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“Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar ao seu mistério. Entretanto, a criança menos informada o possui. Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas. Contudo, essa é uma paixão individual mais que todas.”

Carlos Drummond de Andrade (2002)

Ao propor a idéia da família dos jogos de bola com os pés, aproximo-me do conceito de ecossistema, buscando encontrar nesse o respaldo para minhas colocações, pois um ecossistema, integra os seres vivos – organismos - e os ambientes em que vivem, com suas características peculiares, mais as inter-relações que acontecem intra e entre todos os elementos envolvidos no sistema, gerando constantes modificações e superações, em meio à busca constante ao equilíbrio, decorrentes de um ambiente instável.

Numa perspectiva ecológica, o ecossistema inclui a totalidade de interações e relações entre os seres vivos e não vivos, em todos os níveis, especialmente, a rede de estruturas que vão constituindo uma teia interligada e interdependente influenciada pelo ambiente como um todo.

“A grande maioria dos organismos estão não só inseridos em ecossistemas, mas são eles próprios ecossistemas complexos, contendo uma infinidade de organismos menores que possuem considerável autonomia e, no entanto, integram-se harmoniosamente no funcionamento do todo.” (CAPRA, 2001, p. 269)

Nos ecossistemas, acontece de um organismo - parte do todo - interferir no ambiente ao mesmo tempo em que tem suas ações cerceadas ou delineadas pelo próprio ambiente que modifica. Ou seja, em meio às inter-relações entre os organismos – partes - do sistema, é desencadeado um potencial processo gerador (criador) de profícuas e

necessárias mudanças no sistema como um todo, evidenciando as qualidades emergenciais45, como sugere Morin (2000).

Sendo assim, Morin (2001), contribui com o estabelecimento do conceito de ecossistema, dizendo que:

“... as interações entre seres vivos, conjugando-se com as restrições e as possibilidades fornecidas pelo biótopo físico (e retroagindo sobre este), organizam precisamente o meio em sistema. Assim, o meio pára de representar uma unidade apenas territorial para tornar-se uma realidade organizadora – o ecossistema – que comporta a ordem geofísica e a desordem da ‘selva’.” (p. 33)

Ao me valer do conceito de ecossistema para justificar a metáfora da família quero destacar, além de suas características holomônicas46 suas respectivas capacidades auto- reprodutoras e auto-organizadoras, que por sua vez, necessitam levar em consideração certo grau de dependência em relação ao ambiente, como bem destacado por Morin na citação acima.

Destarte, a eco-dimensão organizacional de um sistema considera que suas partes vivem o paradoxo da independência (autonomia) e da dependência (heteronomia), permeada por relativa liberdade (PETRAGLIA, 2001). Esta dialógica relação levou Morin (2001), ao pensar no ser vivo, à auto-eco-organização, em que nas palavras do autor:

“... o ecossistema está no interior do ser vivo que está no interior de seu ecossistema; o ser vivo é ao mesmo tempo produto e produtor, meio e fim, operador e operado da organização viva. (...) É preciso, portanto, chegar a idéia complexa, contraria sunt complementa: duas proposições contrárias podem também ser complementares.” (MORIN, 2000, p. 116)

Dessa forma, é preciso re-dimensionar o conceito de autonomia, que acaba cerceado por certa dependência de outros fatores para se manter presente num ecossistema, evidenciando a complementaridade entre os vários contrários que se juntam.

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Segundo Morin (2000), emergência se refere ao produto gerado pela organização (das partes) no interior de um sistema (todo). “Do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à sociedade, a organização de um todo produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências.” (p. 209)

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Holomônica corresponde à holonomia – o ser total contido de alguma forma, em cada uma de suas partes. Tal como num holograma, o todo está codificado em cada parte (Capra, 2001; Morin 2000b e 2001)

O interessante é o fato de que dessa relação dialógica se produz emergências que nunca existiriam apenas nas partes, sendo assim, o todo é maior que a soma das partes (MORIN, 2002), todavia, também, esse todo é menor do que a soma das partes “porque as

partes podem ter qualidades inibidas pela organização do conjunto” (MORIN, 2000, p.

202).

Essas complexas relações que acabam por demonstrar as características integrativas e auto-afirmativas das partes de um sistema irão me auxiliar a pensar a organização das estruturas padrões da família dos jogos de bola com os pés, propósito final deste capítulo, abarcando toda a discussão até aqui elaborada.

A família dos jogos de bola com os pés reúne, obviamente, todos os jogos realizados com a bola nos pés. Quando me refiro ao termo jogo para caracterizar tal família, incluo nele todas as suas manifestações, quer as por mim classificadas como emancipadas – jogos/esportes com bola nos pés -, quer as que ainda conservam evidentes características de jogos/brincadeiras que usam os pés para impulsionar uma bola qualquer.

Sendo assim, o futebol, o futsal, o beach soccer, o futevôlei, o futebol irlandês, o rúgbi, o futebol americano, coabitam o mesmo espaço representativo especificado, com a rebatida, o gol caixote, a pelada, o três dentro três fora, o 1 toque, o toquinho mineiro, o bobinho, o tira-tira, o cada um por si, o centro-avante, o Maria levanta saia, o lixa, o gol de cabeça, o gol dentro da área, os campeonatos de embaixadas, as disputas de pênalti a brinca, o canelobol...

A partir dessa visão ecológica, a família dos jogos de bola com os pés estabelecida pela necessidade humana de expressar pela motricidade os símbolos construídos (decorrentes de sua capacidade de sentir o mundo), num ambiente de jogo, é análoga a todos os ecossistemas existentes. Ou seja, ela se mantém a partir de interações estabelecidas entre suas estruturas (em todos os níveis), e dessas com o meio ambiente físico e social, preestabelecendo uma coexistência, intermediados pela motricidade humana, entendida, a partir de Freire (1991; 2002), como o movimento intencional humano, carregado de sentido e significado, que se expressa pelo jogo.

Se o futebol um dia foi jogo/brincadeira, e alguns jogos/brincadeiras de bola com os pés lembram o futebol, logo, querer analisar tal simbiose e complexidade se justifica pela cabal inferência de encontrar um no outro, ao mesmo tempo em que se possa distingui-los.

Quero dizer que o futebol existe nos outros jogos/brincadeiras com bola e outros jogos/brincadeiras existem no futebol, porém cada qual mantém a sua autonomia, e irredutibilidade, ao mesmo tempo em que estabelecem vínculos de dependência mútua.

Importante destacar novamente, que o futebol mesmo atingindo o status de esporte, não deixou de ser jogo. Ao passo que ganhou popularidade na cultura do adulto, tornando- se o “irmão” famoso e mais complexo da família47, foi e continua sendo fonte de inspiração para muitas brincadeiras de crianças e outros jogos de bola desenvolvidos pelos próprios adultos, como por exemplo, as peladas. Ao mesmo tempo em que o futevôlei e o beach- soccer, antes jogos/brincadeiras realizado apenas com intuito de diversão, atualmente já estão praticamente emancipados, ou seja, já estão adquirindo o status de esporte, ao tenderem a ser praticados ao redor do mundo sempre com as mesmas regras.

Quanto às características hologramáticas dessa família, evidencio-as construindo uma analogia em que os jogos/brincadeiras de bola com os pés (ressignificados do futebol) se configuram células do futebol. Pois como células, são partes, porém partes que mantêm em sua essência o todo. Entretanto, essa mesma célula além de parte do todo, adquire características próprias, independentes.

Ou então, numa visão mais microscópica, posso me valer novamente dos oportunos estudos de Capra (2001), quando esse apresenta as características das organelas no interior dos organismos celulares, para, através de nova analogia, dizer que os jogos/brincadeiras de bola com os pés agora são as organelas da célula futebol:

“Os mitocôndrios, por exemplo, a que freqüentemente se dá o nome de casa de força da célula, porque alimentam quase todos os sistemas de energia celular, contêm seu próprio material genético e podem se reproduzir independentemente da reprodução da célula.”(CAPRA, 2001, p.273)

Portanto, o ecossistema (Família) jogos de bola com os pés apresenta, no transcorrer de sua dinâmica sistêmica, duas tendências: uma integrativa – em que se evidência essa

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No interior da família dos jogos de bola com os pés, pode-se dizer que o futebol adquiriu um status de destaque em relação aos seus irmãos mais velhos e mais novos (os demais jogos/brincadeiras de bola com os pés). Ele é o “irmão” mais famoso, cujo título se justifica devido ao fato de ser considerado um dos maiores fenômenos culturais integrativos de massa já produzido pela humanidade. Entrementes, atingiu com isso um maior nível de complexidade, tamanha a sua abrangência e influência na cultura humana. Essa condição leva muitas vezes, valendo-se de uma análise simplista, a se cometer o erro de colocar o futebol na condição de patriarca da família dos jogos de bola com os pés.

integração hologramática das partes com o todo; outra auto-afirmativa – que mantém a autonomia das partes.