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3 Marcas de uma trajetória, aquilo que te leva aos caminhos

3.2 Sobre aquilo que sempre se soube – marcas de um início

A dança dá indícios de ter um papel significativo em minha forma de expressão já na infância. Retrospectivamente, percebo que minha ligação com a dança foi sempre motivada por um grande interesse pelo campo da criação. Antes mesmo dos 9 anos de idade – quando

começou a minha formação em dança em uma escola de balé clássico em Brasília32

–, eu já passava horas dançando na frente da televisão, ou sozinha, com ou mesmo sem música, segundo relatos de parentes e de amigos da família. Na minha memória, mais do que essa recordação, o que ficou marcado foi a sensação de prazer de inventar e estar em movimento. Não havia regras para eu me mover. Eu podia imitar, modificar e criar movimentos como quisesse. Mover era uma brincadeira.

Recordo-me bem de um sentimento de completude e de um total envolvimento que me mantinha interessada por um longo período em um mundo próprio de sensações, pensamentos e imagens. Dançar era como viajar para dentro de mim mesma. Reconheço este sentimento ainda hoje quando improviso e, de alguma forma, acesso essa sensação primordial. De acordo com Chaplin e Blom, no livro The Intimate Act of Choreography,33

a “improvisação é uma maneira de tocar o fluxo do subconsciente sem censura intelectual, permitindo, espontaneamente e simultaneamente, explorar, criar e performar (1989, p. 6).”34

Eu, então, poderia dizer, já improvisava, explorando, criando e “performando” danças naquela época. Minha relação com a improvisação é fundamental para a minha formação como criadora. Se o mais básico significado de coreografia está associado à “estrutura de composição dos movimentos do corpo, no tempo e no espaço” (TRINDADE, 2011, p. 1), para a criação coreográfica, propriamente dita, “foi só um pulo”. Não resisto à metáfora relacionada ao movimento para falar de uma transformação que foi tão natural quanto pequena na minha história. Dançar e coreografar nunca foram processos estanques para mim. Além de improvisar, quando eu me interessava por algo que tinha feito, eu tentava repetir para fixar e mostrar para alguém. Assim, começava a colecionar e a ordenar os movimentos em sequências. Apenas mais tarde descobri que podia chamar de “coreografia” aquilo que estava fazendo.

Também reconheço que o meu particular interesse pela criação e pela composição em dança pode estar relacionado ao fascínio despertado pela específica linguagem dos

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A Academia de Ballet Ofélia Corvello funcionava na W3 Sul, na altura da 503, em Brasília-DF. Naqueles tempos, para poder fazer aulas de jazz, algumas academias em Brasília exigiam do aluno um mínimo de três anos de ballet clássico, motivo pelo qual ingressei nas aulas de balé. O interesse pelo jazz já apontava uma afinidade por estilos de dança que apresentavam uma maior liberdade quanto ao vocabulário de movimento, e, assim , pela invenção.

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“O ato íntimo da coreografia.” (Livre tradução). 34

“Improvisation is a way of tapping the subconscious without intellectual censorship, allowing spontaneous and simultaneous exploring, creating and performing.” (CHAPLIN, BLOM, 1989, p. 6). (Livre tradução).

videoclipes, que começaram a ser bastante populares nos anos 1980,35

como é o caso de Thriller (1982), de Michael Jackson, em que a encenação/ilustração de uma música explorava movimentos na relação com o ritmo, com a letra e com a atmosfera da música, e também com os cenários, com a iluminação, com os figurinos e com objetos, ou seja, na composição cênica da relação desses elementos. Na escola, meus trabalhos eram sempre “encenados corporalmente”.

Aos 13 anos, estimulada pela professora de jazz Sylmara Salviano,36

criei minha primeira coreografia de palco. Salviano incentivava seus alunos a criar coreografias para compor as apresentações de final de ano. A oportunidade marcou o meu percurso porque pude colocar em prática no palco, espaço legitimado como “mais artístico”, o que já havia descoberto, mas ainda se restringia ao âmbito social das festas e das apresentações de escola. O espaço oferecido por Salviano foi fundamental para tornar minha vontade de criar em dança consciente para mim mesma. A prática fortaleceu o gosto e o interesse por coreografar. A partir desse momento, minha participação em festivais de artes do colégio,37

com coreografias e peças que tinham no trabalho com o corpo e no movimento o interesse principal, tornou-se uma constante e comecei, também, a investir na minha formação como bailarina, com o claro desejo de aperfeiçoamento.

Aos 17 anos, a partir da necessidade de ter mais espaço e tempo para experimentar movimentos e criar danças, convidei alguns bailarinos, a maioria colegas do Ballet Fernando de Azevedo,38 e, juntos, fundamos a Anti Status Quo Cia. de Dança.39

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Uma investigação iconográfica sobre cultura pop nos anos 1980 no Brasil e suas influências ou diálogos com a criação em dança atual merecia ser feita para poder compreender possíveis contágios e influências estéticas nas histórias e poéticas de uma geração de criadores contemporâneos que começaram seu envolvimento com a dança expostos, nos seus 10, 11 anos de idade, às coreografias e às linguagens dos videoclipes de astros pops como Michael Jackson e Madonna. Mas isso seria outra pesquisa.

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Sylmara Salviano, formada em Educação Física, ministrava aulas de jazz na Academia Fênix, localizada na W3 Sul, na altura da 502, em Brasília-DF. Parte de suas aulas era dedicada à montagem de coreografias para a realização de espetáculos de final de ano.

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Uma das peças criadas em conjunto com colegas foi premiada no festival durante dois anos consecutivos (1995 e 1996), tinha o nome de Coral Corporal. Na época, eu cursava o 2º ano do 2º grau (hoje chamado de Ensino Médio) no Colégio Dom Bosco, em Brasília-DF.

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O Ballet Fernando de Azevedo era dirigido pelo próprio professor e coreógrafo Fernando de Azevedo, que trabalhou com Dulcina de Moraes na Faculdade de Artes idealizada e criada por ela. Azevedo realizava seus trabalhos artísticos com independência em relação às atividades de formação da faculdade. As aulas do seu curso livre de dança moderna eram realizadas em uma das salas do edifício que abriga a faculdade até os dias de hoje. Os ensaios eram realizados (1988) no Teatro Dulcina, localizado também no mesmo prédio, no Conic (zona central de Brasília).

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O grupo fundador da Anti Status Quo Companhia de Dança era formado pelas bailarinas: Alba Valéria, Helena Alpino, Patrícia Mendes, Patrícia Vidal, Sílvia Costa e Simone Alves. A parceria com Sílvia Costa foi importante para o meu desenvolvimento no campo da criação. Para mais informações sobre a criação da Anti Status Quo Companhia de Dança ver: LARA, 2012.

Ainda muito jovem, eu não pensava e nem almejava tornar o grupo uma companhia profissional. Mas foi nesse período que a dança começou a se tornar uma “coisa séria”. A também chamada A. S. Q. Cia. de Dança40

se tornou o principal espaço onde desenvolvo minha carreira como coreógrafa/criadora e artista da dança. Minha trajetória como criadora se confunde com a estória do grupo que em dezembro de 2013 completou 25 anos de trabalho ininterrupto de criações. Criei e dirigi nove espetáculos para a A. S. Q., além de realizar pesquisas e trabalhos de “fotoperformances”41

, videodanças e intervenções urbanas.