• Nenhum resultado encontrado

4 A criação de sentidos nos trabalhos da Anti Status Quo Cia de Dança

4.3 Fase reflexão temática

Imagem 4 – Espetáculo Nada Pessoal (1998)

Bailarinos: Sebastian Gonzalez, Anja Kursawe, Daniela Couto e Cleani Marques. Foto: Mila Petrillo.

O espetáculo Nada Pessoal (ver imagem 4) foi o primeiro da Companhia em que busquei criar sentidos na elaboração de uma dramaturgia a partir do estudo de uma única temática. Composto como um todo e não mais como uma colagem de coreografias com vários temas e interesses, cada movimento, nessa criação, passou a ter um porquê, uma razão dramatúrgica que desdobrava o tema em várias discussões. O cenário, os figurinos, a trilha sonora e os objetos de cena estavam a serviço de uma espécie de lógica, buscando criar sentidos a partir de uma perspectiva, de uma reflexão pessoal sobre um tema, almejando a criação de um discurso.

O espetáculo foi criado como uma reflexão sobre a questão da construção da identidade sob a influência da comunicação de massa e da opressão da sociedade sobre o indivíduo. A montagem abordava a complexidade das relações humanas no mundo contemporâneo. O foco da pesquisa coreográfica estava na mecanização do corpo por meio do esmaecimento dos sentidos, na busca pela realização pessoal calcada na ascensão social e nos valores impostos pelos meios de comunicação de massa. A reflexão sobre tal temática gerou pensamentos sobre as possíveis consequências desse processo social: o surgimento do individualismo como forma de sobrevivência, a opressão da individualidade, o desafio de “ser” diante do medo da quebra de padrões estabelecidos pela sociedade e a solidão gerada pela falta de interação profunda com o outro.

Durante o processo de criação também foi a primeira vez que a Companhia trabalhou com discussões coletivas sobre o tema. Houve uma tentativa de ter uma maior participação dos bailarinos na criação de uma dramaturgia, mas ainda de forma muito limitada, em consequência da falta de experiência com essa metodologia. Os maiores desafios encontrados na época, em relação a essa forma de trabalhar, foram estimular e fazer os bailarinos compreenderem a participação no processo criativo como sujeitos que poderiam expressar suas opiniões, pensar sobre o tema, mesmo que isso significasse uma contraposição às ideias do diretor e do coreógrafo. E, assim, assumirem outra função além de executores da coreografia, como criadores e propositores. A ampliação de seus papéis no processo criativo causava certo desconforto. Os bailarinos ao serem questionados sobre as questões do tema reagiam com desconfiança, como se lhes pedisse para fazer algo que era exclusivamente da função do coreógrafo/diretor. É importante considerar que nessa época tal forma de operar na criação não era ainda um modo de fazer claro e amplamente divulgado. O trabalho colaborativo na dança estava começando a ser disseminado e ainda era novo para todos nós.

Para evitar conflitos, alguns retrocessos foram necessários e a reflexão sobre o assunto acabou sendo basicamente construída por mim. Contudo, a partir de analogias sobre o tema e sobre metáforas corporais, eu criava estratégias de improvisação em que as respostas físicas dos bailarinos eram fundamentais para o desenvolvimento do vocabulário de movimento. O trabalho prático me ajudava a aprofundar minhas análises e as associações com os estudos que fazia individualmente a partir das reflexões filosóficas e críticas sobre a temática. Houve um aprofundamento na composição com movimentos e sequências criados pelos bailarinos.

O vocabulário de movimento da coreografia foi construído a partir de gestos cotidianos e de investigações corporais que surgiam das abstrações do tema como conceitos de manipulação, restrição, isolamento, repressão, autonomia e identidade. A investigação

também explorou a relação do espaço como contexto da cena e o espaço entre os intérpretes em cena, com o uso de distância e proximidade, tensão espacial e toque das partes dos corpos.

O figurino foi composto por calça jeans, tênis e camisetas de algodão (t-shirts) e foi criado a partir de uma pesquisa sobre a roupa que poderia ser considerada a mais massificada e difundida na cultura ocidental, em uma tentativa de traduzir no figurino as ideias advindas da reflexão sobre o tema. O cenário era um painel de tecido com fotos 3x4 pretas e brancas ampliadas, dos bailarinos e de seus familiares, como aquelas usadas em carteiras de identidade no Brasil. O painel com as fotos podia ser usado de várias maneiras e assim era revelado gradualmente durante o espetáculo, até servir de fundo em parte da coreografia, de acordo com cada cena.

Foi também a primeira vez que a Companhia trabalhou com música especialmente criada para o espetáculo, o que adicionou uma nova dimensão ao processo de pesquisa para a criação de sentidos. A trilha, composta por Cláudio Vinícius, foi baseada nas coreografias, como recurso para vincular melhor as atmosferas e a emoção pretendida para cada cena. A relação com a música se deu de inúmeras maneiras e não mais só como organização rítmica. A música foi usada como contraponto, justaposição e reiteração das atmosferas criadas pelo movimento e pensada para evocar as reflexões na associação com o tema. Em Nada Pessoal, a pesquisa de movimento também sofreu influências da música, mas não era mais feita somente a partir de estímulos que vinham dela, mas da reflexão sobre o tema. A criação de uma dramaturgia e da trilha sonora original para o espetáculo foram as principais características que fez de Nada Pessoal outro marco na história da produção artística da Companhia, pois houve uma mudança significativa nos procedimentos de criação. Como afirma Cecília Salles (2008, p. 126): “[...] o projeto da obra em construção contamina os instrumentos da linguagem[...]”.

A partir desse espetáculo, o trabalho de criação da trilha sonora na relação com a coreografia e a pesquisa crítica sobre um tema como mote para a tessitura dramatúrgica surgem como alguns dos elementos fundamentais da pesquisa cênica do grupo. Reconheço, hoje, que, a partir de Nada Pessoal, começo a trabalhar com a necessidade de dizer algo. Por isso, o trabalho exigiu a busca pela criação de sentidos de forma mais consciente, além de uma postura crítica, as quais pudessem servir a um propósito, regendo todas as escolhas para alcançar uma concepção do espetáculo. Ressalto que nos outros espetáculos havia a articulação dos sentidos, porém de forma diferente da feita em Nada Pessoal, em que todas as escolhas e transformações foram regidas por uma reflexão crítica sobre um tema e não mais a partir de uma exploração lúdica, fantasiosa e formal dos elementos coreográficos.

É importante relembrar que Nada Pessoal começou a ser criado em Londres, no Laban Centre, como parte da disciplina “Produção”, que estudava iluminação, figurino e cenário para a dança. Foi a primeira criação depois do contato com a teoria de Laban, a Release Technique e a Educação Somática.

4.4 Fase estudo de linguagens