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Sobre as trajetórias metodológicas e os procedimentos da pesquisa

Por intermédio do percurso teórico até aqui elaborado, em que, principalmente, procurei evidenciar que todos os jogos/brincadeiras de bola com os pés guardam semelhanças com o futebol, sem, contudo, perder suas particularidades irredutíveis (suas diferenças), pude preconceber a existência da Família dos jogos de bola com os pés, que abriga diversas manifestações de jogos, dos quais, o maior representante é o futebol.

Assim sendo, entrevejo que o futebol é feito de muitos jogos, ao mesmo tempo em que ele também é único, irredutível, ou seja, tanto o futebol quanto qualquer outro jogo/brincadeira de bola com os pés, são independentes de um certo modo, mas dependentes uns em relação aos outros quanto a certas particularidades, como regras, condições externas (físicas), condutas motoras...

Logo, todas as manifestações de jogo pertencentes à Família dos jogos de bola com os pés, constituem-se em um sistema interligado por uma rede complexa de unidades (manifestações de jogos), que apresentam semelhanças e diferenças entre si. Características essas, interdependentes, que simultaneamente se complementam e auto-afirmam, possibilitando a inclusão das unidades numa totalidade maior.

Alicerçado por essas considerações teóricas – tecidas nos capítulos anteriores -, saí a campo com o objetivo de investigar na prática essas semelhanças e diferenças, evidenciadas

do interior do processo organizacional das manifestações de jogos com a bola nos pés realizados por crianças.56

Escolhi crianças, pois, como Freire (1991, p. 63), também“...acredito que são

capazes de manifestar sua existência com menos censura, com menos bloqueios.” Elas

adentram com mais facilidade no universo (ambiente) do jogo, libertando-se das amarras do mundo real. E essa entrega evidencia a essência do jogo, deixando transparecer conteúdos passíveis de serem analisados.

Os dados brutos foram coletados a partir da transcrição dos jogos realizados por crianças, em praças e campinhos improvisados - espaços que só o desejo de jogar pôde transformar em campo de jogo.

Assim, saí a campo e, sempre que encontrava crianças brincando com jogos de bola utilizando os pés, transcrevia literalmente tudo o que estava acontecendo no jogo, como pode ser observado na íntegra, nos anexos deste trabalho.

O dados coletados foram chamados inicialmente de observações. Essas observações – transcrições dos jogos/brincadeiras de bola com os pés realizados pelas crianças -, consideradas dados brutos, necessitaram sofrer algumas reduções antes do início das análises inferenciais.

A fase inicial do trabalho, que denominei pré-análise, serviu-me como primeira redução. Consistiu numa análise inicial dos dados brutos. Realizei a pré-análise nas quatro observações de campo com o intuito de levantar características comuns entre as observações, almejando encontrar nos jogos/brincadeiras alguns significados semelhantes - levantar índices de regularidades -, os quais chamei de unidades de contexto.

Nas quatro observações me deparei com as seguintes unidades de contexto: ambiente físico – o local onde ocorrem os jogos/brincadeiras; disposição dos jogos – modo como os jogos/brincadeiras se dispõem no ambiente físico; objeto de intermediação – tipo de bola utilizada; acordos entre os jogadores - estabelecidos pelo grupo; regras tradicionais – estabelecidas pela tradição histórica, que permitem que o jogo aconteça; habilidades motoras específicas - equivalentes à ação de manejar a bola com os pés, constituindo-se em habilidades específicas para o desenvolvimento dos jogos de bola com os pés. As habilidades motoras são externalizações dos esquemas motrizes, que no bojo do

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processo organizacional sistêmico perfazem as condutas motoras dos jogadores. Ou seja, decorrente das exigências do jogo, as habilidades motoras (esquemas motrizes) refletem uma ação carregada de significado e sentido para quem o executa, pois correspondem às respostas técnicas e táticas exigidas pelas circunstâncias do jogo, configurando-se, neste estudo, as condutas motoras; atitudes de representação simbólica – os jogos/brincadeiras são, por excelência, palco para representações humanas. Mas elas acontecem e ganham lógica apenas na ótica do jogador (segundo seus recursos próprios), entretanto, em algumas situações observadas, as representações ficaram evidentes, como, por exemplo, quando uma criança/jogadora, ao chutar, dizia ser um determinado jogador da seleção brasileira, ou mesmo quando crianças observadas imitavam comemorações de gols ou narração das jogadas, semelhantes às existentes no dia a dia do futebol; conscientizações – atitudes de tomada de consciência sobre as respostas dadas ao jogo. Por exemplo, quando da explicação por parte de um dos jogadores, do porquê chutou de um jeito e não de outro para alcançar o objetivo do jogo, ou mesmo quando da necessidade evidente de atitudes cooperativas para o jogo.

A pré-análise me permitiu, também, destacar nove jogos de bola com os pés, existentes no interior das quatro observações. Essas outras unidades complexas apareceram geralmente após o jogo principal observado, ou quando, por exemplo, algumas crianças começaram a jogar um outro jogo/brincadeira de bola com os pés, enquanto esperavam acabar o intervalo para beber água de um jogo/brincadeira de Pelada – prefigurando-se numa forma de descanso ativo.

Finalizada a fase de pré-análise das 4 observações, passei para etapa seguinte, na forma de um mapeamento operacional - que constituiu a segunda redução. Esta se caracterizou como uma descrição sintética, que visa a organização dos dados brutos, salientando os pontos principais e essências pertinentes à análise inferencial proposta.

Nessa segunda etapa, procedi com o agrupamento das unidades de contexto em consonância com as estruturas sistêmicas, que, por sua vez, compõem o processo organizacional dos jogos – condições externas, regras, os jogadores e seus esquemas motrizes. Esse agrupamento foi estabelecido a partir das íntimas relações existentes entre as unidades de contexto e as estruturas sistêmicas dos jogos de bola com os pés pesquisados.

Nessa perspectiva, as unidades de contexto compreendem o espaço de interação no jogo – o contexto -, constituindo-se partes essenciais que perfazem as estruturas sistêmicas de qualquer jogo (unidade complexa).

A primeira das estruturas sistêmicas, denominada condições externas, reuniu as unidades de contexto: ambiente físico, disposição dos jogos e objeto de intermediação. A segunda, regras, por outro lado reuniu as unidades de contexto que dizem respeito, correspondentemente, aos acordos e as regras tradicionais. A terceira - esquemas motrizes-, e a quarta estrutura – jogadores -, referem-se às unidades de contexto que englobam as habilidades (ações motoras específicas - técnicas), bem como às concernentes às atitudes dos jogadores, tais como as representações simbólicas e as de tomada de consciência.

Para dar continuidade à pesquisa, senti a necessidade de construir um tipo de análise inferencial particular, que me permitisse investigar as unidades complexas (jogos) realizadas pelas crianças.

Destarte, no momento subseqüente à organização dessa segunda descrição (mapeamento operacional), aconteceram as análises inferenciais, as quais buscam uma compreensão dos dados, tornando claras as semelhanças e diferenças ao longo do processo organizacional das unidades complexas, que convergem num padrão organizacional próprio da Família dos jogos de bola com os pés.

Dessa forma, proponho-me a evidenciar o futebol contido nos jogos/brincadeiras descritos e vice-versa, ao mesmo tempo em que estes se estabelecem enquanto unidades complexas particulares, relativamente autônomas.

Para a realização das análises inferenciais das unidades complexas, estabeleci três focos de análise, um foco de análise auto-afirmativo, um foco integrativo e, por fim, um foco sistêmico organizacional.

Cada foco de análise almeja compreender, tornar claras as interações que compõem o dinâmico processo organizacional sistêmico, a partir das interações entre as estruturas sistêmicas das unidades complexas (jogos), compreendendo-a como um todo - ambientado no jogo - que não deve ser fragmentado. Assim a idéia de foco apenas ressalta (ilumina) cenas dos jogos, as quais permitem analisar e salientar as diferenças e semelhanças dos jogos/brincadeiras analisados, em comparação com o futebol e os demais membros pertencentes à Família dos jogos de bola com os pés.

Assim, o foco integrativo busca levantar as características que me permitem incluir os jogos numa mesma família - evidenciando suas semelhanças. O foco auto-afirmativo evidencia as particularidades que atribuem ao jogo/brincadeira suas qualidades autônomas, irredutíveis, as quais estabelecem identidades únicas às unidades complexas, a partir de seus contextos peculiares e exclusivos (particulares). Enquanto que o foco organizacional se refere às interações entre todas as estruturas sistêmicas, entrevendo que essas produzem emergências (condutas motoras), que ao mesmo tempo são específicas - ratificando suas qualidades autônomas em relação ao sistema jogos de bola com os pés -, e transferíveis (devido ao fato de que em outros jogos de bola com os pés encontro exigências semelhantes, que se inserem em circunstâncias semelhantes, justificando a tendência integrativa - dependente).