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O jogo/brincadeira Rebatida e o futebol: um exemplo de complexidade

Utilizarei neste momento um tradicional jogo da cultura das brincadeiras de bola com os pés, a Rebatida48, como exemplo ilustrativo, para destacar na prática suas características auto-afirmativas e integrativas, tendo por referência o futebol.

O jogo/brincadeira Rebatida, enquanto atividade lúdica realizada pelas crianças se basta por si, ou melhor, tem um fim em si mesma, mantendo-se por conta de alterações internas e particulares, que atendem as necessidades do grupo que a pratica. Isso faz com que a Rebatida assuma características de jogo/brincadeira tradicional (pertencente ao universo da cultura lúdica infantil), pois de região para região são construídas variações nas suas regras – ratificando a tendência auto-afirmativa.

Contudo, com um olhar mais rigoroso para as situações problemas desencadeadas por esse jogo/brincadeira de bola com os pés – ou mesmo por um outro qualquer, como o Bobinho, três dentro três fora... -, é possível encontrar ações similares às exigidas no futebol. Conseqüentemente, para a criança, de maneira mais inconsciente do que proposital, jogar rebatida é jogar futebol, levando-a até ao aperfeiçoamento nas duas manifestações de jogo com os pés – evidenciando a tendência integrativa.

As ações adaptativas – soluções dos problemas do jogo - decorrentes das situações exigidas no desenvolvimento tanto dos inúmeros jogos/brincadeiras de bola com os pés quanto do futebol, transitam de um para o outro, conseqüentemente, gerando novas ações em ambos, que por sua vez resultam modificações no todo.

Mas, dando continuidade e profundidade à discussão, devido às semelhanças estruturais existentes entre esses jogos, é possível que o indivíduo envolvido num desses

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A Rebatida por ser um jogo tradicional (até mesmo folclórico) assume particularidades diferentes em cada estado, cidade, bairro, rua, campinho ou portão onde é realizado, porém a sua essência é mantida. Joga-se na maioria das vezes dois contra dois, sendo que dois assumem função de goleiros enquanto os outros dois desferem três chutes cada um ao gol. Em cada chute, os dois goleiros defendem o mesmo gol, um chuta e seu companheiro fica próximo do gol para pegar eventual rebote dos goleiros. O que é mais comum ser diferente nas regras de Rebatida em cada local em que é praticada são os pontos atribuídos aos rebotes, se os goleiros rebaterem a bola chutada e os jogadores marcarem o gol no rebote (onde se desenvolve um jogo de 2X1) esse gol vale dois pontos; se o mesmo acontecer de uma bola rebatida pela trave vale cinco pontos, do travessão valem dez pontos, do vértice das traves (ângulo) valem quinze pontos; escanteio vale dois, e gol direto vale um.

jogos generalize suas conquistas, ou seja, uma ação motriz utilizada com sucesso no jogo de Rebatida, pode ser transferida para o jogo de futebol, ou mesmo um drible criado no jogo/brincadeira Cada um por si, pode ser empregado também no jogo de futebol – ou vice e versa.

Como atesta Piaget (apud MACEDO, PETTY e PASSOS, 2000, p.14):

“Partamos de uma inovação qualquer do sujeito, que, a meu ver, resulta sempre de uma necessidade anterior (...) logo que atualizada, essa inovação constitui um novo esquema de procedimento, que, como todo esquema, tenderá a alimentar-se, aplicando-se a situações análogas. Mas há mais: essa generalização possível do esquema de procedimento confere ao sujeito um novo poder e o simples fato de ter conseguido inventar um procedimento para certas situações favorecerá, aos meus olhos, o êxito noutras.”

Freire (2002b), pautando-se nos mesmos estudos de Piaget, constrói a idéia de acervo de possibilidades de solução de problemas para o jogo, coadunando com a reflexão iniciada acima:

“(...) qualquer ação, antes de ser realizada, deve se tornar possível. Em outras palavras, quando uma criança, por exemplo, tem que lançar uma bola na direção da meta de futebol ou de handebol, antes de fazê-lo, por um processo que geralmente lhe escapa à consciência, cria um leque de hipóteses. Em seguida, uma dessas hipóteses será testada, levando ao êxito ou ao fracasso. Ou seja, a necessidade de realizar uma ação torna-se responsável pela criação de várias ações possíveis. A ação escolhida entre todas as outras para realizar o objetivo da criança poderá levar ao êxito, e nesse caso ela será reforçada, ou ao fracasso, criando nessa situação outro tanto de possibilidades.” (FREIRE, 2002b, p. 373-374)

Todavia, é importante destacar, em relação às tendências auto-afirmativas e integrativas, que ao mesmo tempo em que esses jogos/brincadeiras e o futebol apresentam ações semelhantes - que podem ser transferidas quando entendidas enquanto esquemas assimilados e acomodados para se resolver problemas análogos -, posso ter como emergência de um jogo/brincadeira como a Rebatida um chute biomecanicamente idêntico aos executados no futebol, porém com intenções e objetivos totalmente diferentes - segundo a lógica particular desse jogo -, logo podem também não ser consideradas iguais.

Por exemplo, no jogo da Rebatida o objetivo é chutar a bola em direção ao gol, como acontece no jogo de futebol, ou seja, nos dois jogos o objetivo é acertar por meio de um chute um alvo específico, porém, a intenção (o que se pretende alcançar com a ação, o alvo a ser atingido), ou melhor, a forma de executar o chute no jogo/brincadeira de Rebatida é diferente de acordo com as circunstâncias da partida, pois, segundo suas regras específicas, acertar um chute na trave, no travessão, é mais interessante para o jogo do que chutar para marcar o gol. Uma bola chutada na trave gera uma rebatida, ocasionando uma situação na partida em que dois jogadores (parceiros de chutes) confrontam-se contra um adversário e um goleiro (goleiros parceiros). Se os dois vencem o adversário, driblando-o e marcando o gol no goleiro, esse tento vale cinco pontos, enquanto que um simples chute ao gol que entre direto - sem ser rebatido pelos goleiros ou pela trave -, vale apenas um ponto.

Desse modo, numa partida de Rebatida em que os jogadores estão perdendo por uma diferença de no mínimo dois pontos, e os chutadores têm apenas um chute a desferir, obviamente (segundo a lógica do jogo), chutarão a bola com a intenção de acertar a trave, o travessão, conseguir um escanteio, ou mesmo uma rebatida, e não chutarão para marcar o gol diretamente, pois, o mesmo só valeria um ponto – logo perderiam o jogo por dois a um.

Já os goleiros, quando são experientes no jogo, abandonam o gol e se posicionam junto às traves para defendê-las; situações estas que no jogo/esporte futebol nunca irão acontecer, pois todos os chutes objetivam vencer o goleiro – que protege a meta e não as traves - para marcar sempre apenas um ponto.

Como se vê, segundo a lógica específica desse jogo/brincadeira de chutar a bola, ele é muito diferente do jogo/esporte futebol, todavia, ao mesmo tempo, é evidente que quase todas as características que compõem o todo futebol estão nele presentes.

Todas as habilidades motoras exigidas no jogo de futebol podem ser encontradas no jogo/brincadeira Rebatida, contudo elas também necessitam ser adaptadas às circunstâncias do jogo/brincadeira, pois as condições externas de jogo sofreram adaptações (gol, campo e muitas vezes a bola), e o mesmo pode-se dizer das regras.

Simultaneamente, é certo que jogar Rebatida permite que se desenvolvam habilidades (esquemas motrizes) facilmente transferíveis às exigências do jogo/esporte futebol, afirmação esta que coaduna com as inferências de Freire (1998), quando diz que um programa para ensinar crianças a jogar futebol poderia se resumir na aprendizagem e

execução de apenas quatro jogos/brincadeiras de bola com os pés: Repetida (o mesmo que Rebatida), controle (ou três dentro três fora), bobinho e golzinho (ou gol caixote, ou o mesmo que “pelada”).

Quero utilizar um exemplo concreto para deixar mais evidentes minhas idéias: ao se analisar o chute que o jogador Rivaldo desferiu contra o goleiro alemão na final da copa de 2002, e este rebateu sobrando a bola rebatida para o atacante brasileiro Ronaldo completar e marcar o gol, leva-me a pensar: será que este chute foi aprendido nos treinamentos ou na prática do jogo/brincadeira Rebatida? Sei que para essa pergunta não há resposta a priori. Todavia, a situação evidenciada naquele exato momento do jogo é semelhante a que acontece nos jogos/brincadeiras de Rebatida49.

Contudo, analisado pelo prisma da intenção/desejo, no qual permito-me apenas especular, pois nunca terei acesso ao que se passava na cabeça do jogador brasileiro no preciso momento do chute, acredito que este chutou com a intenção de marcar o gol direto.

Deduzo isto, devido ao fato de que no jogo/esporte futebol não existe a regra que atribui dois pontos ao gol marcado depois de um rebote do goleiro. Esse fato desencadeia a construção de uma lógica própria para se pensar no jogo/esporte futebol, pois todo chute desferido em direção ao gol deve objetivar entrar direto, pois pensar em chutar para conseguir um rebote é lançar mão de uma tática não muito pragmática, porque no momento do rebote a equipe do chutador perde a posse da bola. A bola fica a mercê de quem estiver mais próximo para dominá-la (geralmente a defesa sempre tem mais jogadores que o ataque, e como estes defensores devem se posicionar sempre entre o gol e os atacantes, eles terão, na maioria das vezes, maiores probabilidades de dominar a bola após o rebote do goleiro).

Assim, sobre esse fato, chego à conclusão que esse chute perpassa os dois universos familiares, permitindo-me inferir e apresentar na prática as tendências auto- afirmativa e integrativa. Ou seja, esse chute no interior do processo organizacional desencadeado pelo sistema jogo/brincadeira rebatida se auto-afirma (adquire autonomia) a partir do contexto (fator de dependência) em que é utilizado, ao mesmo tempo em que passa a ser parte integrante da família dos jogos de bola com os pés, pois está presente em

49 Essa situação é semelhante a uma variação de Rebatida que aprendi, em que os chutadores podiam dar um pequeno

outros jogos/brincadeiras e, especialmente, no jogo/esporte futebol, evidenciando o princípio hologramático e de emergências citado por Morin (2000).

Desse modo, posso pensar em estreitos laços familiares complementares e interdependentes entre os jogos/brincadeiras de bola com os pés, e, especialmente desses com o futebol, constituindo-se assim, as bases da grande família dos jogos de bola com os pés.

Contudo, meu objetivo não se refere ao fato de separar as partes do todo, nem encontrar no todo as partes, mas sim conjugá-las, utilizando as idéias complexas relativas à dimensão organizacional dessa família, para entender as incertezas advindas do jogo, comungando com seu processo sistêmico organizacional em ambiente de jogo. Desse modo, ao reunir todos os jogos de bola com os pés numa mesma família prescrevo a intenção de reuni-los e ao mesmo tempo distingui-los.

“Ora, o conhecimento só pode ser pertinente se ele situar seu objeto no seu contexto e, se possível, no sistema global do qual faz parte, se ele cria uma forma incessante que separa e reúne, analisa e sintetiza, abstrai e reinsere no concreto.” (MORIN, 2000, p. 91)

Assim, a partir de sua tendência auto-afirmativa, um sistema sobrevive em decorrência de constantes processos de organização, engendrando reações em cadeia, ao passo que suas modificações internas acabam por exigir ajustes nos demais sistemas vizinhos e, por conseguinte, em todo o ecossistema, confirmando, novamente, sua tendência integrativa.

Ao se pensar na Família dos jogos de bola com os pés, ambientada no Mundo do Jogo, aqui desenvolvida, se um jogo/brincadeira de rebatida se modifica, esse propiciará a construção de novos conhecimentos (por exemplo, a assimilação e acomodação de novos esquemas), estabelecendo um novo estado de equilíbrio à medida em que o jogo se realiza. E esses conhecimentos (emergências) produzidos por interações, são reintroduzidos pelo jogador em todo conhecimento já existentes na família, pois se pode utilizá-lo para resolver problemas quando da exigência de situações semelhantes.

movimento, rolando, e o jogador que espera o rebote dos goleiros deve se posicionar sempre na frente do gol, próximo ao seu companheiro chutador.

Todavia, sinto que todas as reflexões até o momento estabelecidas - em especial essa última - exigem uma investigação mais pontual. Para isso, descreverei com mais detalhes a dinâmica do processo sistêmico organizacional da Família dos jogos de bola com os pés, evidenciando suas qualidades organizacionais e, conseqüentemente, suas emergências.

3.3. A Família dos Jogos de bola com os pés e suas qualidades organizacionais e