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3 Marcas de uma trajetória, aquilo que te leva aos caminhos

3.5 A marca de Laban

Logo em seguida, em 1996, uma oportunidade marcou profundamente a minha formação e a trajetória como criadora. Recebi uma bolsa do programa Apartes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação, para passar dois anos especializando-me em Coreografia e Coreologia no Laban Centre, em Londres, na Inglaterra, onde recebi o Diploma in Dance Studies e o Independent Studies Certificate. O encontro com a Análise Laban de Movimento,55

com a “ciência da dança” (KATZ in MOMMENSOHN; PETRELLA, 2006, p. 58) desenvolvida pelo bailarino, coreógrafo, estudioso do movimento Rudolf Laban (1879-1958), modifica meu entendimento de corpo e movimento. É a partir desse momento que “perco a inocência” e começo a desenvolver uma percepção mais analítica e crítica, passando a compreender o trabalho como bailarina e o de criação em dança como um processo de tecer relações e sentidos.

Vale relatar que essa experiência com as ideias de Laban me colocou em contato com o que naqueles tempos ainda estava em um nível muito inconsciente para mim. A coerência que encontrei entre o meu sentir e o pensar contidos na proposição de Rudolf Laban fez parecer que o que estava sendo revelado de forma sistematizada e elucidadora, era paradoxalmente, muito novo e ao mesmo tempo conhecido para mim. De alguma maneira, pela experiência do corpo e da cognição, eu já sabia o que estava estudando. Os estudos de Laban iluminavam a consciência daquilo que eu vivenciava na dança, aguçando minha percepção. Como Greiner afirma:

Antes de qualquer sistematização de modelo estético, a pesquisa de Laban procurou encontrar sentido no corpo vivo, o entendimento do movimento como primeira instância da percepção e da consciência, como é evidenciado mais tarde por estudos nas áreas da filosofia e das ciências cognitivas. (In MOMMENSOHN; PETRELLA, 2006, p. 80).

O saber desenvolvido em sua pesquisa sempre foi amplamente reconhecido na sua constituição teórico-prática, como veremos mais adiante neste texto. Os estudos da Eukinética56 e da Corêutica57 de Laban, e seus principais conceitos como os quatro fatores do movimento: espaço, tempo, energia e peso e suas relações na dança, revelam do que é feito o

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O que hoje chamamos de Sistema Laban ou Análise Laban de Movimento ( até os anos 1980 era chamado de sistema Effort Shape (Expressividade-Forma) consiste, de fato, em uma série de desenvolvimentos realizados por profissionais das mais variadas localidades, atualizados e divulgados em congressos e publicações periódicas (FERNANDES, 2002, p. 24).

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“Eukinética é o estudo dos aspectos qualitativos do movimento. É o estudo do ritmo e das dinâmicas do movimento. É o estudo das qualidades expressivas do movimento. Eukinética é parte integrante da teoria dos esforços.” (RENGEL, 2001, p. 69).

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“Corêutica é o estudo da organização espacial dos movimentos que Laban desenvolveu como sendo seu sistema de harmonia espacial.” (RENGEL, 2001, p.42) .

movimento e o que é tornado visível com o corpo e o movimento das intenções que o produzem, conectando o dentro e o fora. Como Christine Greiner reflete:

No mapeamento desenhado por este pensador, o movimento é entendido por meio do que se vê projetado no espaço e daquilo que não se vê, os quais se apresentam como nexos de sentido nas dinâmicas e nas representações das complexidades que envolvem o processo de criação. (IBIDEM).

E, dessa forma, Laban permite abordar a forma e o conteúdo da dança na prática e na teoria, percebendo a dança em relação a vários outros saberes como a Física, a Semiótica, a Filosofia, a Antropologia e as Ciências Cognitivas. E isso é possível porque os estudos do movimento de Laban engendram conceitos de corpo que rompem com a dicotomia corpo/mente. Suas investigações teórico-práticas baseadas na observação (percepção), na experimentação e na análise promovem o pensar-sentindo. A Análise Laban de Movimento fornece um quadro teórico, uma espécie de gramática na qual se pode pensar, analisar, ler e falar de movimento.

A partir disso, a pesquisa de movimento e a composição coreográfica em meu trabalho dão um salto qualitativo. Tornava-se possível teorizar e falar sobre como acontece o movimento a partir de sua nomenclatura, metodologia de observação e análise do movimento em diversos contextos que não se restringiam ao artístico, incluindo, assim, além da dança e do teatro, o movimento corporal do nosso comportamento no cotidiano, em rituais, no trabalho etc. Essas habilidades adquiridas com o Sistema Laban ampliaram minha capacidade analítica e de conexões com o mundo, proporcionando um aprofundamento e a ampliação da minha pesquisa artística, principalmente quanto à produção de movimento. Inaugura-se em mim a noção de que para pensar a dança é necessário entender que “pensar foi sempre pensar/sentir, corpo e cérebro agindo num continuum, sem trações dualistas”, como Greiner (IBIDEM, p. 81) explicita quando fala da importância e da complexidade do tipo de pensamento que a pesquisa de Laban apresenta.

Eu não tinha, ainda naquele tempo, como dimensionar a revolução que o pensamento desse sistema de conhecimento provocaria em minha concepção de dança, de corpo e de vida. Hoje percebo que potencializou o meu interesse pela linguagem da dança e pelo campo da criação. Meu pensar-fazer dança passa, assim, para outro estágio de percepção e de consciência. A teoria de Laban ampliou minha criação em dança pelas possibilidades transdisciplinares e intersemióticas. Mostrou-me a importância de enxergar mais explicitamente o meu próprio interesse pela arte e os porquês de cada elemento formante na criação, impulsionando a busca por um aprofundamento do estudo sobre corpo, percepção, processo criativo e construção de nexos de sentido.

O contato e o aprofundamento dos estudos sobre a Análise Laban de Movimento me fizeram questionar todo o meu referencial, exigindo uma desconstrução e um rearranjo de todo o conhecimento adquirido até aquele momento, instaurando uma consciência crítica e um interesse por compreender que pressupostos delimitavam a minha percepção e, consequentemente, o meu fazer dança. Como Bachelard (1996, p. 20) diz: “Com efeito, as crises de crescimento do pensamento implicam uma reorganização total do sistema de saber”. Busco, desde então, um entendimento de dança que tem no campo relacional uma das suas chaves de construção do saber, procurando rejeitar noções dualistas como corpo/mente, sentir/pensar, dentro/fora, forma/conteúdo, que ainda insistem em se manifestar em meu pensamento e em minha percepção.

A compreensão de que é com o corpo que adquirimos e ao mesmo tempo produzimos conhecimento é um dos fundamentos dessa nova percepção. Se entendemos a arte da dança como processo e produto cultural, à luz dos pressupostos da antropologia do corpo de John Blacking (1977, p. 3), e ,assim, como uma externalização e uma extensão do corpo em um específico contexto social, temos que considerar que o corpo pode, ao mesmo tempo, ser restringido pela cultura, inspirado por ela e também ser seu inventor. Desta forma, o que produzimos como conhecimento a respeito do corpo é produto do que entendemos sobre corpo, o que vai restringir nossa percepção e também inspirar outras formas de pensar o corpo. As “noções de corpo e movimento podem influenciar o desenvolvimento do domínio do movimento, sua expressividade e a capacidade de criar” (LARA, 2012, p. 2).

O meu entendimento de dança contemporânea se modificou com Laban e hoje se identifica com a definição que Fabiana Dultra Britto propõe (2011):

[...] entendimento da dança como ação cognitiva do corpo que fundamenta a definição que proponho para dança contemporânea: um modo de composição não-programático, cujas regras não são estabelecidas previamente ao processo criativo, como um modelo geral ou “programa” estético, mas são elas próprias resultantes da experiência de problematização espaço-temporal a que o corpo se submete em busca de sínteses transitórias para as hipóteses de contexto que deseja testar e compartilhar. E o que chamamos de composição dramatúrgica em dança é um processo de manipulação dessas sínteses para configurar estruturas de ação que baseadas na exploração de ‘estados’ corporais promovem no espectador experiências perceptivas não usuais do espaço-tempo e, assim, sugerem novos nexos de sentido para seu próprio cotidiano. (p. 189).

Abriu-se, assim, um campo de estudos e de investigações que se coadunam mais com as recentes descobertas no campo da ciência e da arte, produzindo um pensar e um fazer mais coerentes entre si, e com um novo paradigma que parece se formar na atualidade, o de

entender a vida e o mundo como um sistema complexo sempre em processo e em rede, em um campo de inúmeras relações, que não tem fim, é dinâmico e imprevisível.

Por todas essas razões, hoje, a investigação sobre os modos de operação da criação de sentidos na dança se tornou central nas minhas pesquisas como criadora na busca pela construção de uma poética própria. Além disso, as noções em torno das conceituações sobre a criação de sentido na dança são intrínsecas ao meu entendimento do que é dança e, obviamente, resvalam em todas as atividades que exerço na dança.

Londres é um capítulo à parte na minha formação. Cidade vitrine das produções artísticas da Europa e também do mundo, a experiência de viver nessa cidade enquanto eu era nutrida pelas ideias de Laban me permitiu, munida pelas “lentes” de seu sistema de conhecimento, “olhar-experimentar” de maneira diferenciada os espetáculos e as obras artísticas a que tive acesso. Era como se eu estivesse de alguma forma mais permeável e, assim, mais sensível às provocações estéticas, pois a minha percepção e a capacidade de leitura estavam ampliadas. Apreciar de forma analítica e crítica espetáculos como os de Pina Baush, Robert Wilson, Willian Forsythe, Julien Hamilton e os trabalhos de companhias como as De Cumplicité, DV8, Rosemary Butcher, Magui Marin, Javier de Frutos, Philippe DeCouflé, Sankai Juku, La La La Human Steps, além do trabalho de muitos outros importantes grupos e artistas que despontavam ou faziam parte da cena da dança e do teatro contemporâneos mundial, foi uma experiência de aprendizado reveladora de inúmeras formas de fazer dança e ver o mundo, instaurando mudanças profundas na minha forma de me relacionar com o mundo. Depois de Laban, passei a descobrir as obras de arte como construção de mundos que, em suas diferentes configurações, podiam revelar em mim aspectos do meu próprio mundo que eu sequer tinha consciência de existirem. Também podiam me apresentar mundos que eu nem sequer conseguia imaginar. Apreciar e fazer dança (nos dois sentidos, como criadora e intérprete e também como público) passou a ser uma forma de acessar e de construir conhecimento de uma maneira mais consciente.