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O ser, o mundo e o ensino na fenomenologia de Merleau-Ponty

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Academic year: 2021

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_______________________________________________________

UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E PSICOLOGIA - DFP

RODRIGO SOARES SAMERSLA

O SER, O MUNDO E O ENSINO NA FENOMENOLOGIA DE

MERLEAU-PONTY

Ijuí 2011

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RODRIGO SOARES SAMERSLA

O SER, O MUNDO E O ENSINO NA FENOMENOLOGIA DE

MERLEAU-PONTY

Monografia apresentada junto ao Curso de Filosofia do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí, como requisito à obtenção do título de Licenciado em Filosofia

Orientador: Prof. Ms. Maciel Antoninho Viera

Ijuí 2011

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RODRIGO SOARES SAMERSLA

O SER, O MUNDO E O ENSINO NA FENOMENOLOGIA DE

MERLEAU-PONTY

Monografia apresentada junto ao Curso de Filosofia do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí, como requisito à obtenção do título de Licenciado em Filosofia

Orientador: Prof. Ms. Maciel Antoninho Viera

COMISSÃO EXAMINADORA

___________________________

Prof. Ms. Maciel Antoninho Viera

UNIJUÍ

___________________________

Profª. Drª. Vânia Lisa Cossetin

UNIJUÍ

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Maciel Antoninho Viera, pela orientação no caminho da fenomenologia. À minha família, pela liberdade para com minhas escolhas.

À minha esposa, por me ensinar o valor do amor e da vida sentida. Aos meus filhos, pelo carinho e atenção para com meu ser.

Aos professores do curso, pela amizade na filosofia.

Aos funcionários do DFP, pela ajuda prestada nesta graduação. À Unijuí, pelo espaço e material disponibilizado.

Aos amigos e colegas, pelas conversas instigantes que me impulsionaram nesta caminhada filosófica.

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Dedicatória

À vida, a única constante neste mundo de incertezas.

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Quem se dedica à filosofia põem-se a procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar com seus concidadãos, do destino comum da humanidade.

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RESUMO

A disciplina de Filosofia se encontra definitivamente na grade curricular do ensino médio. Com a volta deste estudo para a escola, os professores buscam alternativas do que ensinar, quais são as melhores maneiras de produzir uma aula, os autores a privilegiar e quais os conteúdos à exigir. Mas esse texto não é para esse fim. Este estudo tem como finalidade o

como ensinar. Tomando como linha de pesquisa a fenomenologia de Merleau-Ponty, busco a

valorização do aluno no meio da educação, criando com isso uma comunicação que enriqueça a relação dos seres nela colocados. A visão de uma objetividade da disciplina filosófica nubla a verdadeira função da filosofia, que é de participar da vida do estudante. Voltar para um

admirar-se com o mundo, assim como nossos predecessores: Sócrates, Agostinho, Hobbes,

Kant, Nietzsche,... Todos os grandes filósofos davam o valor exato a uma filosofia encarnada, que muda não só o individuo, mas também a sociedade. Busco uma possibilidade de, através da idéia de um corpo que participa do mundo, adquirir a visão de conjunto, de partícipe de um mundo fenomênico e integrado. A fenomenologia não é apenas um ramo da filosofia, mas um modo de fazer a filosofia. O estudo fenomenológico modula o ser em um processo lingüístico, que busca superar a dualidade do saber, antes dividido em sujeito/objeto, e integrar o ser no objeto, ou melhor, o ser no mundo objetivo. Esse é o mundo dos fenômenos, e tudo nele expresso atinge o ser, tornando ele parte de si. Ao final desta pesquisa, nos sentimos convidados a participar deste método, desta fenomenologia, e sua aplicação como forma de ensino filosófico. Com exemplos, associamos uma comunicação entre aluno/professor que valorize os dois seres conjuntamente, antes de separá-los em uma linguagem hierárquica. Essa busca da integração sujeito/objeto vista na fenomenologia poderá acarretar em mudanças significativas no ensino, onde a filosofia não seja mais uma ‘disciplina’ na escola, mas uma característica participante da vida do educando.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO DE MAURICE MERLEAU-PONTY ... 12

2.1 A Fenomenologia e o Mundo ... 12

2.2 O Corpo como Comunicação ... 17

2.3 A Linguagem e o Ser ... 22

2.4 À volta ao mundo pela Palavra... 25

2.5 O Mundo Fenomênico para o Ser... 29

2.6 A Fantasia no Mundo e no Ser ... 31

3 AS DIFICULDADES NO MUNDO FENOMÊNICO ... 35

3.1 A Comunicação entre os Seres ... 35

3.2 A Literatura como visão do Mundo... 38

3.3 Histórias em Quadrinhos e sua comunicação complexa ... 40

3.4 O Cinema e sua Linguagem ... 42

3.5 Os Animes e a comunicação do outro ... 45

3.6 Jogos Interpretativos e a interação com o Ensino... 47

3.7 Música e o ambiente Filosófico... 49

4 CONCLUSÃO... 51

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1 INTRODUÇÃO

(...) deste a mitologia grega, Prometeus, Sisiphus, depois Fausto e todo o resto não esquecendo, naturalmente, o Aprendiz de Feiticeiro e outras fabulas – tudo, incluindo Édipo e o átomo, tudo sempre começou como licença poética, como uma... metáfora, para depois tornar-se uma realidade palpável. (ROMAIN GARY, Nas sombras do Vaticano)

No texto A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty busca mostrar, através das obras deste pintor, a relação da vida nelas expostas. A vida de Paul Cézanne é explicada, destrinchada e analisada para dar o devido entendimento do que esse brilhante artista fez de revolucionário nas suas pinturas. Neste texto, Merleau-Ponty não julga os acontecimentos, mas sim apenas reporta o acontecido com ares de neutralidade. Com isso, ficamos sabendo da fuga de Cézanne de toda e qualquer convivência, da busca obstinada do pintor em retratar a natureza como ela se mostra através dos sentidos e do descontentamento para com o impressionismo. Cézanne se transforma em um espelho, onde a sua vida é transformada em filme, e conseguimos nos colocar no lugar de expectador. Também não julgamos suas escolhas, e apenas estamos estáticos perante o desenrolar de sua história. Assim, através da vida de uma figura histórica, somos envolvidos na realização concreta dos estudos desenvolvidos por Merleau-Ponty, na fenomenologia.

Neste estudo, varemos uma busca fenomenológica, utilizando ela como uma fonte, um fundamento, um alicerce para o trabalho na sala de aula. Esta forma de fazer filosofia, a busca fenomenológica de um saber crítico, pode ser de grande valia para o professor desta disciplina, que ministra aulas no ensino médio, pois não pensa mais o conhecimento como algo desconexo da vida de seus alunos. Não faremos uma aplicação de um saber filosófico, ou exemplificar determinados textos filosóficos que deverão ser aplicados em aula, pois o método fenomenológico que estará no início desta pesquisa, este sim deve ser aplicado nas aulas de filosofia, onde poderá ter uma grande aceitação para um determinado público alvo, que são alunos em plena adolescência, inseridos no ensino médio. Isto não é um desmerecimento para com a obra de Merleau-Ponty, ou então para com a proposta filosófica em que estive inserido nestes últimos anos nesta instituição, mas apenas uma valorização dessa disciplina no ensino, que é onde a maioria dos jovens se encontra para produzirem um ser participante de uma sociedade complexa.

Aqui estarão alguns aspectos da fenomenologia vista em Merleau-Ponty. Poderemos entender como esse autor aborda o ser no processo com o mundo, e isso abrirá um novo horizonte, uma nova visão de mundo e de aluno feita pelo professor. Tentaremos buscar uma valorização do corpo como um meio do ser conhecer o mundo, assim como formular uma amostra de como o ser se transforma através deste contato, onde veremos uma comunicação

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efetivamente agradável, e o aluno, antes colocado na periferia do saber, vê-se inserido junto com a produção deste conhecimento. Ele se relaciona com esse novo saber, se descobre participante deste processo.

A sociedade contemporânea que está a nossa volta prega a utilidade para cada coisa. Como uma máquina, a sociedade tem, para cada engrenagem, uma função especifica, e algo sem utilidade não deve fazer parte deste sistema. Isso é chamado de domínio da razão instrumental, assim definido por Adorno em seus estudos. A educação segue este mesmo esquema. As disciplinas ministradas aos estudantes devem criar neles a capacidade para participar deste sistema. Essa é a visão de uma escola para o capital. A escola é mais uma engrenagem, e não pode desligar-se do sistema econômico, pois o perigo reside na exclusão de sua utilidade. A escola deve formar mão-de-obra capacitada para o mercado.

Mas, como podemos ver, a educação deve estar fora deste esquema, deste sistema. Ela deve produzir a visão do diferente, ou seja, a capacidade de compreender o estranho, de interagir com aquele que não faz parte de nossa vida cotidiana. Esse diferente pode ser uma idéia, uma pessoa, uma cultura ou uma nação. É nisso que reside à filosofia, principalmente a volta dela no currículo do ensino, e é para essa disciplina que estaremos buscando a fenomenologia merleau-pontyana, que mostra um ser complexo, um ser que apesar de limitado pela sua visão, pode colocar-se no lugar do outro. Para que possamos nos colocar no lugar do outro, precisamos unicamente do corpo. Este corpo, que nos liga com o mundo, nos projeta também no outro. O ensino é complexo, assim como o ser.

A fenomenologia é o caminho indicado nesse estudo. Assim como Cézanne, faremos de nosso corpo espelhos, para que com isso possamos compreender o verdadeiro caminho da filosofia, ou seja, a essência de um saber crítico, que não tem uma utilidade própria, mas que está aí. É uma grande presunção da minha parte, devo dizer, pois peço que nos colocamos no mesmo nível de Cézanne, utilizando da mesma linguagem de Merleau-Ponty, para assim conseguir atingir nosso ser e também a essência de uma filosofia. Devo admitir que parece uma loucura esta pesquisa, mas também não posso esquecer que essa loucura é própria de todo o filósofo. Onde estaríamos se não fosse Nietzsche e sua loucura do Super Homem, Abelardo e sua loucura de amor para com Heloísa, o louco Sócrates e sua morte por um ideal. A loucura está historicamente em nosso sangue, em nossas veias filosóficas. Antes de um julgamento, peço um pouco de atenção de sua parte, caro leitor. Caminharemos juntos, trilhando um caminho novo. Não estaremos sozinhos, pois essa filosofia em que estamos inseridos faz parte de nosso ser, e estaremos com todos os clássicos em que nos identificamos.

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Tornar a filosofia participante do mundo através de nossa vivência, esse é a principal busca deste estudo.

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2 O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO DE MAURICE MERLEAU-PONTY

(...) um único homem pode passar por muitos acontecimentos sem que deles resulte alguma unidade. Uma pessoa pode praticar uma diversidade de ações, as quais não formam uma ação una. (ARISTÓTELES, Poética)

A tomada de um autor para uma pesquisa sempre esbarra na concepção que o pesquisador dá para ele, sua interpretação da teoria exposta pelo mestre. As idéias do pesquisador poderão sofrer mudanças, ter concepções que estão em discordância para com a teoria original. Não podemos fugir disso. Mas podemos suprimir essas dificuldades se encontrarmos a possibilidade de entrar na idéia original, e buscar mostrar todas as leituras que damos para esse autor, demonstrando nossas concepções da forma mais clara possível.

Faremos neste primeiro capítulo a inserção na idéia fenomenológica de Merleau-Ponty. Buscamos nos aprofundar na fenomenologia, tentando vivificar este método em nosso presente, nas dificuldades que aparecem aos nossos olhos.

2.1 A Fenomenologia e o Mundo

Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem. (DAVID HUME)

Como inicio de estudo, para um melhor entendimento, vamos conceber uma descrição do ser merleau-pontyano. O conceito ser será apenas inquirido por nós, já que os teóricos deste autor ainda não chegaram a um consenso sobre esse conceito, e até Merleau-Ponty não o define completamente. Tomemos a idéia de que o ser é uma complexidade, pois enquanto sou consciência, também sou parte do mundo.

(...) Enquanto sou consciência, isto é, enquanto alguma coisa tem sentido para mim, não estou aqui, nem lá, não sou Pedro, nem Paulo, não me distingo em nada de uma ‘outra’ consciência, posto que somos todos presenças imediatas no mundo e este mundo é, por definição, único, sendo o sistema de verdades. (...) O mundo é isto mesmo que nos representamos, não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquanto somos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividir. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 9)

Merleau-Ponty toma o ser como aquilo que tem a presença no mundo, como algo que está já colocado e em relação ao mundo fenomênico. O ser não pode conceber-se sem o mundo, nem mesmo anterior a ele.1

1 A fenomenologia heideggeriana, segundo Merleau-Ponty, tem como base Husserl, mas diferente do que

poderiamos pensar, o autor diz que Heidegger não acrecenta nada do que Husserl já coloca. Não quero desmerecer a obra de Heidegger, mas sim reportar as concepções de Merleau-Ponty na area fenomenologica.

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(...) O mundo que eu distinguia como soma de coisas ou de processos ligados por relações de causalidade, eu o redescubro ‘em mim’ como o horizonte permanente de todas as minhas cogitationes e como uma dimensão com relação a qual não deixo de me situar. O verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento que ele tem de existir, não converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo, e enfim não substitui o mundo mesmo pela significação mundo. Reconhece, pelo contrário, meu pensamento mesmo como fato inalienável e elimina qualquer espécie de idealismo ao me descobrir como ‘ser no mundo’. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 11)

Com isso, poderemos conceber o ser como a presença inalienável, um ser que está em relação para com o mundo, sem anterior nem posterior, sem separação, mas conjuntamente com o mundo, um sujeito embrenhado nos fenômenos.

A fenomenologia tem uma definição mais categórica, já que logo no prefácio da

Fenomenologia da Percepção encontramos seu conceito explicado.

O que é a fenomenologia? (...) é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, tornam a definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que substitui as essências na existência e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra forma senão a partir de sua ‘facticidade’. É uma filosofia transcendental que coloca em suspense, para compreendê-la, as afirmações da atitude natural, mas também uma filosofia segundo a qual o mundo está sempre ‘aí’ antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço está em reencontrar esse contato ingênuo com o mundo para lhe dar enfim um ‘status’ filosófico. É a ambição de uma filosofia que pretende ser uma ‘ciência exata’, mas é também uma exposição do espaço, do tempo e do mundo ‘vividos’. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 5)

Para Merleau-Ponty, a fenomenologia é uma busca, uma forma de como poderemos produzir o conhecimento não renegando a vivência de cada ser, assim como a valorização do mundo neste novo saber. A importância desta mudança de lugar do mundo na relação do conhecimento poderá ser melhor entendida se colocarmos o sistema fenomenológico da atualidade em paralelo com a tomada do sistema heliocêntrico para a era renascentista. O sol substituiu a terra como centro do universo, colocando a busca do entendimento das orbitas dos planetas em um modelo em movimento. O homem, saindo do centro do saber, busca um mundo que está em movimento, e não mais estático. Na fenomenologia, o homem retirar-se do centro do saber, que controla e adapta a natureza e o mundo físico ao seu bel prazer, saindo do Cogito cartesiano da busca do saber, e descobre nos objetos a nova forma de ver o mundo. É uma valorização do mundo fenomênico, onde os fenômenos se mostram em movimento, e a

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posição que cada ser tem sobre ele. Nisso, o homem descobre não mais como um absoluto, onde a natureza se molda a ele, mas sim participante deste processo, um ser inserido neste objeto/mundo.

Nisso, a vivência toma lugar de destaque neste estudo, onde cada ser pode se identificar com o conhecimento produzido. Mas a fenomenologia não pode ser vista como uma volta ao subjetivismo, mas sim uma valorização do ser enquanto ser humano, e que todos os seres podem ter essa capacidade de humanidade na produção do saber.

A fenomenologia é uma produção teórica deste mundo vívido, que se mostra a cada ser. No decorrer do texto, encontramos, logo a seguir a seguinte frase: “A fenomenologia só é acessível a um método fenomenológico” (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 6). Isso significa que a fenomenologia tem um conjunto de ferramentas próprias, que só tem finalidade para essa investigação.

Então, podemos determinar que a fenomenologia é uma busca, um caminho, e que só pode ser entendido quando tornamo-nos caminhantes nesta via. Mas, como dito acima, temos que ter novas ferramentas para esse saber, e não podemos buscar associar a fenomenologia como um retorno ao idealismo, e nem como uma forma do pensamento hermenêutico, mas sim algo novo, que integra o ser que busca com o buscado. Segundo Maciel Vieira, podemos conceber a redução fenomenológica de Merleau-Ponty

(...), não como suspensão do mundo natural, [não] como possibilidade de um retorno à subjetividade absoluta, mas como descoberta que faço, por meu corpo, de minha inserção no mundo, de minha “relação com o mundo”. É devido a essa proximidade que temos com o mundo, isto é, por sermos relação total com o mundo, que precisamos nos abster por alguns instantes dessa cumplicidade para ver melhor, deixar aparecer a estrutura fundamental do mundo, a qual encontra-se recoberta em função da proximidade. (VIERA, 2007, pág. 368)

A fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty faz um caminho partindo justamente do ser que é corpo, que é percepção. Ele toma o mundo fenomênico como fundamento de sua teoria. A principal dúvida que esta teoria busca solucionar é a dicotomia sujeito/objeto. Na busca de responder essa dúvida, Merleau-Ponty torna a sensibilidade e a percepção como o ponto fundamental, dando ao corpo uma importância singular. Para ele, o corpo é a conjunção do mundo fenomenal, pois esse corpo não apenas dá sentido aos objetos, mas também torna-se objeto para o mundo, e nesta relação existe a comunicação entre o torna-ser e o mundo. Por isso que nesta obra, o autor diz que na relação entre esses dois pontos, com o corpo ultrapassamos a explicação tanto cientificista como subjetivista.

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Merleau-Ponty trabalha sua fenomenologia nesta busca da valorização dos sentidos. Para ele, o corpo é o conjunto de sensações. Essas sensações são conexões que mantemos com o mundo físico, sendo que essas conexões são as únicas formas de produzir o saber deste mundo. Apenas com o corpo podemos nos deslocar pelo mundo, então apenas com os sentidos podemos conhecer.

O sensível é aquilo que se apreende com os sentidos, mas (...) este com não é simplesmente instrumental, (...) o aparelho sensorial não é um condutor, que mesmo na periferia a impressão fisiológica se encontra engajada em relações consideradas outrora como centrais. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 28)

As sensações e percepções não são apenas aquilo que sentimos, aquilo que passa através de nosso corpo e são interiorizados pelo nosso ser. Essas conexões não são apenas de uma direção, mas elas são vias duplas, pois quando dissemos que os sentidos colocam o mundo para o homem, este mesmo homem se transforma, pois o mundo também o modifica. Essa relação homem/mundo acarreta em mudanças tanto para o sujeito quanto para o objeto. Não existe mais uma separação do mundo e do homem, mas uma conjunção entre eles, que só pode ser alcançado com o corpo, o lugar das experiências sensíveis.

Esta forma fenomenológica de conhecer vem de encontro ao pensamento mecanicista moderno, já que, como visto anteriormente, Merleau-Ponty toma como função destruir os alicerces provindos de Descartes, que dividiu este mundo nesta dualidade. Não sentimos o mundo, mas usamos de uma razão instrumentalizada, mecanizada, para a busca do saber. Tornamo-nos escravos de um pensamento que não mais mostra o mundo, mas sim o explica e o forma categoricamente. Merleau-Ponty elabora uma resposta parecida com a de Aristóteles, ou seja, não existe um mundo das idéias da qual buscamos tocar para saber, mas sim, apenas existe esse mundo, o mundo dos fenômenos, da qual o ser também faz parte.

Quando o sujeito é tocado pelo mundo, ele interioriza estas imagens em sua mente, para manter o seu entendimento para com o mundo. São imagens que são colocadas, melhor dizendo, fundidas através dos sentidos no ser. Com isso, toda e qualquer sensação torna-se uma imagem. O ser mantém uma capacidade de vivência destas imagens, pois elas fazem parte dele. Mas o ser também produz imagens. Elas são produtos que o ser identifica ao longo de sua vida. Um devaneio, um sonho, um delírio são demonstrações de imagens formadas pelo ser, e que tem a mesma importância para ele.

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As imagens que o instinto projeta diante de si, as que a tradição recria em cada geração, ou simplesmente os sonhos, se apresentam primeiramente com direitos iguais em relação às percepções propriamente ditas, e a percepção verdadeira, atual e explícita, se distingue pouco a pouco dos fantasmas por meio de um trabalho crítico. A palavra antes indica uma direção do que uma função primitiva. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 29)

Este trabalho crítico é a habilidade que o ser tem de classificar a realidade palpável, aquela que se mostra por nossos sentidos. O corpo não apenas é um conjunto de processos dos sentidos, mas sim os objetos se mostram através dos sentidos, e são talhados em nossa percepção. Nesta abertura do ser para a imagem dos sentidos, ele se modifica interiormente. Assim que nossa percepção compreende o mundo, criando uma capacidade crítica em seu ser para com as imagens, e com isso definindo os objetos.

O corpo é um todo que reage com o objeto. Quando imaginamos o sentido do tato, podemos pensá-lo como um sentido isolado, mas o corpo não isola seus sentidos, mas sim o compreende como um todo, enredado com todos os outros sentidos humanos. Para o ser, o tato não tem distinção como sentido da visão, pois esses sentidos participam do mesmo corpo. É uma valorização do corpo de forma complexa e integrada.

Este corpo é aquilo que se mostra ao mundo, e também aquilo que faz com que eu tenha consciência do mundo.

(...). O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é para uma pessoa viva juntar-se a um meio definido, confundir-se com alguns projetos e engajar-se continuamente neles. (...) se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo inapercebido para o qual todos os objetos voltam a face, é verdade, pela mesma razão, que meu corpo é o ‘pivot’ do mundo; sei que os objetos têm várias faces porque poderia fazer a volta ao redor deles, e neste sentido tenho consciência do mundo devido a meu corpo. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 94-95)

Nesta relação constante é que a comunicação entre corpo/mundo, ser/objeto, poderá ser feita. Mas para que esse mesmo corpo possa ser compreendido pelo ser, ele tem que se ver como um objeto que toca, um objeto que sente, assim se compreendendo como ser que sente sentindo. Ele se mostra um toque tocado, um sentir que sente.

(...) Meu corpo (...) se reconhece no que me dá ‘sensações duplas’; quando toco minha mão direita com a esquerda, o objeto mão direita tem esta singular propriedade de sentir, ele mesmo também. (MERLEAU-PONTY, 1971, pag. 104-105)

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Aqui compreendemos a capacidade corporal, pois o corpo comunica-se com o mundo de forma fenomênica, mostrando a vivência dele com os objetos, mas também se compreende através de uma capacidade de objetivar-se perante seu ser. Essa comunicação corpo/objeto conduz o ser para sua história. Devemos trazer o vivo que há em mim para o mundo objetivo, assim mostrando um ser que está em comunhão com o mundo.

2.2 O Corpo como Comunicação

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; (EVANGELHO DE JOÃO 1; 14a)

O corpo é a conjunção do ser com o mundo vivido. Ele é o veiculo com que nos comunicamos com o objeto. Ele também é o ponto principal para a tomada do ser no mundo fenomênico.

Mas ele não tem uma humanidade inata, uma essência humana. Podemos definir que no homem não existe algo imutável, absoluto, uma natureza que nos permite ser desta maneira, uma natureza “humana”, mas sim que tudo está em uma corrente de mudanças constantes.

(...) Tudo é contingência no homem, no sentido de que esta maneira humana de existir não é garantia a qualquer criança por alguma essência que teria recebido no seu nascimento e que deve constantemente se refazer nela através dos acasos do corpo objetivo. O homem é uma idéia histórica e não uma espécie natural. Em outras palavras não há na existência humana nenhuma posse incondicionada e logo nenhum atributo fortuito. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 181)

O homem é algo produzido no mundo humano, em uma sociedade histórica, temporal, estritamente humana. Não que tenha uma essência humana que me permite viver com outros humanos, mas sim que aprendi a ser humano no meio deles. Assim, não podemos ver o corpo como algo absoluto, imutável, mas sim ver o corpo como estando sempre em constante mutação. O corpo mantém um indeterminado, uma capacidade de estar inserido em uma história também indeterminada.

O corpo se torna vívido quando contemplamos sua temporalidade, onde os acontecimentos não são vistos como sendo condicionados pelas escolhas anteriores. A comunicação é uma ponte inicial de contato com a história humana, onde aprendemos a fazer parte desta cultura.

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Nesta ponte é que a linguagem começa a tomar forma no pensamento fenomenológico. Lembremo-nos da citação vista no capitulo anterior: “A palavra antes indica uma direção do que uma função primitiva.” A palavra toma o aspecto de sinalizador, funcionando como indicação de como o ser poderá compreender o objeto. A linguagem é uma capacidade crítica produzida naturalmente pelo ser, em que ele usa para conceber o mundo a sua volta. A linguagem é nosso pensamento próprio no mundo, nossa direção do pensar.

Uma casa só poderá ser compreendida a partir da palavra “casa”, pois é essa a palavra que evoca nosso pensar nela. Só podemos pensar com a linguagem. E quando utilizando desta linguagem, desta comunicação, tornamos nosso pensar físico.2

É na cultura humana que a linguagem pode se corporificar no mundo fenomênico. Podemos entender essa contingência humana na própria linguagem, em como poderemos conhecer as palavras através da vivência do ser. Na obra De Magistro, Santo Agostinho usa um exemplo que poderá servir também para este momento.

(...) Na verdade, quando estas três silabas, que pronunciamos ao dizer – cabeça, percutiram pela primeira vez os meus ouvidos, desconhecia (...) o que elas significam, (...). Antes de o ter descoberto, esta palavra era apenas um som para mim; aprendi que era sinal, quando descobri de que realidade era sinal. Essa realidade, como já disse, tinha-a eu aprendido não por meio de sinal, mas pela visão. E assim, mais se aprende o sinal por meio da realidade conhecida, do que a própria realidade por um sinal dado. (AGOSTINHO, 2002, pág. 92-93)

Merleau-Ponty em sua fenomenologia concebe a linguagem como interagindo com a história temporal do homem. Na fenomenologia, Merleau-Ponty coloca a linguagem como uma característica humana que se adquire tardiamente, assim como Agostinho contempla a palavra. Apenas pela vivência com o outro (o outro poderá ser um sujeito ou um objeto, um ser ou o mundo) é que podemos adquirir a linguagem, já que sem a linguagem estamos isolados, não somos humanos. A linguagem é comunicação, e sempre exige o outro. O ser se introduz na história humana, na cultura que o rodeia, e apenas com sua tomada de posição nesta história, ele se transforma em um ser que comunica.

(...) Desde que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva com ele mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é

2 Quando estamos ao longe, nossa visão busca compreender o mundo através de palavras, mesmo não tendo

verdadeiramente compreendido esta visão. O mastro de um navio que está no horizonte de nossas vistas se confunde com os raios solares, mas o compreendemos a partir das palavras como ‘alongado’, ‘solido’ e ‘vertical’. Nossa cadeia de pensamento utiliza da palavra para construir seu entendimento. Com isso, podemos definir que a linguagem faz parte de nós.

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mais um instrumento, não é mais um meio, é uma manifestação, uma revelação do ser intimo e do laço psíquico que nos une ao mundo e a nossos semelhantes. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 206)

A linguagem forma-se no mundo. Ela toma a vivência no mundo objetivo. Isso ocorre quando o ser fala, se comunica, transformando a linguagem em corpo físico no mundo. A palavra se corporifica no mundo fenomênico atingindo o outro.

Diferente do que vimos até agora na fenomenologia, as teorias filosóficas que eram correntes na época do autor colocavam a palavra como uma produção teórica do homem, ou então uma produção física, ou seja, a palavra apenas indica um objeto mentalmente ou fisicamente. Nestas concepções, a linguagem é vista como um invólucro vazio, pois o sentido ou está no pensamento ou está nas coisas.

(...) Os sentidos das palavras é considerado como dado com os estímulos ou com os estados de consciência que se trata de denominar; a configuração sonora ou articulatória da palavra é dada com os traços cerebrais ou psíquicos; a fala não é uma ação, ela não manifesta possibilidades interiores do sujeito; o homem pode falar assim como a lâmpada elétrica pode tornar-se incandescente. [mas] Uma vez que existem distúrbios eletivos, que atingem a linguagem falada com exclusão da linguagem escrita, ou a escrita com exclusão da fala, e que a linguagem pode se desagregar em fragmentos, é porque ela se constitui por meio de uma série de contribuições independentes e porque a fala no sentido geral é um ser de razão. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 185)

A palavra tem um sentido intrínseco, uma racionalidade. A palavra indica um caminho, mas não indica como uma placa ou um mapa, mas sim um ser que aponta para o caminho a tomar. Ela não pode ser nem uma tradução do pensamento, nem uma indicação física de algo, pois a palavra é um ser que participa de um mundo de significações que nosso corpo carrega em cada momento. Esse mundo da linguagem poderá ser melhor compreendido se visualizarmos ela como uma extensão do nosso ser, assim como o braço direito é uma parte de nosso corpo. Ela faz parte de nós assim como nossos pés, assim como nossos dedos. Nós voltamos a essa parte quando buscamos entender o mundo, quando pensamos e criamos, pois ela não é um instrumento, mas sim uma característica do ser.

(...) ‘O alvo [da palavra] (die Meinung) não se encontra fora das palavras, ao lado delas; mas pela palavra (redend) consumo constantemente um ato de alvo interno, que se funde com as palavras e por assim dizer as anima. O resultado dessa animação é que as palavras e todas as palavras encarnam, por assim dizer, o alvo em si próprios e o carregam, encarnado nelas, como sentido’. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 45)

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Quando nomeamos um objeto, nosso ser não está indicando o que esse objeto tem na sua essência. Nós criamos para nós o objeto, criamos a sua imagem, a partir de sua nomeação.

(...) A denominação dos objetos não ocorre depois do reconhecimento, ela é o próprio reconhecimento. Quando fixo um objeto na penumbra e digo: “É uma escova”, não há no meu espírito um conceito de escova, ao qual eu subsumiria o objeto e que, por outro lado, se encontraria ligado por uma associação freqüente a palavra “escova”, mas a palavra tem sentido, e impondo-a ao objeto, tenho consciência de atingir o objeto. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 188)

Nesta característica da palavra é que forma-se uma explicação para a linguagem: ela não apenas fornece o sentido dos objetos, mas também o objeto para o meu ser. Se a linguagem torna o objeto para mim, interiorizando, ele também exterioriza meus pensamentos, pois quando falo, expresso esse pensamento no mundo fenomênico. A razão se vivifica no mundo.

(...) É preciso compreendermos que a linguagem não é um impedimento para a consciência, que não há diferença para ela entre o ato de se atingir e o ato de se exprimir, e que a linguagem, no estado nascente e vivente, é o gesto de retomada e de recuperação que me reúne a mim mesmo como a outrem. É preciso pensarmos a consciência nos acasos da linguagem e impossível sem seu contrário. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 32)

Sou consciência e linguagem, sou um conjunto enredado, não posso separar o meu ser da comunicação, da cultura, da história em que estou inserido. Por isso que posso disser que com a linguagem, estou misturado neste mundo, através da linguagem sou um com o mundo.

Quando existe uma comunicação, torno meu pensamento um corpo, e é onde meu interlocutor se integra a fala, neste mundo objetivo, fenomênico. “(...) Há (...) uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos próprios pensamentos. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 189)”

No momento da comunicação, esses seres se transformam, se misturam, interagindo entre si e com o mundo. Seus pensamentos são refeitos no outro, e aquilo que é comunicado torna-se o outro.

Merleau-Ponty trabalha a linguagem como tendo dois estágios, sendo eles complementares entre si. Não é a criação de duas linguagens que são distintas e desconexas, mas uma linguagem que se desenvolve com características próprias em cada momento. O primeiro momento, ou estágio, seria a “linguagem falada”, ou seja, a linguagem que cada um

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carrega dentro de seu mundo lingüístico de significações. É onde a vivência busca os significados para seu entendimento.

(...) A linguagem falada é aquela que o leitor trazia com ele, é a massa de relações de sinais estabelecidos com significações disponíveis, sem a qual, de fato, ele não teria podido começar a ler, que constitui a língua e o conjunto dos escritos dessa língua, (...). (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 28)

Vou dar um exemplo: quando uma pessoa fala “casa”, o objeto casa tem características distintas do ser que fala e do ser que escuta. Para o ser que fala, a casa é vista como sendo em estilo colonial, com uma varanda recoberta de flores e com as cores branca e marrom; já o outro a vê como sendo em estilo moderno, com vários ângulos retos e janelas gradeadas, nas cores verde e gelo.

Cada um toma as características da fala de forma diferente, pois cada um tem vivências diferentes. Na fala, o pensamento toma a forma dos objetos que cada um tem dentro de si. Uma árvore para mim poderá ser diferente de uma árvore para o outro, mas a essência de árvore, seu significado fenomênico, já está enredada na palavra árvore.

O outro momento da linguagem é a “linguagem falante”. É quando aquele que fala descreve através dos estilos ou da história que está contando, às características que cada palavra tem, ou seja, as palavras se tornam palavras de algo específico através do contexto que a comunicam. Neste momento, a casa não é mais vista como sendo em estilo moderno, mas apenas a casa do falante sobrevive na linguagem, e o pensamento do ouvinte é totalmente tomado pelo estilo da linguagem do falante.

(...) a linguagem falante é a interpelação que o livro endereça ao leitor não prevenido, e essa operação pela qual um certo arranjo de sinais e de significações já disponíveis vem a alterar, depois a transfigurar, cada um deles e finalmente secretar uma significação nova, a estabelecer no espírito do leitor um instrumento a partir de então disponível, (...). (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 28-29)

Nesta citação em particular, a linguagem é vista pontualmente na leitura, mas esse mesmo esquema da linguagem pode ser usado na fala, na comunicação efetiva dos seres. Esse estilo que está envolto na minha fala, é a sombra que mostra a minha intenção para o ouvinte.

(...) O ato de falar, uma vez adquirido, não supõe qualquer comparação entre o que quero exprimir e o arranjo nocional dos meios de expressão que emprego. Quando falo, as palavras, os meneios necessários para conduzir

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minha intenção significativa à expressão são-me recomendados apenas graças ao que Humboldt chamava innere Sprachform (e que os modernos chamam de Wortbegriff), isto é, graças a um certo estilo de palavras de que dependem e por cujo intermédio se organizam sem que eu precise representá-los para mim. Há uma significação “linguageira” da linguagem que executa a mediação entre minha intenção ainda muda as palavras, de tal sorte que minhas palavras surpreendem a mim mesmo e me ensinam meu pensamento. Os signos organizados têm seu sentido imanente, e este não depende do “eu penso”, mas do “eu posso”. (MERLEAU-PONTY, 1980, pág. 133)

Quando há a comunicação, o falante não pensa em cada palavra. A casa não é falada e depois interiorizada, onde ela toma o aspecto físico da casa que quer comunicar. Na própria fala, ela toma o aspecto desejado. Quando falo casa, a casa aparece à frente de meus olhos.

(...) o pensamento, no sujeito falante, não é uma representação, isto é, não coloca expressamente objetos e relações. O orador não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o ouvinte não sente com relação a símbolos. O “pensamento” do orador é vazio enquanto fala, e, quando se lê um texto, as palavras ocupam todo nosso espírito, elas vêm preencher exatamente nossa espera e sentimos a necessidade do discurso, mas não seríamos capazes de prevê-lo e estamos possuídos por ele. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 190)

Compreendo o outro através das palavras, que me tomam, me tiram de meu mundo de significações, e assim levam-me para uma nova compreensão, enredada em um dizer complexo. Como visto no capítulo anterior, a fenomenologia só pode ser compreendida com um método fenomenológico. Quando há uma comunicação, os seres envolvidos se misturam nas suas falas, os sujeitos falantes buscam o entendimento no mundo da linguagem. Essa característica da linguagem não diz ser uma interpretação, mas algo muito maior, uma força que nos absorve, cria as imagens em nosso interior, que nos cobre com suas significações, que possui nossos pensamentos.

2.3 A Linguagem e o Ser

- Então... teremos uma conversa! –retrucou Poirot – Jes vous assure, Hastings, nada é mais perigoso que uma conversa, para alguém que tem algo a esconder! Como me disse certa vez um velho e sábio francês, a fala é uma invenção do homem para impedi-lo de pensar. E é também um meio infalível de se descobrir o que ele deseja ocultar. Um ser humano, Hastings, não pode resistir, diante da oportunidade que uma conversa lhe dá, de se revelar e expressar sua personalidade. Cada vez ele se revelará mais coisas e se deixará trair. (AGATHA CRISTIE – Crimes ABC)

Como vimos até aqui, a comunicação ocorre quando o ser está em contato com o outro, e seus pensamentos são tomados pelo outro, assim como tomo o outro em mim. Na linguagem, os dois seres se embatam, lutam na tomada de significações como em um duelo.

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Isso ocorre porque as palavras devem tornar-se significativas para cada um deles, e esse significado deve ser igual entre os dois, dando o entendimento do que está sendo o comunicado.

A fenomenologia conduz para um caminho duplo, pois devemos conceber o outro a partir de nossas vivências na linguagem. Mas, para Merleau-Ponty, a busca de entendimento deve regular-se no ambiente da linguagem, onde essa mesma linguagem tem uma organização em forma de mundo, ou seja, um mundo da linguagem. A comunicação é um organismo, assim como o ser. A linguagem é o que une esses dois extremos, une os seres através do entendimento, não importando que sejam ser/ser ou entre ser e objeto. Nisso reside o conhecimento do mundo fenomênico. Mas a própria linguagem não é estática, absoluta em sua natureza, mas sim, mutante, modifica-se de acordo com o tempo e a história.

A comunicação usa de um sistema para sua regulação, que além dos estágios que deixamos claro logo acima (a linguagem falada e a linguagem falante), depende também do lugar e do tempo histórico em que os seres se encontram. A regra que regula a linguagem nesta temporalidade é a gramática. Em cada época e povo, ela se caracteriza de formas e estilos diferentes. O latim tem uma forma gramatical totalmente diferente do chinês; a língua maia e asteca tem tempos verbais que são totalmente diferentes das línguas contemporâneas. O alemão não compreende o português e o francês se afasta do inglês. Cada povo tem uma língua que influência a sua cultura, e isso marca uma humanidade em mutação.

A todo o momento, sob o sistema da gramática oficial, que atribui a tal sinal tal significação, vê-se transparecer um outro sistema expressivo que traz o primeiro e procedo diferentemente dele: a expressão, aqui, não está ordenada, ponto por ponto, ao exprimido; cada um dos seus elementos não se precisa e não recebe a existência lingüística a não ser pelo que ele recebe dos outros e pela modulação que imprime a todos os outros. É o todo que tem um sentido, não cada parte. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 42-43)

Segundo Merleau-Ponty, Husserl procurava uma linguagem primária, fundamental, e isso só podia ser alcançado criando-se uma gramática pura. A busca desta gramática só poderia ser alcançada se houvesse uma catalogação das diferentes gramáticas envoltas sobre o mundo, de todas as línguas que o ser humano usa ou usou, e assim poderíamos comparar a diferença que cada uma tem sobre a outra. Mas nas obras de Merleau-Ponty, ele deixa claro que não existe uma gramática pura, mas sim a vivência é a regulação que mantém a comunicação entendível entre os homens. A história de cada ser busca seu entendimento, pois não concebo um ser desvinculado da sociedade que faz parte. Então a linguagem começa a se

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regular procurando esse entendimento, em um processo natural, ou seja, sem um ser maior o regulando.

Então, como podemos compreender a cultura e a língua do outro da qual não faz parte de nossa cultura e língua materna?

Bem, o ser carrega uma linguagem, que o vivifica no mundo. Essa linguagem dá o entendimento dele com o seu grupo, transmitindo a cultura e a forma de pensar. Mas a linguagem carrega um campo de significações que é muito maior que o que pode ser concebível pela palavra. Quando o outro compreende a palavra, a sua compreensão nunca é a mesma da do autor, ou a do leitor ao seu lado.

(...) A palavra num sentido retoma e supera, mas em um sentido conserva e continua a certeza sensível, ela não penetra nunca completamente o silêncio eterno da subjetividade privada. Agora, ainda, ela continua sob as palavras, não cessa de envolvê-las, e, por pouco que as vozes sejam longínquas ou indistintas, ou a linguagem bastante diferente da nossa, podemos reencontrar, diante dela, o estupor da primeira testemunha da primeira palavra. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 57)

As palavras são reinterpretadas a cada momento da comunicação. Elas têm em sua essência essa vontade de se envolver, de buscar significações em outras palavras. Mas não uma desvalorização da palavra, como se ela encontrasse sua significação no conjunto. O que buscamos é a valorização da palavra no silêncio que ela trás.

(...) [a linguagem] Não escolhe somente um signo para uma significação já definida, como se procura um martelo para cravar um prego ou um alicate para o arrancar. Tateia em torno de uma intenção de significar que não se guia por um texto que, justamente, está escrevendo. Se quisermos apreciá-la, precisamos evocar algumas das que poderiam estar em seu lugar e foram rejeitadas, sentir como teriam diferentemente tocado e abalado a cadeia da linguagem, a que ponto esta palavra era mesmo a única possível, caso devesse vir ao mundo esta significação... Precisamos enfim considerar a palavra antes que seja pronunciada, contra o fundo de silêncio que sempre a envolve e sem o qual nada diria, ou desvendar ainda os fios de silêncio que a enredam. Há, para as expressões conquistadas, um sentido direto, correspondente ponto por ponto às locuções, formas, vocábulos instituídos. (MERLEAU-PONTY, 1980, pág. 146)

Essa volta a significação trás ao homem uma compreensão da linguagem que nunca poderá se esgotar, pois ela sempre se mostrará inacabada. Até no silêncio, a palavra significa, mostra sentidos que não estão postas nela, mas sim, mostram a vivência do ser. A linguagem

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também mostra sua vida. Ela é uma vida vivente. Quando me exprimo, essa expressão carrega todo o mundo de significações, carrega um eterno compreender em e para nós.

2.4 À volta ao mundo pela Palavra

A arte é contemplação. É o prazer de um espírito que penetra na natureza, nela adivinhando o espírito que a anima. É a mais sublime das missões do homem, pois é o exercício do pensamento que procura compreender o mundo e fazer com que compreendam. (AUGUSTE RODIN)

O mundo da linguagem toma seus significados no mundo vivido, que trás suas representações diretamente do mundo fenomênico. Merleau-Ponty sabe que o trabalho do ser que fala, ou do ser que escreve, deve ser tão importante quanto o ser que pinta. O escritor e o pintor têm uma mesma forma de ver o mundo, e essa forma de visualizar o mundo que deve ser encontrado pela filosofia.

Assim como um quadro faz com que nós visualizemos de maneira diferente o que nele está exposto, dependendo daquele que o observa, a linguagem poderá ser visualizada, ter diferentes entendimentos para cada ser que fala. Após esse momento, os seres se compreendem mutuamente. Então, dois quadros que estampem uma árvore, sendo elas diferentes fisicamente, se fundamentam no mundo fenomênico. Não existe uma árvore que não se apóia no conceito árvore do mundo dos fenômenos, assim como não existe palavra que não tem fundamento na linguagem.

No texto A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty coloca que:

Vivemos em meio aos objetos, construídos pelos homens, entre utensílios, casas, ruas, cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicações. Habituamo-nos a pensar que tudo isto existe necessariamente e é inabalável. (MERLEAU-PONTY, 1980, pág. 118-119)

O mundo se mostra a nós, e não pensamos sobre ele, pois estamos habituados a ele, como se o mundo fosse sempre assim. Perdemos uma de nossas capacidades, que é a de criticar nossa realidade. Nós absolutizamos o mundo. Mas quando o mundo se mostra, ele poderá ter significados imprevistos, indeterminados, bastando uma mudança de visão daquele que observa. É essa posição que a visão fenomênica tem como finalidade, uma mudança filosófica do mundo já dado.

Essa busca do mundo não pode ser vinculada com uma adaptação do ser pelo mundo; quando visualizo um quadro, ocorre uma comunicação entre meu ser e o quadro, mas o ser não se adapta ao quadro assim como a visão do quadro não se adapta ao ser. A comunicação

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entre ser e a pintura envolve uma visualização do ser para esse quadro com o sentimento, colocando significados às formas vistas nesta pintura, e o que toca verdadeiramente o ser é aquilo que o significa, a vivência e o sentimento.

A fenomenologia de Merleau-Ponty busca resgatar a visão sentimental das coisas. Esse sentimento é a busca do sentir, da vontade no corpo de se comunicar com o mundo. Uma visão que busque a vida em cada objeto, e que transmita ao ser a capacidade de entender o mundo não como objetivo, mas embrenhado em sua vivência, um mundo que respire junto com o ser. Na obra O Homem e a Comunicação – A prosa do Mundo, Merleau-Ponty usa de um exemplo pratico para entender esse poder inerente a todos os seres humanos. Quando encontramos nossos “heróis”, nossos ídolos, em sua vida particular, nós temos a impressão equivocada.

(...) O que pensam, eis então o que faz de seu tempo o escritor que gosto tanto? Eis a casa em que ele mora? Eis a mulher com a qual partilha sua vida? Eis as pequenas preocupações de que está cheio? Nós pensamos no escritor a partir da obra como pensamos numa mulher distante a partir das circunstâncias, das palavras, das atitudes em que ela se exprimiu mais puramente. Quando reencontramos a mulher amada, ou quando conhecemos o escritor, ficamos totalmente decepcionados de não reencontrar em cada instante de sua presença aquela essência de diamante, aquela palavra perfeita, que nos habituamos a designar por seu nome. Mas aí só se trata de prestigio (às vezes mesmo inveja, ódio secreto). (...) [a] maturidade é compreender que não há super-homem, nenhum homem que não tenha de viver uma vida de homem, e que o segredo da mulher amada, do escritor e do pintor não está em algum além de sua vida empírica, mas tão estreitamente misturados às suas mínimas experiências, tão pudicamente confundido com sua percepção do mundo, que não poderia ser questão de reencontrá-lo à parte, face a face. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 79)

Devemos buscar essa visão da qual os pintores e escritores se vinculam, uma visão de sentir o objeto que está expondo, de sentir a vida sagrada que mostra cada um dos seres. Uma volta a vida infundida em si. É a capacidade de se misturar a vida do expectador, a vida do mundo e a vida da linguagem. Quando essa vinculação não está exposta, os objetos são demonstrados como fenomenologicamente inerte, sem movimento para o ser que o expõem, ou seja, sem movimento para aquele que observa, sendo ele o apreciador de uma pintura ou um leitor de um livro. Aquele que visualiza o quadro não é tocado pela obra, sua atenção não é tomada pelo pintor, e não produz o desequilíbrio nele.

Quando damos ao significado uma volta para o sagrado, uma volta ao fenômeno da vida, nós começamos a garantir o entendimento de nosso interlocutor e a existência da comunicação. Os escritores estão inseridos no mundo, os pintores são inseridos no mundo, e

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não se desvinculam dele para criar suas obras. Nesta visão, as palavras começam a ressoar na nossa mente, na essência do nosso ser através desta tomada fenomênica dos significados.

(...) Não me contento mais em sentir: sinto que me sentem, e que me sentem quando estou sentindo, e sentindo esse fato mesmo que me sentem... Não é preciso dizer somente que habito a partir de então um outro corpo: isto só faria um segundo eu-mesmo, um segundo domicílio para mim. Mas há um eu que é outro, que está instalado alhures e me destitui de minha posição central, embora, de toda evidência só possa tirar de sua filiação sua qualidade de mim. Os papéis do sujeito e do que ele vê se trocam e se invertem: eu acreditava dar ao que via seu sentido e essa condição, o espetáculo vem a se dar a si mesmo um espectador que não sou eu, e que é copiado sobre mim. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 142)

Um exemplo: quando digo “João morreu”, essas palavras não produzem significados na minha vivência, o dizer desta frase é como barulho que fica ao longe enquanto busco concentrar minha atenção sobre a leitura do livro que está sobre meus joelhos.

Agora, quando essa mesma pessoa diz: “meu avô, João, morreu em um acidente de trânsito”, somos abordados por diferentes sentimentos que envolvem essa frase: a perda de um ente querido; a violência que o trânsito se encontra, assim por diante. Com isso, sou preso à frase, e começo a ser tomado de seus pensamentos, puxado em uma onda, e não é mais o eu que está em mim, mas perco junto com ele o avô muito querido. Só podemos sentir a morte quando temos essa perda que ela provoca vivenciado em nós.

Existe na linguagem um fundamento escondido, nublado, e quando o compreendemos, temos uma nova forma de ver o mundo e nossas relações.

(...) Toda percepção, e toda a ação que a supõe, em suma, todo o uso de nosso corpo, é já expressão primordial, quer dizer, não o trabalho segundo o derivado que substitui ao exprimido sinais dados por outras coisas com seu sentido e sua regra de emprego, mas a operação que primeiro constitui os sinais em signos, faz habitar neles o exprimido, não sob a condição de alguma convenção prévia, mas pela eloqüência de seu próprio arranjo e de sua configuração, implanta um sentido no que não tinha, e que então, longe de se esgotar no instante em que tem lugar, abre um campo, inaugura uma ordem, funda uma instituição ou uma tradição... (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 90)

O estilo do texto é como o estilo da pintura. A pintura pode ter o estilo clássico, impressionista, moderno, etc., e significam diferentes formas de ver um determinado horizonte. As formas de escrita também trazem esse mesmo objetivo, onde cada escritor passa, através das palavras, sentimentos condizentes com sua história. A vivência do autor se

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sobressai nas palavras. Quando ele diz: “O homem está sozinho em meio ao aeroporto. ”; nós nos vemos pelos olhos deste homem, sozinho no mundo, engolfados nesta funesta onda de sentimentos, olhando as nuvens que esconde-nos da multidão.

As palavras têm esse poder de virar nossa percepção para o mundo. Por isso que o corpo tem naturalmente a capacidade da fala e da comunicação, pois isso é indicado através da expressão primordial que cada ser tem como fundamento na palavra. É essa expressão que me liga com o mundo, que é a ligação com os seres e objetos. A linguagem é um mundo de significados que nos produzem sentimentos e vivências para o mundo objetivo.

A ciência e algumas filosofias tratam a linguagem como desconexa com o mundo ou com a história humana. Elas produzem argumentações sem ligação com o homem, como se a linguagem ou o mundo não existam integrados, mas cada um deles destituído do outro.

(...) O pensamento analítico, cego para o mundo percebido, quebra a transição perceptiva de um lugar a outro, de uma perspectiva a outra e procura do lado do espírito a garantia de uma unidade que já está lá quando percebemos, quebra também a unidade da cultura e procura reconstituí-la de fora. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 93)

Diferentemente, a fenomenologia mostra um ser humano que está ligado com a história do mundo, em simbiose entre a vivência de seu ser com o mundo objetivo. Esse mundo está a sua frente, passa pelos seus olhos e comunica-se com seu intimo. Nunca poderemos ver um ser humano que não esteja colocado em sociedade, que não seja produzido em meio a uma cultura que torna-se raiz para ser um humano em totalidade.

(...) Cada um, num sentido, é para si a totalidade do mundo e, por uma graça de Estado, é quando disso está convencido que isso se torna verdadeiro: pois então ele fala, e os outros o compreendem – e a totalidade privada fraterniza com a totalidade social. Na palavra se realiza o impossível acordo entre duas totalidades rivais, não que ela nos faça entrar em nós mesmos e reencontrar algum espírito único ao qual participaríamos, mas porque ela nos diz respeito, nos atinge de través, nos seduz, nos arrasta, nos transforma no outro, e ele em nós, porque ela abole os limites do meu e do não-meu e faz cessar a alternativa do que tem sentido para mim e do que é não-sentido para mim, de mim como sujeito e de outrem como objeto. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 152-153)

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2.5 O Mundo Fenomênico para o Ser

‘Era uma vez um pequeno príncipe que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo... ’ Para aqueles que compreendem a vida, isto parecia sem duvida muito mais verdadeiro. (ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY – O Pequeno Príncipe)

O ser se comunica com o mundo transpassando-o na linguagem. Merleau-Ponty mostra um ser que é complexo, enredado em um sistema que forma-se no mundo, na linguagem e na cultura humana. A comunicação é parte do ser, do sujeito que fala.

A linguagem também contribui não apenas comunicando o mundo, mas até criando novas comunicações entre os seres. O mundo fenomênico não é apenas o conjunto físico do mundo, aquilo que passa através de nossos sentidos. Ele é tudo que faz parte de nosso ser, o conjunto das vivências de nosso corpo encarnado.

É sobre esse mundo fenomênico que gostaria de me prender nesta parte.

O campo fenomenal não é um ‘mundo interior’, o ‘fenômeno’ não é um ‘estado de consciência’ ou um ‘fato psíquico’, a experiência dos fenômenos não é uma introspecção ou uma intuição (...). A experiência dos fenômenos não é pois (...), a prova de uma realidade ignorada, para a qual não há passagem metódica, – é a explicitação ou a colocação em dia da vida pré-científica que só dá sentido completo às operações da ciência e a qual essas reenviam sempre. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 73-74)

Com isso, podemos dizer que o mundo fenomênico é um conjunto de significações. Essas significações não são colocadas pelo ser, determinadas por apenas um lado, mas nas relações entre o ser e o mundo.

Tomemos a visão de uma criança que pega uma folha de papel em branco nas mãos. Esse papel significará o mundo físico. A criança desenha nesta folha o perfil de uma pessoa. Esse desenho corresponde ao corpo no mundo físico. Agora, com lápis de cor, ela pinta com diferentes cores esse desenho. As cores são a representação daquilo que toca os sentidos, dos significados produzidos nas relações, da linguagem que nos ultrapassa.

O perfil do desenho da pessoa define o que é o “em cima” e o “em baixo”, pois nossa mente julga o que está “acima” da cabeça como o céu, e o que está “abaixo” dos pés como o chão. A criança pinta então o céu de azul, um azul claro, como é a cor do céu em dia ensolarado e sem nuvens. Mas esse azul não fica apenas circundando o desenho da pessoa, ele penetra neste perfil, infunde sua cor na cabeça da pessoa. A criança não consegue controlar a pintura, e a cabeça do perfil desenhado também fica azul, como o céu atrás dela. A criança pega o marrom, e pinta abaixo dos pés do desenho, representando o chão que a pessoa pisa. Mas, novamente, o marrom não fica unicamente abaixo dos pés, ele passa o contorno do

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desenho, infundindo mais uma cor nele. Após isso, a criança pega a cor amarela, e começa a pintar o desenho em si, transformando o desenho não mais em apenas um perfil, mas dando substância, consistência, criando verdadeiramente um corpo neste mundo azul e marrom. Só que neste pintar do corpo, ela passa o limite do desenho, impregnando o mundo com uma cor amarela do corpo desta pessoa.

Quando a criança mostra esse desenho para nós, dizemos que está muito bonito, mas repreendemos sua pintura, falando que da próxima vez, cuide para não borrar as cores onde não necessite. A criança então, com um sorriso, diz que a cabeça está ‘vendo’ o céu azul, e esta com seus pés sujos por estar no barro. Com isso esboçamos um sorriso, e juntos, admiramos esse perfil de pessoa com a cabeça no céu e os pés sujos na terra.

(...) [A criança] dá à subjetividade uma satisfação de princípios pela deformação que admite nas aparências, mas como essa deformação é sistemática e se faz segundo o mesmo índice em todas as partes do quadro, ela me transporta nas próprias coisas, me mostra como Deus as vê, e mais exatamente, me dá não a visão humana do mundo, mas o conhecimento que pode ter de uma visão humana um deus que não mergulhe na finitude. (...) Trata-se de deixar um testemunho, e não de fornecer informações. O desenho não deverá mais se ler como antes, o olhar não o dominará mais, nós ali procuraremos mais o prazer de envolver o mundo; ele será recebido, nos dirá respeito como uma palavra decisiva, despertará em nós o profundo arranjo que nos instalou em nosso corpo e por ele no mundo, carregará o selo de nossa finitude, (...) e por aí mesmo, nos conduzirá à substancia secreta do objeto de que pouco antes só tínhamos o envelope. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 156-157)

Este desenho nos mostra uma visão de mundo mais sublime, de total admiração. A fenomenologia mostra um ser que se mistura com o mundo a sua volta, e um mundo que mistura sua essência com o ser. Essa comunicação concebe um sujeito e um objeto diferente do que era usado até agora, onde cada um é absoluto. O sujeito é aquele que produz o conhecimento, e o mundo é esse que se mostra através dos sentidos. Mas Merleau-Ponty concebe um ser simbiótico, que não pode ser apenas um, mas sim dual. O sujeito é um ser no mundo.

(...) Convém que reencontremos a origem do objeto no coração mesmo de nossa experiência, que descrevamos a aparição do ser e que compreendamos como paradoxalmente há para nós o em si. (...) E como a gênese do corpo objetivo não é senão um momento na constituição do objeto, o corpo, ao se retirar do mundo objetivo, conduzirá os fios intencionais que o religam a seu redor e finalmente revelar-nos-á o sujeito que percebe como o mundo percebido. (MERLEAU-PONTY, 1971, pág. 84-85)

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2.6 A Fantasia no Mundo e no Ser

“Em meu mundo, em algum ponto, nós cometemos um grande erro, Morrolam.” Eu disse finalmente enquanto nos sentávamos em volta do fogo. “Escolhemos a habilidade de fazer coisas impossíveis: ir à lua, curar as doenças, mandar fotos pelo mundo todo. Mas perdemos alguma coisa: uma certa graça, uma certa elegância de viver. Agora, dirigimos automotivos que parecem caixas de lata até o serviço, e trabalhamos em caixas ainda maiores, a maior parte do tempo de olho fixo em caixas minúsculas que nos dizem o que fazer.” (MICHAEL PONDSMITH – Castelo Falkenstein)

Na obra de Merleau-Ponty, encontramos várias vezes o nome de algum artista, sendo ele, ou um escritor ou um pintor. Matisse, Balzac, Cézanne, Malraux, Klee, Mallarmé,

Leonardo da Vinci, Stendhal, Vermeer... são alguns exemplos citados por ele, que encontrei

em minha leitura. Para Merleau-Ponty, a filosofia tem uma certa aproximação com as artes. O oficio do filósofo se assemelha ao oficio do pintor e escritor, que visualizam o mundo de forma complexa, de forma sagrada, mutante, em um movimento eterno. O que a filosofia deve procurar é essa capacidade de se admirar constantemente, infinitamente com o mundo, de abrir-se para um dialogo ininterrupto com os objetos.

A visão do artista não é estática, pois constantemente ele visualiza sua obra inacabada. Mesmo quando ele entrega finalmente sua arte, o artista não concebe sua criação como finalizada, mas sempre em mutação, diferenciando a sua significação para o mundo. Essa visualização da arte se aproxima da linguagem, que não é estática.

(...) É assim que [é] o mundo desde que ele o viu, suas primeiras tentativas e todo o passado da pintura, criam para o pintor uma tradição, quer dizer, diz Husserl, o esquecimento das origens, o dever de recomeçar de outra maneira e de dar ao passado, não uma sobrevivência que é a forma hipócrita do esquecimento, mas a eficácia da retomada ou da repetição que é a forma nobre da memória. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 80)

O artista produz uma arte para colocar-se junto a uma história humana, assim mantendo sua própria existência neste mundo de relações fenomênicas e históricas. Nós poderíamos dizer que o artista busca se inserir no panteão artístico da humanidade, onde a história o contém completamente. Mas não é apenas esse fator que está enredado neste esquema. O artista também busca resgatar a sua história, assim como a história da pintura, todo um passado humano. Quando o pintor traça o primeiro risco no seu quadro, não está levando apenas seu ser com ele, mas também Van Gogh, Magrite, Monet, Michelangelo. Ele se sobressai, pois todo um conjunto de pintores participam de sua obra. A obra Robur, o

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Conquistador, se coloca junto à tradição dos escritores enquanto Julio Verne a está

escrevendo, e após a passagem do tempo, a cultura humana é que determina se ela poderá ser vista como clássico neste meio histórico humano.

Existe um mundo produzido pelo artista, onde este ser do escritor ou pintor dá seus significados, tomando como guia o mundo fenomênico já existente, e ao qual o expectador e o criador estão inseridos. Quando Robur está no escaler de seu Albatroz, concebemos essa grande máquina que passa pelas palavras e sucita em nós a visão dela, sentimos o vento sobre nosso rosto, estamos juntos a ele, visualizando o mundo aos nossos pés.

Mas também tem outro mundo que participo, em que tanto eu quanto Verne estamos inseridos. Este mundo que participamos em conjunto é esse mundo fenomênico, o mundo em que estão os corpos. Com isso, produzimos uma linguagem na comunicação onde possamos tocar outros, encarnar outros.

Nós produzimos mundos enquanto estamos lendo uma obra literária. Damos significados, relacionamos a linguagem com um mundo que está tanto para os sonhos e devaneios de nossa mente quanto para esse mundo sensível. Este novo mundo que crio é regido pela temporalidade, assim como nosso mundo fenomênico, pois a língua não é uma complexidade desligada do mundo, ela está aqui, traspassando os seres e dando significações aos objetos.

No discurso acadêmico, não somos conquistados pela palavra, pois elas apenas descrevem uma ciência exata, um mundo das coisas. Já o contrário é visto na literatura. O escritor produz um mundo que tem um pano de fundo enredado, um cenário onde os caminhos são entrecruzados. Esse pano se mostra pelos sentidos no conjunto das palavras, que ainda mantém sua ligação com a cultura humana. O escritor nos conquista, e somos tomados de nosso sono da realidade para cair em um mundo novo proporcionado por ele.

(...) o conhecimento linguajeiro suscita nas significações dadas transformações que só ali eram contidas como a literatura francesa é contida na língua francesa, ou as obras futuras de um escritor em seu estilo – e definir como a própria função da palavra seu poder de dizer no total mais do que diz palavra por palavra, e se ultrapassar ela mesma, que se trate de lançar outrem em direção do que sei e que ainda não compreendeu, ou de levar a mim mesmo em direção do que vou compreender. (MERLEAU-PONTY, 1974, pág. 139)

Esse conhecimento linguajeiro é um saber do contador, um saber que está em passagem, vivo na língua e na linguagem. É a pulsação que sentimos através das palavras, um sentir que não sabemos de onde vem. Se pegamos uma obra da literatura, ele não mostra seu

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