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Capítulo II : A Questão

2.12. A Falsidade

2.12.3. A falsidade está nos sentidos

Uma vez que a falsidade é uma ocorrência possível do acto de conhecimento, a grande questão situa-se em saber se a falsidade se encontra nos sentidos. O entendimento de que os sentidos enganam e são causa de falsidade tem longa tradição no pensamento ocidental. Tendo em conta esta longa corrente, São Tomás não deixa de colocar esta peran- te o exame da dialéctica.

305 Cf. De veritate, q. 1, a. 10, r.

306 «Nec tamen res est hoc modo causa falsitatis in anima, quod necessario falsitatem causet; quia

veritas et falsitas praecipue in iudicio animae existunt, anima vero in quantum de rebus iudicat, non patitur a rebus, sed magis quodam modo agit». (cf. De veritate, q. 1, a. 10, r).

307 Cf. De veritate, q. 1, a. 10, r.

308 «Sed comparatio ad intellectum humanum est ei accidentalis, secundum quam non dicitur absolu-

te vera sed quasi secundum quid et in potentia». (cf. De veritate, q. 1, a. 10, r).

Qual é o papel dos sentidos para São Tomás? No entendimento deste autor o conhe- cimento tem início nos sentidos, o que significa uma anterioridade dos sentidos no processo de conhecimento em relação ao intelecto. O intelecto irá depois trabalhar os dados adquiri- dos pelos sentidos aperfeiçoando esse mesmo conhecimento. Se há esta anterioridade dos sentidos em relação a acção do intelecto, por conseguinte, os sentidos são concebidos como exercendo um papel de mediação entre as coisas e o intelecto, como afirma São Tomás:

O nosso conhecimento, que tem início nos sentidos, progride deste modo: em primeiro lugar, principia nos sentidos e, em segundo lugar, aperfeiçoa-se no intelecto, daí que os sen- tidos de certo modo medeiam entre o intelecto e a coisa: pois são comparados com as coisas como se fossem um intelecto, e ao intelecto como se fossem uma coisa310.

A noção de mediação referida por São Tomás permite compreender os sentidos em relação com os dois elementos referidos as coisas e o intelecto. As afirmações do autor a respeito dos sentidos no seu papel de mediação são liminares: «são comparados com as coisas como se fossem um intelecto e comparados ao intelecto como se fossem uma coisa». Com o propósito de aclarar o papel desempenhado pelos sentidos no conhecimento bastaria entender os sentidos como se fossem um espelho. Esta reprodução das coisas como por um espelho funcionaria no primeiro conhecimento das coisas, e funcionaria igualmente, no aperfeiçoamento do conhecimento que se verifica entre os dados dos sentidos e o intelec- to311.

O entendimento dos sentidos como mediação permite-nos compreender a forma como São Tomás envereda por responder à questão da falsidade nos sentidos, pois o autor considera que nos sentidos há verdade e falsidade de dois modos: segundo a ordem que vai dos sentidos ao intelecto e segundo a ordem que vai dos sentidos à coisa. Desta forma, podemos facilmente conceber o papel de mediação exercido pelos sentidos, estabelecendo a ligação entre as coisas e o intelecto humano.

310 «Dicendum, quod cognitio nostra quae a rebus initium sumit, hoc ordine progreditur, ut primo

incipiatur in sensu, et secundo perficiatur in intellectu; ut sic sensus inveniatur quodam modo medius inter intellectum et res: est enim, rebus comparatus, quasi intellectus; et intellectui comparatus, quasi res quae- dam». (cf. De veritate, q. 1, a. 11, r).

311 Sheldon Cohen sugere esta interpretação dos sentidos como um espelho que reflecte as coisas: «As imagens que nós procuramos não são fotografias ou estátuas, mas é razoável afirmar que um outro tipo de imagem – um reflexo – entra nos nossos parâmetros. Um espelho não fica realmente vermelho quando seguramos uma rosa em frente dele, e afirmar que a cor não é recebida na matéria do espelho enquadrar-se-ia de forma natural no aristotelismo». «The images we are seeking are not pictures or statues, but there is a rea- sonable case for saying that another type of image – a reflection – meets our requirements. A mirror does not actually become red when you hold a rose in front of it, and it would be a perfectly natural Aristotelian usage to put this by saying that the color is not received into the mirror’s matter». (cf. S. M. COHEN, St. Thomas

No primeiro modo, segundo a ordem que vai dos sentidos ao intelecto, os sentidos proporcionam ao intelecto tanto verdade como falsidade, na medida em que proporcionam ao intelecto ora a verdade, ora a falsidade. São Tomás esclarece que o sentido é uma certa coisa, mas também é indicativo de outra coisa, ou seja, podemos considerar o sentido em si mesmo, ou aquilo que o sentido representa. Ao considerarmos o sentido em si mesmo São Tomás afirma:

Se for comparado ao intelecto enquanto é uma certa coisa, então de modo algum há falsida- de no sentido comparado com o intelecto, porque o sentido é disposto de modo a apresentar ao intelecto a sua disposição: daí dizer Agostinho no texto citado: “os sentidos só podem revelar à alma como são afectados.312

No texto acima citado São Tomás é muito esclarecedor ao afirmar que os sentidos tomados em si mesmos não podem ser considerados como tendo falsidade, na medida em que estes captam a realidade à sua disposição. O papel mediador reflector dos sentidos não é falso, pois os sentidos tendem a representar as coisas tais quais estas se lhes apresentam. Neste sentido, estamos longe de uma concepção que considere os sentidos como detendo falsidade em si mesmos.

Se ao compararmos os sentidos com o intelecto tivermos em conta aquilo que os sentidos representam então nesse caso São Tomás admite a existência de falsidade. «Se porém é comparado ao intelecto enquanto é representativo de outra coisa, posto que às vezes lhe representa a coisa diferente de como é, segundo este aspecto o sentido diz-se fal- so, enquanto proporciona, por sua natureza, uma falsa apreciação ao intelecto»313. Na

medida em que os sentidos representam uma outra coisa que não a si mesmos, então aí São Tomás considera que pode existir falsidade quando representam a coisa diferente de como esta é.

São Tomás conclui: «Assim, pois, o sentido comparado ao intelecto proporciona sempre ao intelecto uma apreciação verdadeira da própria disposição, mas nem sempre da disposição das coisas»314. A falsidade está na disposição que os sentidos oferecem da coisa

312 «Si ergo comparetur ad intellectum secundum quod est res quaedam, sic nullo modo est falsitas in

sensu intellectui comparato: quia secundum quod sensus disponitur, secundum hoc dispositionem suam intellectui demonstrat; unde Augustinus dicit in auctoritate inducta, quod non possunt animo enuntiare nisi affectionem suam». (cf. De veritate, q. 1, a. 11, r).

313 «Si autem comparetur ad intellectum secundum quod est repraesentativum rei alterius, cum quan-

doque repraesentet ei aliter quam sit, secundum hoc sensus falsus dicitur, in quantum natus est facere falsam existimationem in intellectu». (cf. De veritate, q. 1, a. 11, r).

314 «Sic ergo sensus intellectui comparatus semper facit veram existimationem in intellectu de dispo-

que pode não corresponder à disposição das coisas. E neste caso podemos dizer que se veri- fica falsidade nos sentidos

No segundo modo, segundo a ordem que vai dos sentidos às coisas, segundo esta comparação, São Tomás considera existir verdade e falsidade tal como existe no intelecto. Ao referir a existência de um juízo nos sentidos, mas em que sentido é que podemos falar de um juízo nos sentidos? A referência ao juízo dos sentidos diz respeito à formação das quididades em ordem ao juízo do intelecto e realiza-se quando são julgados os sensíveis315.

Nesta matéria São Tomás distingue entre o juízo dos sentidos pelos sensíveis pró- prios e o juízo sobre os sensíveis comuns ou por acidente. No caso dos sensíveis próprios, diz-nos São Tomás que o juízo é realizado de forma natural, e este juízo é sempre verdadei- ro a menos que exista algum impedimento no órgão em questão. No caso dos sensíveis comuns, por vezes pode ocorrer que o juízo dos sentidos possa falhar316. Portanto, São

Tomás considera que a falsidade pode existir nos sentidos. Este verifica-se apenas no caso dos sensíveis comuns em que a estimativa oferecida pelos sentidos pode falhar.