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“O inglês apenas joga futebol, ao passo que o brasileiro ‘vive’ cada lance e sofre cada bola na carne e na alma.”

Nelson Rodrigues Em 1887, no Colégio São Luiz (Itu-SP), alunos e padres jogavam juntos certo jogo/brincadeira de bola com os pés denominado “bate bolão”, consistindo num jogo em que a bola deveria ser chutada contra parede. Esse era um dos jogos que faziam parte da estratégia gradual dos padres para se introduzir os esportes na escola, como salienta Neto (2002).

Na seqüência desse processo, em duas paredes que se opunham no pátio da escola foram feitas demarcações na forma de dois retângulos, e uma turma de alunos foi dividida em duas equipes:

“(...) camisas verdes de um lado e camisas vermelhas do outro. O jogo

passou a ter um objetivo concreto, isto é, levar a bola até a parede do time adversário e lavrar um tento fazendo-a bater no espaço delimitado pelas marcas” (NETO, 2002, p. 21-22)

Como conseqüência, o futebol no colégio deixou de ser apenas jogo/brincadeira de chutar bolas contra paredes e passa a ser praticado com mais dinamismo, aproximando-se cada vez mais do modo como é praticado atualmente, principalmente com a ascensão ao cargo de reitor do padre Luís Yabar, um entusiasta do trabalho de Thomas Arnold, o grande responsável pela introdução dos esportes ao ar livre na Inglaterra (NETO, 2002).

Relato esses fatos históricos para mostrar o futebol sendo ressignificado, mesmo antes de sua chegada oficial. Nos tópicos anteriores deste estudo, levantei dados que evidenciavam a ressignificação dos jogos/brincadeiras de bola com pés até o

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Essas adaptações de jogos de bola com os pés que sempre ocorrem com o futebol quando ele é praticado sem a exigência de se seguir às regras oficiais, pois, só há um local onde essas regras são de fato respeitadas: um campo oficial de futebol, quando o jogo tem algum caráter oficial, mesmo amistosos, profissional ou amador, com juiz para manter o

estabelecimento de regras mais rígidas, dando azo ao surgimento do futebol, a partir de uma convenção entre seus praticantes - football association -, ou seja, o jogo/brincadeira futebol se transformou no esporte futebol.

Todavia, neste momento, principalmente, em consonância com as três versões de jogos de futebol pré-milleriano, fica evidente a necessidade de adaptações no regulamento do football association. As condições externas, as regras e, conseqüentemente, as formas de se jogar foram alteradas, mesmo porquê, na época, ainda não existiam bolas, nem campos específicos, muito menos o livro de regras da association, contudo existia o desejo, a vontade de jogar futebol dos marinheiros, dos funcionários ingleses das estradas de ferro e dos padres jesuítas (e seus alunos), levando-os a modificar o jogo para satisfazer seus desejos.

“Como o tango, o futebol nasceu dos subúrbios. Era um esporte que não exigia dinheiro e que podia ser jogado sem nada além da pura vontade. Nos baldios, nos becos e nas praias, os rapazes nativos e os jovens imigrantes improvisavam partidas com bolas feitas de meias velhas, recheadas de trapos ou de papel, e um par de pedras para simular o arco.” (GALEANO, 2002, p. 33)

Sendo assim, o trabalho de Charles Miller acabou facilitado, pois seu futebol trazido com o diploma inglês não se configurava em algo genuinamente novo. O que se deu de fato foi o futebol incorporando os jogos/brincadeiras de bola com os pés, que já aconteciam nos colégios jesuítas, nos momentos de lazer dos funcionários ingleses e marinheiros.18 Vale lembrar que o primeiro jogo de futebol – pós Miller – aconteceu entre os amigos de Miller e os funcionários das empresas inglesas (CALDAS, 1990).

Esse pequeno detalhe de complexidade tamanha faz toda diferença. Se realmente existe um jeito todo particular do brasileiro jogar futebol, diferentemente dos outros países do mundo, um dos grandes responsáveis foi esse desprezado detalhe.19

cumprimento de regras. Ou seja, na esmagadora maioria das vezes, não se poderia chamar o futebol de futebol, todavia, esse simples detalhe, muitas vezes desprezado, se configura no complexo objeto de investigação deste trabalho.

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É importante destacar que não ignoro o fato de que o esporte teve sua ascensão e disseminação facilitada devido sua congruência com a ideologia do liberalismo do século XIX, como discute Betti (1997), contudo o trabalho caminha por outro viés, o qual procura dar ênfase à questão emancipatória dos jogos/brincadeiras, ou melhor, ao processo interno de auto-organização sistêmica que aconteceu no desenrolar desse processo.

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Portanto, não concordo plenamente com uma das tese defendida por Mario Filho (2003) em seu clássico livro “O negro no futebol brasileiro”, em que o autor defende a idéia de que o estilo de jogar do brasileiro advém apenas da cultura do negro. Diferentemente, acredito que surgiu dos jogos de futebol adaptados, das peladas que o autor até cita mais não faz a devida reflexão pedagógica, sendo que essas exigiam condutas motoras que poderiam ser facilmente transferidas de outros

Oportunamente, Betti (1997) escreveu:

“O futebol no Brasil demonstra bem este processo de assimilação e transformação cultural. Hoje, até achamos que o futebol foi uma invenção brasileira. Talvez seja mais apropriado falar numa reinvenção brasileira.”

(BETTI, 1997, p. 21; grifo meu)

A esse respeito escrevi certa vez uma crônica, a qual tinha exatamente o intuito de questionar o título inglês de inventores do futebol moderno, e depois de contar de forma sintética a história da transformação do jogo/brincadeira futebol em esporte, acabei por dizer:

“Porém, quem pensa que o futebol moderno sobrevive até hoje está muito enganado. O futebol moderno, principalmente durante o longo período de sua estada em território nacional, sofreu um processo de transformação. Nossas crianças, inconformadas com a obrigatoriedade de se jogar sempre da mesma maneira, metamorfosearam o futebol moderno, reinventaram um novo futebol a partir de uma infinidade de pequenos jogos que utilizavam para brincar nos campinhos e terrenos baldios. Quem nunca jogou uma rebatida, ou então: três dentro três fora, tenteio, golzinho, gol caixote, bobinho, embaixadinha, casquinha, levanta saia, lixa, gol de cabeça, controle, linha, driblinho, cada um por si, timinho...? Resultado disso, o Brasil reinventou o futebol, deixou para trás o moderno, para rebatizá-lo com o nome de Futebol Arte. E foi com arte que nossa seleção venceu quatro campeonatos mundiais e revelou ao mundo artistas como: Leonidas da Silva, Pelé, Garrincha, Romário, entre muitos, mas muitos outros.” (SCAGLIA, 1999c)

Esses pequenos jogos citados na crônica reforçam a idéia de que esse esporte futebol, ressignificado de outros jogos/brincadeiras ao longo de um processo de constantes modificações e adaptações, incorporando conteúdos culturais às suas formas de manifestações, passou então agora a ser produto para novas ressignificações, principalmente, nas mãos (pés) e imaginação das crianças.20

jogos realizados tanto por negros quanto por outros indivíduos também pertencentes às classes excluídas. Logo, o jeito brasileiro de jogar provém de uma série de influências, dentre elas as culturais, que, interagindo, coadunam-se para resolver os problemas impostos pela improvisação dos jogos, pelo não seguimento do manual de regras e pela inexistência de um modelo a ser copiado - vale lembrar que vivíamos o apogeu do modelo tradicional de ensino, sendo que a aprendizagem desses jogos adaptados de futebol seguiam uma pedagogia diametralmente oposta à pedagogia tradicional/técnica sempre dependentes de modelos e verdades absolutas.

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Essa reflexão, longe de ser saudosista, procura valorizar o jogo, o processo sistêmico desencadeado pelo ato de jogar. Esse processo é facilmente observável nos jogos realizados pelas crianças, como sensivelmente capta Galeano (2002),