouco questionado durante o período de rápido desenvolvimento econômico que sucedeu a Segunda Guerra Mundial até a década de 1970, quando as novidades tecnológicas começaram a ameaçar o meio ambiente; a produção de energia nuclear gerava incertezas, drogas que estimulavam o crescimento do gado foram associadas à incidência de câncer, e novos processos industriais que visavam melhorias na produtividade começavam a ter impacto negativo na saúde dos trabalhadores. Preocupações relacionadas a riscos ambientais começaram a gerar esforços políticos para barrar determinados projetos científicos e aumentar a participação popular em decisões sobre aspectos tecnológicos. Na década seguinte, a pesquisa científica perdia sua exceção à regulamentação política; grupos anti-aborto barraram a utilização de fundos públicos para

7 Termo utilizado por Martin & Richards (1995).

8

Embora o termo seja utilizado para diferentes contextos, este trabalho considera como expert o indivíduo cuja especialidade em determinado assunto é reconhecida socialmente e, na maioria das vezes, academicamente certificada.

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pesquisas com fetos, e um crescente grupo de pessoas ligados ao movimento pelos direitos dos animais exigiu regulamentação e limites aos experimentos (Nelkin, 1992).

Também nos anos de 1970 começou o debate sobre os potenciais riscos da pesquisa genética, que se expandiu para uma série de protestos contra as aplicações de toda a biotecnologia, problema ainda discutido atualmente. Criacionistas ainda criticam o ensino da teoria da evolução em escolas públicas. Debates sobre a regulamentação de substâncias químicas são constantemente renovados por novas informações acerca de seus efeitos ambientais e para a saúde humana e animal. A longa discussão sobre pesquisa fetal se intensificou com a descoberta de novas utilizações para células tronco. Novas tecnologias, como a fertilização in vitro, invariavelmente evocam uma resposta do público. Muitas dessas controvérsias são pautadas por fortes valores morais e ideológicos, e refletem tensões entre direitos individuais e objetivos sociais, entre prioridades políticas e valores ambientais, entre interesses econômicos e preocupações com a saúde (Nelkin, 1992).

As controvérsias científicas refletem o dissenso sobre os objetivos da ciência e tecnologia e sobre as prioridades de pesquisa, bem como as preocupações com a exploração dos recursos naturais dos animais. Mas evidenciam também o tamanho da influência da ciência na vida contemporânea, tanto como uma fonte de progresso quanto de medo. Medo da incerteza relacionada à pesquisa científica e dos riscos associados ao avanço tecnológico. A pesquisa genética é um bom exemplo; é vista por alguns como meio de melhorar a condição humana, e para outros como uma ameaça à saúde (Nelkin, 1992).

Alguns conflitos não podem ser facilmente mapeados, por atrair indivíduos que não apresentam interesses diretos, mas preocupações sociais, morais ou políticas mais amplas. No debate sobre a destruição da camada de ozônio, os afetados diretamente são as futuras gerações. Os direitos dos animais atraem todos aqueles moralmente envolvidos com sua proteção. Enquanto alguns críticos da biotecnologia estão preocupados com aspectos técnicos ou econômicos específicos, ou com possíveis impactos ambientais, muitos outros se preocupam com as implicações morais de se modificar a vida, de maneira geral. O debate sobre energia nuclear possui contornos ideológicos mais ligados a contextos políticos do que a aspectos tecnológicos. Em todos os casos, o desafio político nasce de um público com preocupações morais e sociais, e bem informado o suficiente para participar das discussões, muitas vezes ajudado por especialistas que procuram expor as incertezas técnicas e os valores políticos por trás do processo decisório. A participação de especialistas pode fornecer

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argumentos fortes para um debate, mas este só se mantém vivo se houver suficiente interesse do público para que haja apoio político. A proliferação de controvérsias sugere que a política científica não é diferente de outras áreas políticas, está sujeita a avaliação e intensa discussão pública. Sua implementação depende de aceitação pública ou, ao menos, de indiferença do público (Nelkin, 1992).

A recusa da ideia de que a resolução das controvérsias científicas dava-se somente baseada em conceitos de verdade e eficácia e na autoridade científica abriu espaço para as discussões sobre a participação do público leigo, e alguns pontos tornaram-se centrais. Primeiro, é pressuposto nas sociedades democráticas que todas as decisões devem ser, senão totalmente, o máximo possível públicas. São as exceções a esta regra que devem ser justificadas devidamente. Segundo, a participação pública é necessária para confirmar ou contestar não só as decisões, mas também a relevância das questões que são ou deveriam ser tratadas pela comunidade científica. Por fim, o saber científico é construído e praticado dentro de instituições, e o grande poder de algumas dessas instituições pode levá-las a tentar manipular informações e impor decisões, caso não sejam continuamente contestadas e criticadas pela opinião pública (Jasanoff, 2003). O conhecimento científico, portanto, só se torna socialmente aceito quando envolve, além de um extenso grupo de experts, os possíveis usuários e o público considerado leigo. Sua validade é testada não somente dentro de laboratórios, mas sim em um mundo em que fatores sociais, econômicos, culturais e políticos moldam os produtos e processos resultantes da inovação científico-tecnológica.

Das premissas construtivistas surge a noção de que uma maior participação pública nas tomadas de decisão relativas a assuntos de natureza técnica melhora o valor público e a qualidade da ciência e da tecnologia. Um modelo participativo seria um grande progresso em relação ao modelo “decidir, anunciar, defender”, pois este último requer muito mais tempo, aliena o público, e produz recomendações uniformes (Futrell, 2003). Exercícios de participação pública costumam obter mais êxito, pois seus participantes representam a população, são independentes, envolvidos desde o início no processo decisório, possuem influência na comunidade local, prezam pela transparência no processo, têm acesso aos recursos, e possuem tarefas definidas (Rowe et al., 2004).

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Surge também o conceito de core set, caracterizado como o grupo ou os grupos de indivíduos dotados de autoridade para opinar e até mesmo decidir uma controvérsia. Collins9 discorre detalhadamente sobre as estratégias utilizadas pelos membros de um core set para enfraquecer seus oponentes, que englobam críticas técnicas à qualidade do trabalho científico, dúvidas quanto às capacidades experimentais e honestidade dos experimentos, avaliações de reputação, que levam em conta o prestígio da instituição que abriga os pesquisadores, o histórico de sucessos e falhas, e aspectos de personalidade e inteligência. As observações científicas apresentam, portanto, uma flexibilidade interpretativa, motivando controvérsias. Materiais, dados, métodos e ideias podem possuir as mais diferentes interpretações, para diferentes posições dentro de um debate. Julgamento e interpretação são, deste modo, conceitos chave, e codependentes; e as controvérsias são resolvidas através de ações que definem uma posição particular como racional e correta aos olhos da comunidade científica.

Inicialmente voltados para os debates de ordem técnica, travados quase que exclusivamente dentro da comunidade científica, os estudiosos do core set passaram a se preocupar também com a inclusão de grupos externos a ela, provenientes do público em geral. Participação Pública e Democratização da Ciência tornam-se, juntamente com a Construção Social do Conhecimento Científico, os assuntos principais das pesquisas dos ESCT. A constituição do conhecimento científico depende, portanto, de configurações sociais particulares.

O campo atualmente engloba duas amplas correntes teóricas principais. A primeira consiste na pesquisa sobre a natureza e as práticas da Ciência e Tecnologia (C&T), tratadas como instituições sociais dotadas de distintas estruturas, compromissos, práticas e discursos que variam de acordo com o tempo e com as diferentes culturas. Esta linha de pensamento atenta para questões como o método científico, a credibilidade dos fatos científicos e a emergência de novas disciplinas. A segunda concentra-se mais nos impactos e no controle da C&T, com foco especial nos riscos oferecidos à segurança, à democracia, à paz, às comunidades, ao desenvolvimento sustentável e aos valores humanos. Suas análises são motivadas por questões como as prioridades no financiamento de pesquisas, a participação de diferentes grupos nos processos decisórios, a medição de riscos e benefícios ligados à C&T, e a comunicação entre a comunidade científica e o público (Sismondo, 2008).

9

COLLINS, H. M. Changing Order: Replication and Induction in Scientific Practice. University of Chicago Press, 1992.

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1.1.1. Expertise e Participação Pública

A disseminação, a partir da década de 1970 nos países centrais do ocidente, de processos participativos pautados na ideia de engajamento dos cidadãos nos assuntos de interesse da coletividade e em movimentos de pluralismo e democracia direta dirigiu a atenção dos ESCT para o debate sobre a participação pública, dentro de um contexto mais amplo e cada vez mais frágil de relações entre Ciência e Sociedade. De acordo com Nowotny

et al. (2001), processos sociais como individualização, privatização e globalização

enfraquecem as categorias fundamentais da modernidade: Estado, economia e cultura; afetando também a Ciência e a Tecnologia, que perdem parte de sua autonomia. A produção de conhecimento passa a contar com o envolvimento de organizações e movimentos sociais, não mais sendo exclusividade das instituições acadêmicas e profissionais tradicionais, ou

experts, e a confiança no progresso da ciência e da tecnologia perde força, enquanto as

preocupações sobre suas consequências aumentam. O conhecimento científico é cada vez mais contestado na arena pública, ou seja, a sociedade começa a responder à ciência.

Rowe & Frewer (2005) definem a participação pública, de maneira geral, como o envolvimento de membros da sociedade civil nas atividades de formulação da agenda, processo decisório e formulação de políticas, dentro das instituições responsáveis pelo desenvolvimento das políticas públicas; em contrapartida a situações de não participação associadas ao modelo tradicional de governança, onde os políticos eleitos, com a ajuda de

experts reconhecidos, decidem as ações políticas sem interferência do público. Diferenciam

também os tipos de participação, baseando-se nas trocas de informações entre as partes envolvidas:

a. Comunicação pública, onde a informação é produzida pelos responsáveis (grupos que promovem a iniciativa política, normalmente agências governamentais ou regulatórias) e transmitida ao público. O fluxo de informação possui um sentido, e não existe participação pública per se, uma vez que a resposta do público não é necessária, ou mesmo procurada;

b. Consulta pública, onde a informação é produzida por membros do público e direcionada aos responsáveis pela iniciativa, em um processo iniciado pelos próprios responsáveis. Não existe um diálogo propriamente dito entre as partes, e acredita-se que as informações coletadas expressem a opinião pública sobre o tópico em questão;

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c. Participação pública propriamente dita, onde as informações são trocadas entre membros do público e os responsáveis pela iniciativa. O processo é marcado por um diálogo envolvendo representantes de ambas as partes, embora em proporções diferentes, dependendo do mecanismo utilizado. Diálogo e negociação são aspectos importantes, que podem mudar opiniões de ambos os lados (Rowe & Frewer, 2005).

Chopyak & Levesque (2002) também destacam algumas formas de participação comumente utilizadas:

a. A pesquisa com base na comunidade (community-based research ou CBR) trata de uma parceria colaborativa entre o pesquisador e a comunidade10, onde a pesquisa é conduzida pela, ou em participação com, a comunidade afetada pelo problema. Já no começo dos anos de 1970, pesquisadores primariamente na Ásia e América Latina começaram a questionar o reducionismo de muitas das pesquisas, e sua incapacidade de resolver os problemas enfrentados pelos indivíduos. Trabalhando em comunidades oprimidas, começaram a colaborar com seus membros para criar e implementar projetos que tinham relevância direta aos interesses da comunidade. A ideia de CBR cresceu durante a década de 1980, pela crescente frustração dos envolvidos em projetos de desenvolvimento internacional com sua incapacidade de resolver problemas ligados à educação, saúde e pobreza. O trabalho conjunto entre pesquisadores e as comunidades, através de métodos participativos, foi um meio de desenvolver soluções mais efetivas a muitos dos problemas enfrentados;

b. As conferências de consenso têm como objetivo atrair a atenção geral para o problema discutido, trazendo a questão para o debate público. Quando a informação relevante é dada aos cidadãos, eles podem fazer recomendações coerentes em assuntos complexos referentes à ciência e tecnologia;

c. Os Scenario Workshops, desenvolvidos nos anos 90, tratam de uma metodologia de planejamento urbano que junta possíveis interessados para discutir e avaliar o impacto de diferentes escolhas tecnológicas em locais específicos. O processo é baseado na

10 Nesse contexto, a comunidade é definida como o grupo de indivíduos com interesses comuns, podendo se

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formulação de cenários que prevêem um dia na vida de um residente local algumas décadas no futuro. Cada cenário descreve métodos alternativos para solucionar problemas como energia, água, moradia, e transporte. Os interessados se reúnem para desenvolver suas próprias visões baseadas nos cenários apresentados, com objetivo de gerar um consenso sobre a escolha de uma visão e articular um plano de ações para realizá-la (Chopyak & Levesque, 2002).

A presença de formas participativas nos processos de formulação de políticas públicas evidencia dois aspectos ressaltados nos ESCT. Primeiro, um desejo crescente por parte do público de se envolver nos processos decisórios; segundo, um certo enfraquecimento da autoridade cultural da Ciência. Concílios de cidadãos, mecanismos de avaliação pública, conferências e debates abertos são cada vez mais explorados em diversos contextos de controvérsias científicas. Exemplo disso é a criação das chamadas Instituições de Avaliação Tecnológica (Technology Assessment), mecanismos internos de controle social da tecnologia. Criado em 1972, nos EUA, o Office of Technology Assessment (OTA) tinha como objetivo oferecer indicações dos prováveis benefícios e riscos da aplicação da tecnologia, com participação e envolvimento popular. Outros exemplos são o Instituto Rathenau da Holanda, e o Danish Board of Technology (DTB) da Dinamarca, países com forte tradição participativa nos quais se incentiva o controle democrático dos desenvolvimentos tecnológicos.

A criação de comitês populares de bioética é outro exemplo interessante. Alguns desses comitês, como o National Comission for the Protection of Human Subjects of

Biomedical and Behavioral Research dos EUA, criado em 1974, teve impactos significativos

não só nas condutas da pesquisa biomédica, mas também nos debates públicos. Segundo Latour (1998), o desenvolvimento de uma nova tecnologia, como a biotecnologia, é um experimento coletivo. Não é mais esperado que a Ciência termine as controvérsias sociais através de uma avaliação precisa e final do problema. Espera-se que ela, como um dos participantes da discussão, contribua com novos, e talvez incertos, ingredientes para um processo coletivo de desenvolvimento. Todos precisam se preocupar com a implementação e desenvolvimento de métodos de avaliação e deliberação.

No entanto, parece que os ESCT ainda encontram certas dificuldades para conciliar os dois aspectos, expertise e participação pública. Muitos dos estudos sobre

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controvérsias científicas são pautados em aspectos de expertise e compreendem grupos majoritariamente compostos pela comunidade científica. A dimensão técnica da questão é a principal preocupação. Isto porque os ESCT se deparam com uma questão prática: a comunidade científica ainda mantém uma posição privilegiada dentro dos debates. Mesmo quando os estudos procuram englobar categorias de conhecimento não cientificamente comprovado na resolução de controvérsias, o enfoque continua o mesmo: conhecimento e

expertise. Somente a linha que separa leigos de experts foi ligeiramente deslocada (Turner,

2001).

Embora ressalte a diminuição da confiança pública nas instituições científicas, Nelkin (1992) destaca o papel importante dos especialistas técnicos na formulação das questões a serem discutidas e na legitimação dos argumentos dos diferentes grupos. Cientistas foram os primeiros a avisar o público sobre os possíveis riscos das pesquisas genéticas, ou sobre os problemas resultantes da destruição da camada de ozônio, e tiveram voz ativa em diferentes opiniões sobre a relação entre alimentação e incidência de câncer. Isso demonstra como diferentes grupos exploram a expertise técnica para desafiar decisões políticas. Ambientalistas contratam seus próprios especialistas para questionar a viabilidade e os riscos potenciais de projetos que consideram danosos. Entre os defensores dos direitos dos animais estão cientistas que criticam a necessidade da utilização de cobaias vivas em pesquisas e questionam sua justificação científica.

Decisões precisam ser tomadas em contextos de conhecimento limitado, sem evidências conclusivas que indiquem uma resolução definitiva. O poder decisório pode depender da habilidade de manipular o conhecimento e desafiar as evidências apresentadas para suportar determinadas políticas. A sapiência técnica é utilizada como um recurso, explorada por diferentes grupos para justificar suas ambições morais e políticas, tornando difícil a distinção entre fatos científicos e valores políticos. A expertise é transformada em uma arma no arsenal político de grupos antagônicos (Nelkin, 1992).

Turner (2001) aponta dois problemas relativos à participação majoritária de

experts no processo decisório. O primeiro deriva da teoria social, e diz respeito ao princípio

da igualdade dentro das democracias liberais. As desigualdades de conhecimento geram assimetrias na participação de especialistas e não especialistas, desrespeitando os direitos de participação igualitária dos cidadãos. A expertise é vista, desse modo, como uma ameaça política, uma vez que os experts são tratados como detentores de conhecimentos que lhes

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