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Identificação entre lei e soberania

4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATOS LEGISLATIVOS

4.1 ÓBICES À RESPONSABILIDADE DO ESTADO LEGISLADOR

4.1.1 Identificação entre lei e soberania

. Diante disto, para contextualizar o problema, tem-se de, em um primeiro plano, identificar e analisar criticamente os principais argumentos postos em favor da irresponsabilidade legiferante do Estado, para depurar o que têm de relevante e o que é imprestável.

Como informa Maria Emília Mendes Alcântara, o mais antigo e comum argumento em favor da plena irresponsabilidade do Estado pela edição de leis põe-se no sentido de identificar a atividade legiferante como a maior expressão da soberania estatal171

A consagração do Estado de Direito, principalmente após terem sido incorporados os ideais democráticos, pôs por terra o argumento. Afirmado o constitucionalismo, a ordem fundante passa a não somente demarcar os limites para o exercício da soberania, mas a também resguardar direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. A responsabilização do Estado pelos danos indevidamente causados aos

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A tese firma-se em duplo equívoco. O primeiro deles reside no suposto, típico dos primeiros tempos do Estado, de que a soberania representa poder supremo, absoluto, ilimitado e incontestável. O argumento servia para legitimar a centralização política, levada a cabo pelo tanto pelo Estado Absolutista, quanto pelo primeiro formato do Estado Liberal. No fito de afastar qualquer oposição, afastava-se completa e peremptoriamente qualquer possibilidade de responsabilização do ente público, fosse em virtude da crença na infalibilidade dos governantes (the king can do no wrong), fosse em atenção ao mito da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, a determinar que os particulares se resignassem com os sacrifícios eventualmente impostos em prol da coletividade. Não haveria alternativa ao terceiro prejudicado, senão o contentar-se com a própria sorte.

169 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p.561. 170 Nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho: “a aceitação de uma responsabilidade por facto das leis constitui um triunfo recente da doutrina”. (O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974, p.144).

171 ALCÂNTARA, Maria Emília Mendes. Responsabilidade do Estado por atos legislativos e jurisdicionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p.55.

particulares é mero consectário desta ordem.

A despeito destas transformações, de certo modo incorporadas em face dos atos estatais administrativos e judicantes, em face da atividade legislativa, tentou- se fazer perdurar a irresponsabilidade, sob a alegação de que seria esta a genuína tradução do poder soberano. Este, por exemplo, o entendimento sustentado por Laferrière, ao deduzir que “La loi est, en effet, un acte de sourveraineté et le propre de la souveraineté est de s´imposer

a tous sans qu´on puisse réclamer d´elle aucune compesation.”172

Tal posicionamento urge ser superado. Hoje, não só se abandonou a crença em um legislador racional, como a própria idéia republicana de representatividade política, antes indissociável do referencial democrático

Em suma, o segundo equívoco do argumento consiste em, embora revisitado o conceito de soberania, pretender manter intactos os seus contornos clássicos ao menos em face da atividade legiferante, sob a justificativa desta se identificar com o momento soberano por excelência. Esta percepção está apegada a um nítido superdimensionamento do papel da lei, concebida como produto de um legislador racional, que, justo e coerente, seria capaz de apreender o fiel sentimento popular e transferi-lo para um ordenamento positivo perfeito.

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, é posta em xeque diante da freqüente falta de convergência dos interesses efetivamente defendidos pelos agentes políticos com os dos representados que os elegeram174

Actualmente impera la convicción de que soberanía – una de cuyas expresiones típicas sería la actividad legislativa – en modo alguno implica

. Como bem indica Miguel S. Marienhoff:

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APUD CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974, p.146.

173 Como salienta Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “a identificação entre os Parlamentos e a democracia tem raízes históricas que são patentes a qualquer estudioso. Por um lado, é ao Parlamento inglês que se deve boa parte da evolução conducente ao estabelecimento da democracia. Desde o período medievo se pôs ele na primeira linha de defesa da autonomia individual, como foi um dos principais instrumentos históricos da paulatina participação dos governados no governo. Por outro lado, na Revolução Francesa e nos movimentos liberais do século XVIII era sempre no Parlamento, nas câmaras, que se estabelecia o foco principal do repúdio ao absolutismo e do intento de modificação das instituições, no sentido do estabelecimento de um poder mais popular. Em realidade, nas monarquias constitucionais, os Parlamentos encarnavam a representação do povo, oposta ao monarca ainda fiado no direito divino dos reis.” (Do processo legislativo. 5 ed. rev. amp. atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p.273).

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Neste sentido, as precisas advertências de Rui Medeiros: “Com o desenvolvimento do Estado social, multiplicam-se as intervenções do Estado nos mais diversos domínios. a lei deixou de corresponder à vontade geral para afirmar a vontade da força política legislativa dominante. As assembléias representativas, dominadas como são por forças politicamente partidárias, não só deixaram de ser encaradas como a sede da vontade geral, como ainda repartem o poder legislativo com os governos e regiões dotadas de autonomia política.” (Ensaio

sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos. Coimbra: Almedina, 1992, p.10). A crise de

“infalibilidad”. Prueba de ello lo constituyen las numerosas leyes que son declaradas nulas por ser inconstitucionales – es decir erróneas – ya que aparecen vulnerando algún valor o derecho esencial protegido o aparado por la Constitución. Y si soberanía no implica ‘infalibilidad’, menos aún trasunta “impunidad”: de ahí la posible responsabilidad estatal por sus actos legislativos irregulares.175

Sintetizando, o argumento de que o poder soberano se reveste a atividade legislativa estatal impede o reconhecimento da responsabilidade por danos eventualmente causados tem de ser refutado porque nem a soberania pode mais ser concebida como poder irrefreável e absoluto, nem há motivo ou razão que justifique tratamento diferenciado ao Poder Legislativo176

A soberania é atributo do Estado como um todo, é poder uno e indivisível. Não há conceitos diversos de soberania aplicáveis a cada uma das funções estatais, tanto os atos administrativos, quanto os judicantes ou os legiferantes encontram uma mesma base de sustentação e um mesmo parâmetro de legitimidade, e, em face de qualquer deles, a ordem constitucional, qualificada pela substancial dimensão dos direitos humanos, servirá de pauta e limite

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