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Fase da responsabilidade objetiva

3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

3.2 O ESTADO: DA IRRESPONSABILIDADE À ASSUNÇÃO DO RISCO

3.2.4 Fase da responsabilidade objetiva

A responsabilidade civil subjetiva era ótima na regulamentação das relações clássicas entre particulares, nas quais existia relativa paridade de forças. Todavia, a mesma sorte não encontrava quando a situação era transposta para a lógica do Poder Público, na qual se fazia presente um Estado cada vez mais forte e presente nos assuntos particulares. A despeito de todo o esforço despendido em uma tentativa de adaptação, as bases doutrinárias clássicas demonstraram-se insuficientes e fracassaram ao tentar estabelecer limites para o atuar estatal e garantir os direitos individuais.

A ruptura com os paradigmas até então assentes tornava-se imperiosa necessidade. E, ao que se pôs de lado a responsabilidade civil subjetiva, tomou corpo a teoria objetiva.

O fundamento para o dever de responder do Estado deixava de se situar em um elemento anímico qualificador da conduta – isto é, na culpa ou no dolo –, passando a embasar-se no risco criado. Informava-se que o Poder Público deveria ser responsável por todos os riscos decorrentes de suas atividades, com o que se imprimia um maior rigor no tratamento, justificado na disparidade de forças entre Estado e indivíduos.

Punha-se, assim, a teoria do risco administrativo, segundo a qual o Poder Público estaria obrigado a reparar todo e qualquer dano cuja causa pudesse ser identificada em uma conduta estatal. Bastaria, ao indivíduo, comprovar dano e nexo causal para que fizesse jus a uma indenização; despiciendos os questionamentos acerca de culpa, dolo, ou quaisquer outros aspectos anímicos da conduta. Como indica Dirley Júnior:

Por esta teoria a idéia de culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre o comportamento estatal (fato do serviço) e o dano sofrido pelo administrado, sem se cogitar do serviço, tampouco da culpa do agente público. Aqui é indiferente indagar-se se o serviço funcionou, se funcionou bem ou mal, de forma rápida ou demorada. Não se exige, portanto, o questionamento acerca da culpa ou dolo do agente, da licitude ou ilicitude do comportamento, do bom ou mau funcionamento do serviço. Evidenciado o nexo de causalidade entre o comportamento estatal e o dano a terceiro, o Estado responde.142

Assim, efetivado o dano, a única alternativa de defesa do Estado seria demonstrar que não fora ele o seu efetivo causador, valendo-se de uma das excludentes

142 CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Administrativo. 7 ed. rev. amp. atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p.325-326.

de responsabilidade (fato exclusivo da vítima, fato de terceiro, caso fortuito e força maior). Os alicerces da tese são nobres: apregoando a solidariedade social e a igualdade de todos em face da repartição dos ônus públicos, procura-se coletivizar os prejuízos e eliminar ao máximo as hipóteses de irresponsabilidade do ente público. Contudo, muito embora isto resolva os problemas dos particulares, individualmente considerados, assegurando-os em face de todas as intempéries, deixa o Estado em situação bastante desconfortável, uma vez que, se não bem ponderada, a tese é capaz de lhe transferir a responsabilidade por praticamente todos os riscos sociais.

O problema de definir limites concretos à responsabilidade estatal é de grande importância, mormente em face de Carta Política de nítida feição social, como a do Brasil, cujos deveres estatais consignados assumem tamanho vulto que, abstratamente, correlacionar-se-iam com qualquer dano. A Constituição do Brasil, em seu art. 3º, por exemplo, impõe ao Estado uma série de objetivos abstratos, e, em certa medida, utópicos, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a promoção do bem de todos. Assegura, em outros dispositivos, série de direitos individuais, cuja garantia e dever de satisfação, em ultima ratio, são também tarefa do Estado.

Em suma, todos os insucessos individuais poderiam ser correlacionados ao não cumprimento de um suposto dever estatal; a falta de moradia, a carência de emprego, um assalto, todos eles poderiam ter seus resultados danosos imputados ao Estado, aduzindo que ele falhou na efetivação dos preceitos constitucionais.

Por óbvio, não se pode conferir dimensão tão ampla à tese da responsabilidade estatal, sob pena de inviabilizar o Estado e a ordem constitucional. Eleitos apenas o dano e o nexo causal como filtros para a imputação da responsabilidade estatal, independente de quaisquer outras considerações, como resolver os casos em que o Estado, para cumprir seus deveres, tem de tratar os cidadãos de forma desigual? Como pretender, por exemplo, que o Estado distribua renda se os prejudicados podem, em tese, exigir indenização? Como viabilizar a adoção de políticas públicas afirmativas em favor de segmentos sociais alijados se os não favorecidos podem alegar um dano a si?

No fito de tentar delimitar os contornos conferidos à responsabilidade estatal é que surgem tentativas de reintroduzir, ainda que por meio de subterfúgios, a aferição do elemento anímico no juízo de imputação da responsabilidade

estatal. É o que ocorre, por exemplo, com a proposta de Hely Lopes Meirelles, que pretende distinguir entre teoria do risco integral e teoria do risco administrativo143

O critério distintivo entre as teorias do risco administrativo e do risco integral é, porém, de todo fantasioso e insubsistente. Não há a indicação de qualquer elemento substancial que as diferencie. Muito pelo contrário, tanto os fundamentos (solidariedade social e a distribuição eqüitativa dos ônus públicos), quanto os filtros de reparação (dano e nexo causal) de que se valem são exatamente os mesmos. O pretenso contraponto, firmado no suposto de que somente a teoria do risco administrativo admitiria as excludentes como matéria de defesa, é incoerente. Parte da equivocada percepção de que tais causas relacionar-se-iam à culpabilidade, quando, em rigor, inserem-se no problema da definição do nexo causal, como, aliás, bem evidencia a teoria do dano direto e imediato.

. Sustenta que, esta última, adotada pelo sistema jurídico brasileiro, não se teria responsabilização objetiva plena, mas presunção de culpa do Estado diante dos danos, a qual poderia ser elidida pelo recurso às excludentes de responsabilidade. Somente em face da teoria do risco integral, aceita apenas em situações excepcionais da ordem jurídica pátria, é que se teria a efetiva imputação objetiva do dever de reparação do Estado, pois, diante destes casos, o ente público sequer poderia alegar em sua defesa o fato exclusivo da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito ou a força maior.

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deslocada a questão para o plano da causalidade, qualquer que seja a qualificação que se pretenda atribuir ao risco como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado – risco integral, risco administrativo, risco-proveito –, aos tribunais se permite a exclusão ou atenuação daquela responsabilidade quando fatores outros, voluntários ou não, tiverem prevalecido na causação do dano, provocando o rompimento do nexo de causalidade, ou apenas concorrendo como causa na verificação do dano injusto.

E, como bem adverte Yussef Said Cahali,

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Em outros termos, a apreciação das causas excludentes de responsabilidade simplesmente não pode ser afastada, porquanto, antes de constituírem matéria de defesa, remetem à própria aferição do vínculo de causalidade entre a conduta e o dano analisados. Em última instância, mesmo que o julgador resistisse a apoiar sua decisão sob uma das excludentes, teria de afastar a responsabilidade ante a impossibilidade de

143 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 1992.

144 A teoria do dano direto e imediato e a natureza das excludentes de responsabilidade foram abordadas, respectivamente, nos tópicos 3.1.3.3 e 3.1.3.4, ao qual se remete o leitor que deseje maior aprofundamento. 145 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3 ed. amp. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p.41.

reconhecer o ato indicado como causa para o dano.

A distinção entre as teorias do risco apenas subsistiria se à teoria do risco integral fosse conferida uma natureza jurídica de seguro ex lege, retirando-lhe da égide da responsabilidade civil. Em tal hipótese, o fundamento para a reparação residiria simplesmente no dano e na necessidade de repará-lo. O elemento do nexo de causalidade, neste caso, seria extremamente atenuado, se não abandonado.

Se fossem estes os contornos da teoria do risco integral, maiores seriam as razões para refutar a sua aplicação, pois, como aduz Sergio Cavalieri Filho, a opção conduziria a situações de abuso e de iniqüidade, albergando sob o manto da responsabilidade estatal até casos em que o nexo causal fosse de extrema fragilidade, como a hipótese do dano causado pela própria vítima.146