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“Em meu mundo, em algum ponto, nós cometemos um grande erro, Morrolam.” Eu disse finalmente enquanto nos sentávamos em volta do fogo. “Escolhemos a habilidade de fazer coisas impossíveis: ir à lua, curar as doenças, mandar fotos pelo mundo todo. Mas perdemos alguma coisa: uma certa graça, uma certa elegância de viver. Agora, dirigimos automotivos que parecem caixas de lata até o serviço, e trabalhamos em caixas ainda maiores, a maior parte do tempo de olho fixo em caixas minúsculas que nos dizem o que fazer.” (MICHAEL PONDSMITH – Castelo Falkenstein)

Na obra de Merleau-Ponty, encontramos várias vezes o nome de algum artista, sendo ele, ou um escritor ou um pintor. Matisse, Balzac, Cézanne, Malraux, Klee, Mallarmé,

Leonardo da Vinci, Stendhal, Vermeer... são alguns exemplos citados por ele, que encontrei

em minha leitura. Para Merleau-Ponty, a filosofia tem uma certa aproximação com as artes. O oficio do filósofo se assemelha ao oficio do pintor e escritor, que visualizam o mundo de forma complexa, de forma sagrada, mutante, em um movimento eterno. O que a filosofia deve procurar é essa capacidade de se admirar constantemente, infinitamente com o mundo, de abrir-se para um dialogo ininterrupto com os objetos.

A visão do artista não é estática, pois constantemente ele visualiza sua obra inacabada. Mesmo quando ele entrega finalmente sua arte, o artista não concebe sua criação como finalizada, mas sempre em mutação, diferenciando a sua significação para o mundo. Essa visualização da arte se aproxima da linguagem, que não é estática.

(...) É assim que [é] o mundo desde que ele o viu, suas primeiras tentativas e todo o passado da pintura, criam para o pintor uma tradição, quer dizer, diz Husserl, o esquecimento das origens, o dever de recomeçar de outra maneira e de dar ao passado, não uma sobrevivência que é a forma hipócrita do esquecimento, mas a eficácia da retomada ou da repetição que é a forma nobre da memória. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 80)

O artista produz uma arte para colocar-se junto a uma história humana, assim mantendo sua própria existência neste mundo de relações fenomênicas e históricas. Nós poderíamos dizer que o artista busca se inserir no panteão artístico da humanidade, onde a história o contém completamente. Mas não é apenas esse fator que está enredado neste esquema. O artista também busca resgatar a sua história, assim como a história da pintura, todo um passado humano. Quando o pintor traça o primeiro risco no seu quadro, não está levando apenas seu ser com ele, mas também Van Gogh, Magrite, Monet, Michelangelo. Ele se sobressai, pois todo um conjunto de pintores participam de sua obra. A obra Robur, o

Conquistador, se coloca junto à tradição dos escritores enquanto Julio Verne a está

escrevendo, e após a passagem do tempo, a cultura humana é que determina se ela poderá ser vista como clássico neste meio histórico humano.

Existe um mundo produzido pelo artista, onde este ser do escritor ou pintor dá seus significados, tomando como guia o mundo fenomênico já existente, e ao qual o expectador e o criador estão inseridos. Quando Robur está no escaler de seu Albatroz, concebemos essa grande máquina que passa pelas palavras e sucita em nós a visão dela, sentimos o vento sobre nosso rosto, estamos juntos a ele, visualizando o mundo aos nossos pés.

Mas também tem outro mundo que participo, em que tanto eu quanto Verne estamos inseridos. Este mundo que participamos em conjunto é esse mundo fenomênico, o mundo em que estão os corpos. Com isso, produzimos uma linguagem na comunicação onde possamos tocar outros, encarnar outros.

Nós produzimos mundos enquanto estamos lendo uma obra literária. Damos significados, relacionamos a linguagem com um mundo que está tanto para os sonhos e devaneios de nossa mente quanto para esse mundo sensível. Este novo mundo que crio é regido pela temporalidade, assim como nosso mundo fenomênico, pois a língua não é uma complexidade desligada do mundo, ela está aqui, traspassando os seres e dando significações aos objetos.

No discurso acadêmico, não somos conquistados pela palavra, pois elas apenas descrevem uma ciência exata, um mundo das coisas. Já o contrário é visto na literatura. O escritor produz um mundo que tem um pano de fundo enredado, um cenário onde os caminhos são entrecruzados. Esse pano se mostra pelos sentidos no conjunto das palavras, que ainda mantém sua ligação com a cultura humana. O escritor nos conquista, e somos tomados de nosso sono da realidade para cair em um mundo novo proporcionado por ele.

(...) o conhecimento linguajeiro suscita nas significações dadas transformações que só ali eram contidas como a literatura francesa é contida na língua francesa, ou as obras futuras de um escritor em seu estilo – e definir como a própria função da palavra seu poder de dizer no total mais do que diz palavra por palavra, e se ultrapassar ela mesma, que se trate de lançar outrem em direção do que sei e que ainda não compreendeu, ou de levar a mim mesmo em direção do que vou compreender. (MERLEAU- PONTY, 1974, pág. 139)

Esse conhecimento linguajeiro é um saber do contador, um saber que está em passagem, vivo na língua e na linguagem. É a pulsação que sentimos através das palavras, um sentir que não sabemos de onde vem. Se pegamos uma obra da literatura, ele não mostra seu

conhecimento, mas sim conta uma história. Essa história passa pelos nossos ouvidos, e com isso não percebemos mais as palavras, mas sim a história surge a nossa frente, nos domina, vemos cada um dos personagens, somos abordados neste processo, tornamo-nos um com o livro.

(...) Esta conduta da palavra faz compreender particularmente que a palavra é indissoluvelmente algo que se diz, que se escuta e que se vê. ‘A palavra lida não é uma estrutura geométrica num segmento de espaço visual, é a apresentação de um comportamento e de um movimento lingüístico em sua plenitude dinâmica.’ (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 242)

O artista nos envolve em sua linguagem, e não estamos mais parados, mas tomados, e isso faz com que sejamos apenas conduzidos neste meio. Mas somos conduzidos em um mundo que está em nós, um mundo que está participando de meu ser, que está em meu interior. Candido, o personagem central de Voltaire, não está caminhando pelas ruas de Eldorado. Candido está caminhando dentro de mim, ele é meu objeto, mas também sou eu.

(...) É [preciso] compreender como me desdobro, como me descentralizo. A experiência de outrem é sempre a de uma réplica de mim, de uma réplica a mim. (...) É no mais secreto de mim mesmo que se faz a estranha articulação com outrem; o mistério de outrem não passa do mistério de mim mesmo. Que um segundo espectador do mundo possa nascer de mim, não está excluído, está ao contrario feito possível por mim mesmo, se pelo menos reconheço meus próprios paradoxos. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 143)

Sou a fonte de paradoxos, um ser que é muitos, a partir do momento que estou vislumbrando uma arte que me possuiu. Posso me transformar em outro na medida em que sou um ser que é totalidade, um corpo que mostra-se ao mundo, mas que é todo um mundo. Sou Candido, sou Robur, sou Rodrigo.

Meu ser contata com o mundo, e o mundo se funde em mim, e esse mundo não é um mundo apenas para mim, mas para todos os seres que a ele se contata. O mundo torna-se o fundamento da ordem comunicativa dos seres. No terreno da linguagem é que os seres mostram sua ligação com o mundo fenomênico. E assim, quando meu ser é tocado pelo mundo, se contempla como totalidade, pois esse mundo anterior é totalidade também para meu ser. O mundo se encarna em mim.

(...) Tentamos (...) despertar uma relação carnal com o mundo e com outrem, que não é um acidente sobrevindo de fora a um puro sujeito de conhecimento (...), um conteúdo de experiência entre muitos outros, mas

nossa inserção primeira no mundo e no verdadeiro. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 146)

Quando o outro comunica-se, usa de uma linguagem artística para tocar-me, eu produzo um ser que faz parte de mim, que é meu objeto em meu mundo de generalidades. E assim, somos tomados pela obra, mas continuamos em nós mesmos. Isso explicaria a grande força que a obra tem de nos tirar de nós, o poder de um livro tem de nos transportar para outras realidades, mas essas realidades são produtos, objetos de nós, estão em nosso ser.

Essa é a aura que atinge nosso ser, uma mágica que esta passando a cada célula de nossa existência, e nos liga em uma comunidade de seres humanos. Com isso, chegamos ao fim desta caminhada na teoria fenomenológica de Merleau-Ponty. Agora, veremos uma citação que esclarecerá um pouco esse estudo, nos preparando para a busca prática de meios para as aulas de filosofia. Nada melhor do que as próprias palavras de Merleau-Ponty para nos dar incentivo neste momento.

Talvez o leitor dirá aqui que o deixamos com fome e que nos limitamos a um ‘é assim’ que não explica nada. Mas é que a explicação consiste em tornar claro o que era obscuro, a justapor o que estava implicado: ela tem então seu lugar próprio no conhecimento da Natureza em seus começos, quando acredita justamente ter que ver com uma natureza pura. Mas quando se trata da palavra ou do corpo ou da História, sob pena de destruir o que ela procura compreender, e de achatar por exemplo a linguagem sobre o pensamento ou o pensamento sobre a linguagem, só se poder fazer ver o paradoxo da expressão. A filosofia é o inventário dessa dimensão verdadeiramente universal, onde princípios e conseqüências, meios e fins fazem circulo. Ela só pode, no que toca à linguagem, mostrar com o dedo como, pela deformação coerente dos gestos e dos sons, o homem chega a falar uma língua anônima, e pela deformação coerente dessa língua exprimir o que só existia para ele. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 122-123)

Então, com essa fome provocada pelo estudo fenomenológico, rumamos para uma valorização da vida, uma visão em que nossas vidas surjam no ambiente escolar, fundando, quem sabe, uma nova visão, onde esta nossa filosofia não seja mais uma disciplina, mas sim, parte da vida do educandário. Teremos fome pela filosofia, encarnaremos essa disciplina, e que consigamos produzir esta mesma fome no ser de nossos alunos.

3 AS DIFICULDADES NO MUNDO FENOMÊNICO

Ora, o que é a vida? Uma espécie de constante comédia, onde os homens, disfarçados de mil modos diferentes, aparecem em cena, desempenham os seus papéis, até que o diretor, após havê-los feitos mudar de disfarce e aparecer uma vez com a púrpura soberba dos reis, outra com os farrapos repulsivos da escravidão e da miséria, os força a deixar o palco. Na verdade, este mundo nada mais é que uma sombra passageira, mas é essa a comédia que nele se representa todos os dias. (ERASMO DE ROTERDÃ – O elogio da Loucura)

As comunicações que envolvem os humanos mostram um mundo em movimento constante. Como vimos na primeira parte deste texto, a fenomenologia concebe um ser que está em relação com o mundo, e deduzimos que este ser também não é estático, não é absoluto. O ser é complexo, enredado com o mundo a sua volta através do corpo fenomênico. Quando caminhamos pela rua, lemos um jornal, vemos um filme, conversamos com um amigo ou estamos apenas sentados em uma madrugada quente de verão, ou seja, quando estou interagindo com o mundo, meu corpo se introduz no mundo, e esse mundo se introduz em mim, e o que faço é participar de algo que já é meu. Tanto o ser quanto o mundo coexistem fenomenologicamente.

Na continuidade deste estudo, em um primeiro momento, faremos uma analise das dificuldades na comunicação, principalmente na relação entre o professor e o aluno, usando para isso a base da fenomenologia retratada na primeira parte. Depois desta breve análise, procuraremos exemplos e visões de diferentes formas de abarcar o aluno para o ensino na sala de aula, para a tomada de seu ser na disciplina de filosofia. Não vamos dar soluções, ou até dar dicas de como será a melhor forma de ensino, mas sim mostrar uma nova capacidade de aplicar a fenomenologia na sala de aula, uma visão, a visão do fenômeno da linguagem entre professor e aluno, e com isso, buscar uma superação da dicotomia no ensino em diferentes momentos humanos. É uma valorização do aluno, do mundo fenomênico do aluno para o ensino filosófico. Devo desculpas para você, leitor, pois nossa fome não será saciada, mas creio que ela será aumentada sobre os meios de fazer filosofia em sala de aula. Penso que essa fome é essencial para os professores desta disciplina. Esta fome é a fome do diferente, que é naturalmente a fome da filosofia.