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São poucos os estudos acerca do repertório lingüístico de origem africana no Brasil. A religião é uma das áreas que conservam mar- cas lingüísticas dos valores ancestrais negros. A estudiosa Yeda Pessoa de Castro, professora da Universidade Federal da Bahia, dedicou-se a romper o silêncio existente sobre as línguas africa- nas no Brasil. A fim de dar voz e vez às línguas silenciadas, tere- mos a oportunidade de conhecer o que a autora expressa sobre o assunto, no artigo “Colaboração, Antropologia e Lingüística nos Estudos Afro-Brasileiros” (Pallas, 1999).

Antropologia e Lingüística

Já o comportamento dos lingüistas em relação ao influxo de línguas africanas no português do Brasil é o “lavar as mãos”, como Pilatos. Em outros ter- mos, alegando a falta de documentos lingüísticos do tempo da escravidão, prefere-se dar por encerrado esse assunto (...). Ou, então, atribuir a responsabilidade dessa tarefa aos africanistas que lidam com o concei- to de religião, a partir da conclusão não menos ab- surda de que os falares africanos foram resguarda- dos nos terreiros, confinados ao uso exclusivamente de natureza litúrgica, sem que tivessem participado do processo de configuração do perfil da língua por- tuguesa do Brasil, o que também não é verdadeiro. Por outro lado, esse distanciamento das línguas afri- canas, que se reflete na sua ausência dos currículos universitários, tem um motivo não confessado, ou seja, não admitir que línguas de tradição oral pudes- sem influir em uma língua de reconhecido prestígio literário como a portuguesa. Conseqüentemente, se- gundo essa apreciação, os fatos que podem denunci-

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ar um movimento em direção oposta são vistos como “tra- ços mal disfarçados pelo português” em lugar de expres- sões de resistência dos falantes africanos ante um siste- ma lingüístico estranho que servia a sua escravização, a exemplo da redução e simplificação das formas verbais “nós vai, nós fala” etc, de uso generalizado na lingua- gem popular do Brasil.’

O texto abaixo foi retirado do livro Bantos e Malês e identidade negra, de Nei Lopes (Forense Universitária, 1988). Esse estudioso apresenta, em sua pesquisa, as várias influências africanas no falar brasileiro, principalmente as mudanças na fonética. Vejamos algu- mas delas:

Pai João

autor/a desconhecido/a Lundu [dança de origem africana] Quando Iô tava na minha terá Iô chamava capitão,

Chega na terá de baranco. Iô mi chama – Pai João.

Grupos consonantais são separados pela inclusão ou de um grupo vocálico ou de uma vogal. Exemplo: baranco, por branco. Mais abaixo, veremos os termos: cane, ao invés de carne, fruta no lugar de furta.

Quando Iô tava na minha terá Comia minha garinha,

Chega na terá dim baranco, Cane seca co farinha.

O r com pronúncia forte não existe na língua bantu, por isso é substituído pelo l ou pelo r fraco. Como terra por tera, gali- nha por garinha.

Quando Iô na minha terá Iô chamava generá

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A supressão do l ou r no final das palavras. Exemplo: generá no lugar de general, aturá no de aturar.

Dizofor dim baranco Nó si póri aturá,

Ta comendo, ta... drumindo, Manda negro trabaiá

O fonema lh transforma-se em i. Exemplo: trabaiá ao invés de trabalhar.

Baranco — dize quando more Jezuchrisso que levou,

E o pretinho quando more Foi cachaxa que matou Nosso preto quando fruta Vai pará na coreção

Sinhô baranco quando fruta Logo sai sinhô barão.

Uso dos diminutivos de nomes próprios ou de apelidos de tratamento: exemplo: sinhô, dinhinha. Pode-se encontrar o registro de deformação de nomes próprios. Joca, Chico, Zeca, Doca.

Após a leitura dos textos apresentados neste capítulo, você deverá fazer as atividades:

1. Passe a observar a presença de algumas influências nas falas das pessoas, em textos poéticos, nas cantigas (de capoeira, congadas, maracatus, cocos, cirandas, batuques etc), nas emboladas, no rap.

2. Um texto, além das marcas e influências lingüísticas, apre- senta – do ponto de vista do sentido (da semântica) – informações importantes que são apreendidas a partir do contexto em que se fala ou se escreve. O “eu” da canção faz uma acusação e se defende ao mesmo tempo. Qual a crítica presente no texto e a que contexto de nossa histó- ria se refere?

3. Que informações ou hipóteses podemos levantar, a par- tir das duas últimas estrofes?

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4. Um dos significados de territorialidade é: área que um grupo ocupa e que é defendida contra a invasão de outros indivídu- os da mesma espécie. Na primeira estrofe do lundu, de que forma aparece a alusão à territorialidade?

Recorremos mais uma vez ao texto de Munanga Kabenguelê, Nota lingüística, sobre a população negra e africana para discutir a noção de territorialidade e cultura.

(...) os escravos africanos e seus descendentes nun- ca ficaram presos aos modelos ideológicos excluden- tes. Suas práticas e estratégias desenvolveram-se den- tro do modelo transcultural, com o objetivo de for- mar identidades pessoais ricas e estáveis que não podiam estruturar-se unicamente dentro do limite de sua cultura. Tiveram uma abertura externa em duplo sentido para dar e receber influências cultu- rais de outras comunidades, sem abrir mão de sua existência enquanto cultura distinta e sem desres- peitar o que havia de comum entre os seres huma- nos. Visavam à formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante com o ou- tro. Precisamos desse exemplo de união legado pela República de Palmares para superar e erradicar o racismo e seus duplos.

De olho na língua:

1. Amplie seu universo de compreensão, investigue um pou- co mais sobre o tema territorialidade e sobre a importân- cia dos vários quilombos que existiram e existem até hoje em todas as regiões do nosso país.Visite sites que tratam do tema quilombos. Elabore um texto dissertativo sobre a relação territorialidade-quilombo e reforma agrária.

2. Leia o texto a seguir, denominado Carreira. Consulte tex- tos e dicionários especializados, tais como o Novo dicioná- rio banto do Brasil (Pallas, 2003) de Nei Lopes “Das Lín- guas Africanas ao Português do Brasileiro” (Afro-Ásia, CEAO, nº 14, 1983) e “Notícia de uma Pesquisa em Áfri- ca” (Afro-Ásia, CEAO, nº 1, 1965), da pesquisadora Yeda Pessoa de Castro. Procure identificar as influências estu- dadas até o momento, outras que você conheça ou tenha percebido em seu exercício de leitura.

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Carreira

(Teotônio e Bomba) Vô lembrá dos velho tempo/dos tempo da escravidão/ que o negro não sabia lê/ e só sofria judiação (bis)// o negro nego não sabia lê/ e só sofria judiação/ e trabaiava sol a sol/ inda apanhava do patrão// (Teotônio) “Mai´ no mei´de nego burro/tinha um nego que era bão/ o sinhô comprô o nego/eu vou contá que aflição/ e Joãozinho vendeu pa Pedro/ e vendeu por dez tostão/ quando chegô no caminho/ olhe lá que confusão/ ele pediu o nome do home/ home negô istrivo (estribo), disse que não/ meu nome, meu nome é fogo/ vô dá res- posta a sinhô/ veja, o seu nome é fogo/ ce vai perdê sua direção/ eu sô água que apaga fogo/ onde que o nego é prisão/ eu sô água que apaga fogo/ eu não sô nego turrão// e se ocê batê ni mim/ sua muié chora sem ra- zão// porque o negrinho era decente/ e era burro inte- ligente de nação/ era burro inteligente de nação”.2

Ouvimos falar em preconceito contra o negro, o idoso, a mulher, o/a jovem etc. E preconceito lingüístico, o que é? Descu- bra e veja como ele pode estar relacionado ao texto estudado.

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CD Batuques do Sudeste. Documentos Sonoros Brasi- leiros – Acervo Cachuera! , Coleção Itaú Cultural, SP.

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