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CAPÍTULO I – PROCESSOS POLÍTICOS E SOCIAIS DA GOVERNANÇA

1.2 Expropriação e conflitos na Amazônia

O processo de ocupação da Amazônia foi marcado pela presença de inúmeros atores sociais e conflitos pela posse e uso de recursos naturais. Seria possível iniciar esta seção reportando-me às aventuras dos colonizadores pelos rios e lagos da região e seusprocessos de conquista, submissão e extermínio de centenas de povos indígenas. Embora esta história não deva ser esquecida, as transformações contemporâneas na região e os processos que desejo, verdadeiramente, reportar-me, estão mais relacionados com as intervenções do Estado brasileiro durante o Regime Militar (1964-85), representado pela intervenção e execução de diversas políticas com forte apelo à exploração intensiva de recursos naturais, do que os acontecimentos pretéritos ao período.

Antes de 1964 havia na Amazônia uma economia, primordialmente, extrativista (borracha, depois juta e malva) e de subsistência, na qual as agências de incentivo à economia, tais como a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPEVEA), criada em 1953, e o Banco de Crédito da Amazônia, não incentivavam maiores impulsos às atividades produtivas da região (IANNI, 1986). O que houve a partir de 1964 foi uma intervenção, contundente, do Estado brasileiro através de políticas econômicas de incentivo à entrada de empresas nacionais e estrangeiras na economia regional e à execução de grandes projetos de infraestrutura, entre as quais a criação de rodovias e hidrelétricas.

Nos anos de 1960 ocorreu a dinamização do sistema de transporte e comunicação,responsáveis pela maior intensificação das relações com o restante do

país, possibilitado pela criação de rodovias importantes como a Belém-Brasília, a Transamazônica, a Perimetral Norte, a Cuiabá-Santarém e a Manaus-Boa Vista, sendo que esta última foi deveras importante por fazer fronteira com a Venezuela (BR-174), entre outras. Todo esse esforço objetivava diminuir a dependência do transporte por via fluvial. Além disso, foram redimensionadas e criadas novas agências governamentais, permitindo a presença mais ativa do setor público e privado na economia regional.

Neste sentido, destaco a criação da Superintendência do Desenvolvimento

da Amazônia (SUDAM), em substituição à SPEVEA. Desde 1966, a SUDAM passou a

ser o principal órgão governamental para a dinamização e diversificação da economia amazônica, criando incentivos fiscais e financeiros para atrair investidores privados, nacionais e estrangeiros e dinamizando setores agrícolas, pecuários, industriais e de mineração. Neste mesmo ano, 1966, criou-se o Banco da Amazônia S.A (BASA), reformulado a partir do Banco de Crédito da Amazônia S.A que, junto com o Banco do Brasil, o qualestava em processo de ampliação de suas agências na região, e a SUDAM, deram um grande impulso aos empreendimentos econômicos, públicos e privados. E, em 1967, foi criada a Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA), que contando com os incentivos fiscais, trouxe inúmeras indústrias, nacionais e estrangeiras, detentoras de tecnologia para alavancar a economia da região e colocá-la, de uma vez por todas, conectada com os mercados nacionais e internacionais (IANNI, 1986).

Os projetos governamentais para o incremento da economia foram acompanhados por intensa migração de trabalhadores rurais, provindos de todas as regiões brasileiras, principalmente, da região Nordeste. Foi neste período, que a busca e a ocupação de terras indígenas e devolutas (de propriedade da união) da Amazônia, começavam a ser fonte de especulação e disputa por diversos atores sociais, iniciando pelo estado de Mato Grosso e avançando pela região sul do Pará e, em seguida, para os demais estados da região Norte.

De fato, os trabalhadores rurais sem terras, juntamente com seus familiares, encontravam na região centenas de hectares de terras sem “proprietários” legais e livres de qualquer burocracia para serem ocupadas12. Mas não foram apenas pequenos

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Vale ressaltar que o posseiro é um personagem antigo na Amazônia. A ocupação da região por trabalhadores de outras regiões do país foi um processo que passou por diversos períodos econômicos. A ideia da Amazônia como terra-sem-fim, de fartura e de vastos mananciais foi predominante até os anos 50 e 60. Tal crença sempre atraiu “colonos” para estas terras, porém, foi a partir de 1964 que a migração intensificou-se e as disputas por terra agravaram-se.

produtores rurais que chegaram através das recém-construídas rodovias. Com os incentivos fiscais, creditícios, econômicos e políticos concedidos pela SUDAM e o BASA, empresários e fazendeiros também foram atraídos, engrossando a produção agrícola, pecuária e o extrativismo vegetal e mineral. Neste cenário, também chegaram à região, técnicos, gerentes, empreiteiros, latifundiários e agentes do governo. Desenha- se, assim, na Amazônia, um complexocontextode múltiplos atores eseus diferentes interesses.

Assim, intensificou-se a busca por “terras virgens”, quer sejam elas indígenas ou devolutas, principalmente em regiões ricas pela presença de minérios ou com terras férteis. Desde que o governo começou com a política fiscal e creditícia para a Amazônia, a migração provinda do Nordeste, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarinadirecionou-se na buscapor terras da Amazônia, ocupando, também, as pequenas e grandes cidades da região. Desta forma, as áreas de uso comum habitadas por indígenas, ribeirinhos ou por “posseiros” (colonos antigos) foram ocupadas, vendidas ilegalmente ou contestadas para servir à empresas e fazendeiros. Foi neste contexto que o processo de expropriação de indígenas e posseiros ocorreu, gerando diversos conflitos sociais. Nestas disputas o Estado tendeu a facilitar para o lado de latifundiários e empresários.Exceto quando indígenas e posseiros organizavam-se e resistiam, tornando conhecidas suas lutas, era que conseguiam algum benefício do Estado, tais como uma “reserva” ou um documento sobre a terra (IANNI, 1986).

A característica central destas políticas era o estímulo ao uso intensivo da terra e dos recursos naturais. Os apoios financeiros oferecidos pela SUDAM, para o desenvolvimento da agropecuária ou mesmo através da política de assentamento, conduzida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), estavam orientados para a exploração intensiva de recursos naturais (ESTERCI; SCHWEICKARDT, 2010). A ideia do vazio demográfico e da necessidade de “integrar” economicamente a região ao restante do país fundamentaram, ideologicamente, as políticas adotadas pelos governos militares para o desenvolvimento da Amazônia.

No primeiro momento, o processo de expropriação e conflito concentrava-se na região ao sul da Amazônia. O estado do Amazonas, por ter recebido uma política de incentivo às atividades industriais, sentiu menos os conflitos por terra e recursos naturais. Porém, como destacou Ianni (1986), não ficou imune aos problemas e conflitos

por terra. O autor argumenta que o problema da posse da terra chegou ao estado do Amazonas com as construções da BR-319, da Porto Velho-Manaus, da BR-174 (Manaus-Caracaraí, mais conhecida como Manaus-Boa Vista) e da AM-010, Manaus- Itacoatiara. Segundo a estatística, que relata o número de conflitos, ditos “normais” e de conflitos graves, pela terra, em 1976, o estado do Amazonas apresentou um total de 10 conflitos, totalizando 3 conflitos graves, com 4 mortos e 1 ferido; o estado do Pará apresentou 15 conflitos, totalizando 3 conflitos graves, com 8 mortos e 2 feridos; o estado do Acre apresentou 7 conflitos, totalizando 2 conflitos graves, com 0 mortos e 7 feridos (SILVA; SILVA, 1977).

Entretanto, a política de incentivo à indústria, principalmente, no estado do Amazonas, pressionou a exploração de recursos naturais, mesmo que indiretamente.Isto porque, devido ao aumento populacional da cidade de Manaus, com a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), a demanda por alimentos aumentou, principalmente a de recursos pesqueiros (culturalmente muito consumido na região amazônica13), criando um grande mercado consumidor de pescado. Logo, estes recursos foram alvo de forte exploração econômica,ocasionando disputas nos rios e lagos da região,habitados pelos chamados “ribeirinhos” (BATISTAet al, 2004; SMITH, 1979). Assim, as políticas do Estado brasileiro para o desenvolvimento regional estenderam-senão sóaos vários ambientes e recursos naturais da Amazônia, mas, também, a diversos interessados na exploração econômica do minério, agricultura, pecuária e pesca.

Em se tratando da atividade pesqueira, embora a mesma não fosse uma atividade prioritária na política desenvolvimentista dos governos militares, esta sofreu mudanças, significativas, durante o período. Assim,o modelo de conceder crédito a grandes empresas para financiar a expansão de suas atividades também chegou ao setor pesqueiro. O resultado disso, nas décadas seguintes, foi o aprofundamento das desigualdades quanto ao uso e acesso aos recursos pesqueiros na região (RUFFINO, 2005).As empresas do setor passaram a investir, maciçamente, na aquisição de

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De acordo com Bayley & Pretere (1989), citado por Baerthem & Fabré (2004), uma estimativa realizada no final da década de 80, aponta que o total de peixes desembarcado nos centros urbanos e o consumido pelas populações rurais na Amazônia situava-se em torno de 400.000 toneladas anuais. Número este que se destaca em termos nacionais, haja vista que a pesca na costa brasileira nunca alcançou 1.000.000 toneladas anuais (DIAS-NETO; MESQUITA, 1988 apud BAETHEM; FABRÉ, 2004). Para Batista et al.(2004, p. 76) “o pescado é destacadamente a principal fonte proteica na alimentação das populações ribeirinhas amazônicas [...], sendo os maiores valores de consumo de pescado já registrados no mundo”.

tecnologias que permitissem o aumento da produção e do tempo de armazenamento do pescado,tais como o uso de barcos mais velozese com maior capacidade de armazenamento.

As áreas rurais próximas aos centros urbanos começaram a apresentar decréscimo de estoques pesqueiros comercializáveis (CASTRO, 2000; BATISTAet al, 2004).Os pescadores artesanais,portando pequenas canoas e utensílios com baixo esforço de pesca não conseguiam competir junto aos barcos de pesca comerciais,fato este que os levava a migrarem para os centros urbanos, passando a servir como empregadosdas empresas de pesca (MELLO, 1985). Desta forma,assim como aconteceu com a agricultura, a pecuária e o extrativismo mineral e vegetal, a atividade pesqueira também foi posta sob o julgo do capital através das políticas econômicas dos governos militares.

Smith (1979), analisando a pesca no estado do Amazonas, aponta o aumento da frota pesqueira, incentivada pelo crescimento da demanda de peixe, como um dos causadores dos conflitos sociais entre pescadores. As embarcações cada vez mais se distanciavam da cidade de Manaus, a capital do estado do Amazonas, percorrendo lagos até então explorados apenas por ribeirinhos, gerando conflitos entre os pescadores comerciais e os habitantes dos lagos da região.

É possível concluir, a partir de tudo isto, que o processo de expropriação e privatização das áreas comunais na Amazônia foi fruto da negligência das políticas e das agências estatais que não consideravam a ideia de “propriedade comunal”14 (BERKES, 1989; HESS, OSTRTOM, 2003) ou mesmo os significados de “posse”15 (MARTINS, 1984) e “propriedade”16 para os pequenos produtores da Amazônia (ESTERCI, 2009), já que estes são conceitos construídos a partir de outros parâmetros (ESTERCI; SCHWEICKARDT, 2010). Neste caso, a ideia de desenvolvimento estava, unicamente, associada ao crescimento econômico via aumento da produção agrícola, pecuária, industrial e extrativismo mineral, vegetal e animal. Não se pensava na

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Regimes de propriedade comum são aqueles pautados no controle social do acesso e da retirada de recursos locais, tais como água, floresta, áreas de pasto e de pesca. Regimes como este têm se desenvolvido ao longo do tempo e em várias partes do mundo, todavia, raramente ganham status de códigos legais.

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A posse é uma situação legítima e legitimada pela concepção de que a terra é destinada ao trabalho e à produção dos necessitados.

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A propriedade é o espaço da casa da família, a roça, o sítio, as capoeiras e os espaços que ainda serão cultivados e que estão guardados para futuros roçados. Incluem-se também as áreas de uso comum, tais como pastagens naturais, florestas e fontes de água, dentre outros.

possibilidade de outras economias, baseadas tão-só na produção familiar, no desenvolvimento social e na relação virtuosa e respeitosa com a natureza.