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Capítulo II : A Questão

2.12. A Falsidade

2.12.4. A falsidade está no intelecto

A investigação de São Tomás a respeito da falsidade no intelecto conduz o autor a elencar três momentos fundamentais no seu discurso: primeiro, a etimologia da palavra intelecto; segundo, um entendimento de intelecto que consiste em conhecer a essência de uma coisa; terceiro, um entendimento de intelecto que consiste no conhecimento dos pri- meiros princípios317.

São Tomás recorre à etimologia na investigação a respeito da existência de falsidade no intelecto. A formação do termo intelecto auxilia na compreensão da sua função e do seu

315 Cf. De veritate, q. 1, a. 11, r.

316 «Pois o juízo dos sentidos em relação a algumas coisas é natural, como no caso dos sensíveis próprios; em relação a outras, no entanto, ocorre como por certo confronto, realizado no homem pela faculda- de cogitativa, a qual é uma potência da parte sensitiva, em cujo lugar há nos outros animais a estimativa natu- ral, e assim a potência sensitiva julga os sensíveis comuns e os sensíveis por acidente, mas na acção natural de alguma coisa ocorre sempre do mesmo modo, a menos que não seja impedida por acidente ou por algum defeito intrínseco ou por impedimento extrínseco». «Sensus autem iudicium de quibusdam est naturale, sicut de propriis sensibilibus; de quibusdam autem quasi per quamdam collationem, quam facit in homine vis cogi- tativa, quae est potentia sensitivae partis, loco cuius in aliis animalibus est aestimatio naturalis; et sic iudicat vis sensitiva de sensibilibus communibus et de sensibilibus per accidens. Naturalis autem actio alicuius rei semper est uno modo, nisi per accidens impediatur, vel propter defectum intrinsecus, vel extrinsecus impedi- mentum». (cf. De veritate, q 1, a 11, r).

agir, lançando luz sobre a questão em mãos. «O nome “intelecto” é atribuído por conhecer o íntimo das coisas: pois entender é como que um ler dentro (intus legere). Ora, o sentido e a imaginação conhecem somente os acidentes exteriores; só o intelecto alcança o interior e a essência da coisa»318.

Na raiz etimológica de intelecto encontra-se o verbo intelligere, o qual designa uma capacidade e actividade cognitiva correspondente ao acto do entendimento319. São Tomás

recorre à etimologia para melhor expressar a função exercida pelo intelecto, termo cunhado pela conjugação de intus-dentro e legere-ver, permitindo a formação de um sentido geral presente significando o ver por dentro, conhecer a essência das coisas. Neste sentido, o autor determina o campo de acção do intelecto como o conhecimento da realidade interior, da essência daquilo pelo qual a coisa é e se distingue de todas as outras coisas.

No que diz respeito aos modos de entender o intelecto, o primeiro modo versa a respeito do que confere o nome ao termo intelecto, ou seja, a capacidade de ver o interior da coisa. Neste sentido, São Tomás refere a apreensão da quididade da coisa, e considera que se pode afirmar que entendemos propriamente quando apreendemos a quididade da coisa. «Ora, a quididade da coisa é o objecto próprio do intelecto: por isso, assim como o sentido quanto aos sensíveis próprios é sempre verdadeiro, assim também o intelecto ao conhecer aquilo que é, como se diz em De anima [11]»320. São Tomás reconhece que a apreensão da quididade de uma coisa é o objecto sobre o qual se debruça o intelecto e que este lhe é próprio da mesma forma que a apreender os sensíveis próprios o é para os senti- dos. Porém, ao apreender a quididade da coisa, por acidente pode ocorrer falsidade321. Em

que casos é que verifica esta falsidade?

A falsidade acontece nas operações realizadas pelo intelecto de composição e divi- são. Tal verifica-se de dois modos: primeiro, quando o intelecto atribui a definição de uma coisa a outra coisa. O exemplo oferecido por São Tomás é a animal racional mortal como sendo a definição de jumento. O segundo, ao juntar partes de uma definição que não podem ser juntadas. O exemplo referido por São Tomás é o seguinte: conceber a definição de

318 «Dicendum, quod nomen intellectus sumitur ex hoc quod intima rei cognoscit; est enim intelligere

quasi intus legere: sensus enim et imaginatio sola accidentia exteriora cognoscunt; solus autem intellectus ad interiora et essentiam rei pertingit». (cf. De veritate, q. 1, a. 12, r).

319 Cf. M. MORAIS, Intelecto, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Vol. II, (Lisboa:

Editorial Verbo1999) 1450-1455.

320 «Quiditas autem rei est proprium obiectum intellectus; unde, sicut sensus sensibilium propriorum

semper verus est, ita et intellectus in cognoscendo quod quid est ut dicitur in III de anima». (cf. De veritate, q. 1, a. 12, r).

jumento como: animal irracional imortal322. E conclui: «E assim fica claro que a definição

só pode ser falsa enquanto implicar uma afirmação falsa»323.

Por último, São Tomás considera a redução aos primeiros princípios como caminho para o conhecimento e afirma: «Do segundo modo, quando entendemos aquilo que imedia- tamente é notado pelo intelecto ao conhecermos as quididades das coisas, como no caso dos primeiros princípios, que conhecemos ao conhecermos os termos, por isso se diz que o inte- lecto é o hábitos dos princípios»324. O conhecimento dos primeiros princípios não implica

falsidade, pois quanto a estes o intelecto não se pode enganar. A caracterização destes pri- meiros princípios pode ser feita da seguinte forma: imediatos, universais, necessários, epis- temológicamente e metafísicamente anteriores, explanatórios325. No entender de São Tomás

em relação aos primeiros princípios o intelecto não se pode enganar. «Por isso, no intelecto há falsidade, nunca porém se se realiza correctamente uma redução aos primeiros princí- pios»326.

2.13. Conclusão

Na questão 1ª Questão do De veritate, São Tomás debruça-se sobre o que seja a verdade e reflecte esta questão de diversos pontos de vista. A forma como enquadra a pro- blemática permite termos um olhar holístico a respeito da verdade. São Tomás encara a questão da verdade em múltiplos aspectos sem os desligar uns dos outros, mas entrecruzan- do os diversos domínios por forma a constituir um todo. Os elementos que constituem esta questão são dispostos por forma a responder à questão, o que é a verdade? E a forma de olhar para a questão permite a investigação até ao fundamentos sem perder a noção de con- junto do objecto de estudo em causa, a verdade.

Neste âmbito consideramos importante sublinhar três pontos que nos permitem sin- tetizar o estudo realizado por São Tomás nesta 1ª Questão: primeiro, as três definições de

322 Cf. De veritate, q. 1, a. 12, r.

323 «Et sic patet quod diffinitio non potest esse falsa, nisi in quantum implicat affirmationem falsam».

(cf. De veritate, q. 1, a. 12, r).

324 «Et sic dicimur proprie intelligere cum apprehendimus quiditatem rerum, vel cum intelligimus illa

quae statim nota sunt intellectui notis rerum quiditatibus, sicut sunt prima principia, quae cognoscimus dum terminos cognoscimus; unde et intellectus habitus principiorum dicitur». (cf. De veritate, q. 1, a. 12, r).

325 Cf. S. MACDONALD, Theory of knowledge, 173.

326 «Et sic in intellectu est falsitas; numquam tamen si recte fiat resolutio in prima principia». (cf. De

verdade oferecidas por São Tomás; segundo, a dependência da verdade primeira que é Deus criador; terceiro, a falsidade como inadequação entre a coisa e o intelecto.

As três definições de verdade oferecidas por São Tomás são a verdade transcenden- tal, a verdade formal e a verdade como conhecimento. As três noções marcam o tratamento da questão pois cada uma delas tem implicações nas demais e apenas podem ser entendidas numa relação pericorética. A verdade transcendental é base e fundamento para as demais, mas sem adequação da coisa ao intelecto não pode existir verdade formal e consequente- mente, o conhecimento como efeito da verdade.

São Tomás sai de uma perspectiva imanente para entrar num âmbito teológico, em que a relação entre o Criador e as criaturas é chave para entendermos a noção de verdade. A filosofia serve de pórtico de entrada para compreendermos o que se passa com o homem, mas ajuda-nos a entrever de que forma é que podemos entender a verdade à luz de Deus criador. O Deus criador tem em si os arquétipos com que criou cada realidade e mantém na existência cada uma dessas realidades.

Ao terminar esta questão versando sobre a falsidade, São Tomás cobre o amplo espectro da noção de verdade, mas também daquilo que é a negação da verdade. A verdade é a adequação da coisa ao intelecto, pelo contrário, a falsidade é a inadequação da coisa ao intelecto. A investigação torna-se desta forma o mais completa possível, pois o estudo da verdade deve elucidar-nos igualmente sobre o que seja o seu contrário, a falsidade.

CAPÍTULO III SÍNTESE