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A FALSA IDÉIA DA SOCIEDADE DA ABUNDÂNCIA

3.1.8.1 A Mudança na Estrutura Produtiva.

4 AS ASSOCIAÇÕES DE CONSUMIDORES E O SUBSISTEMA DO CONSUMO

4.2 A FALSA IDÉIA DA SOCIEDADE DA ABUNDÂNCIA

Então – sois vós que o dizeis ainda – surgirão novas relações econômicas, plenamente acabadas e também calculadas com precisão matemática, de modo que desaparecerá num instante toda espécie de perguntas, precisamente porque haverá para elas toda espécie de respostas. Erguer-se-á então um palácio de cristal. Então... bem, em suma, há de chegar o Reino da Abundância52

Em primeiro lugar, é preciso afastar a idéia de que uma sociedade de abundância se caracteriza pela satisfação com facilidade das necessidades materiais e culturais. As sociedades industriais e produtivas são caracterizadas pela raridade e pela obsessão de raridade, corolários da economia de mercado. Quanto mais se produz, mais se sublima, no

51 GALBRAITH. John Kenneth. A economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo. Trad. Paulo

Anthero Soares Barbosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 22-30.

próprio seio da profusão. Portanto, só há os signos da abundância, perseguidos por debaixo do aparelho da produção e dos signos da pobreza e da raridade.

Nas sociedades primitivas, a imprevidência e prodigalidade coletiva eram sinais da abundância real. Havia transparência e reciprocidade nas relações sociais, gerando confiança mútua entre seus membros. Não existia bloqueio das permutas concretas e não havia raridade, porque não ocorria o monopólio do solo, dos instrumentos ou dos produtos do trabalho. A riqueza não se baseava nos bens, mas na permuta concreta entre as pessoas.

Na sociedade contemporânea, substituiu-se essa “dialética concreta e relacional” por uma “dialética da penúria e da necessidade ilimitada”. Trata-se de uma sociedade diferencial, na qual cada relação social intensifica a carência individual, pois toda a coisa possuída é relativizada na conexão com os outros.

Dessa maneira, pode-se afirmar que na sociedade hodierna a abundância real se perdeu, não podendo ser restituída pela produtividade ilimitada e pela libertação de novas forças produtivas. A lógica social do consumo nos tempos atuais condena esta sociedade à penúria luxuosa e espetacular.

4.2.1 O Paradoxo do Desperdício como sinal da Abundância

Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Podeis cobri-lo de todos os bens terrestres, afogá-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água; dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a fazer a não ser dormir, comer pão-de-ló e cuidar da continuidade de história universal – pois mesmo nesse caso o homem, unicamente por ingratidão e pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão-de-ló e desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico, apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e destrutivo. 53

Em sede de consumo, os seres organizar-se-ão em função da sobrevivência ou em função do sentido, individual ou coletivo, que dão às suas vidas? A abundância só terá sentido no desperdício?

A sociedade de consumo caracteriza-se pela busca do poder, pela ambição de ter mais e melhor, mais depressa e muito mais vezes.

53 DOSTOIÉVSKI, 2000, op. cit. p. 43-44.

Como assinala Raymond Williams, citado por Mike Featherstone54, um dos primeiros usos do termo “consumir” significava “destruir, gastar, desperdiçar, esgotar”. Dessa forma, o consumo, como desperdício, excesso e esgotamento, representa uma presença paradoxal no âmbito da ênfase produtivista das sociedades capitalistas.

De fato, a abundância das sociedades ricas está associada ao desperdício, falando-se até numa civilização do caixote de lixo, lastreada na máxima: “diz-me o que deitas no lixo e dir-te-ei quem és”. 55

O indivíduo e a sociedade se sentem existindo e vivendo no consumo do excedente e do supérfluo, razão pela qual desperdiçam, dilapidam, gastam e consumem sempre além do estritamente necessário. Logo, para que a abundância se torne um valor, é preciso não o bastante, mas o demasiado.

O esbanjamento desafia a raridade e paradoxalmente significa abundância, sendo, pois, o elemento diretor do esquema psicológico, sociológico e econômico da abundância. É por isso que, no Ocidente, as biografias dos heróis da produção sucumbem por toda a parte, diante dos heróis do consumo. Não se exaltam as vidas exemplares dos self made men e dos fundadores, dos pioneiros, de exploradores e colonos, mas de vedetes do cinema, do desporto e do jogo e de alguns príncipes dourados ou de feudais internacionais.

Este consumo prestigioso acabou por personalizar-se e comunicar-se através dos meios de comunicação de massa, tendo como função estimular o consumo, como uma subcultura laboriosa.

Interessa verificar que esse desperdício de luxo, incentivado pelos meios de comunicação de massa, tendo como função, no plano cultural, o esbanjamento funcional e burocrático, causado pela produção e, ao mesmo tempo, pelos bens materiais a ela incorporados, realça as características e dimensões do objeto de consumo: a sua fragilidade e obsolescência calculada, a sua condenação à efeméride.

54 FEATHESTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-modernismo. Trad. Julio Assis Simões. São Paulo:

Studio Nobel, 1995. p. 41. (Coleção cidade aberta. Série megalópolis).

Com efeito, essa constatação contradiz os postulados econômicos racionalistas baseados na utilidade, na necessidade, pois a ordem de produção somente sobrevive ao preço do extermínio dos objetos, da sabotagem tecnológica, ou do desuso organizado sob o signo da moda.

A destruição torna-se o objetivo da produção e surge o problema do que fazer com la

part maudite traduzida em um excesso de produtos e mercadorias, um processo de

crescimento que alcança seus limites na entropia e na anomia. Então, a única solução é esbanjar o excesso na forma de jogos, religião, artes, guerra e morte.

Ressalte-se que a sociedade de consumo valoriza a destruição violenta dos objetos, através do desperdício. Entre a produção e a destruição violenta dos objetos, o consumo não passa de termo intermediário entre os dois. A destruição de objetos, seja sob a forma violenta e simbólica (happening, potlatch56, acting out destrutivo, individual e coletivo), seja sob a

forma de destrutividade programada (sabotagem tecnológica, moda), consubstancia-se em uma das funções preponderantes do consumo na sociedade pós-industrial.