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Fase da responsabilidade subjetiva

3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

3.2 O ESTADO: DA IRRESPONSABILIDADE À ASSUNÇÃO DO RISCO

3.2.3 Fase da responsabilidade subjetiva

Mas, o agigantamento do aparato estatal cada vez mais se fazia notar, tornando a situação da irresponsabilidade insustentável. Os particulares temiam a crescente ingerência estatal na vida privada. O poderio econômico se sentia inseguro de seus investimentos, temeroso de que o intervencionismo do Estado na atividade econômica viesse a prejudicá-los. Tornava-se questão essencial admitir a responsabilidade civil do Estado pelos danos causados.

Foi construída, assim, uma tese de responsabilidade civil do Estado, e, como natural, a base de sustentação utilizada foi a de um arcabouço jurídico já consolidado à época, qual seja, a responsabilidade civil subjetiva, que então imperava no Direito Civil. Neste primeiro momento, portanto, procurou-se simplesmente transplantar a teoria civil, aplicando-a também ao Estado.138

3.2.3.1 Atos de império x atos de gestão

Porém, seria muito abrupta a saída de um sistema no qual vigia a total irresponsabilidade para um de responsabilização por qualquer ato do ente estatal. Algumas atividades do Estado eram tidas como essenciais e inevitáveis, pelo que não se conseguia compreender como poderiam ser reprimidas. Procurou-se, então, em um primeiro momento, restringir as hipóteses de cabimento da responsabilidade do Estado, erigindo-se uma teorização capaz de oferecer garantias aos particulares, sem, contudo, inviabilizar a atuação do Poder Público.

O remédio encontrado foi o de visualizar o Estado como ente imbuído de dupla personalidade: uma de pessoa pública e outra de pessoa privada. Somente quando atuasse nesta última condição é que se poderia falar em responsabilidade civil do Estado; em face da primeira hipótese permaneceria a tese da irresponsabilidade.

A insegurança dos particulares, e principalmente da classe burguesa, se punha diante da intromissão estatal nos assuntos antes estritamente privados. As tarefas originárias, típicas do Estado Liberal, não ofertavam maiores riscos; ao contrário, eram concebidas, mesmo, como essenciais. Com base nisto é que se tentou criar uma categoria de atos afeitos ao exercício precípuo da soberania, acobertados pelo manto da irresponsabilidade do Poder Público, os chamados atos de império. Propunha-se que fosse mantida a intangibilidade do Estado em relação às condutas adotadas para a manutenção da segurança e defesa da nação, por exemplo.

Em uma situação oposta, o Estado Social tinha o dever de se imiscuir nas relações antes estritamente particulares. Gerou-se um natural desconforto na medida em que aumentavam as probabilidades de superveniência de danos individuais, e, para atenuá-lo é que se procurou equiparar o Estado, quando atuante na seara privada, a um particular, a um mero administrador ou gestor. Era somente em relação a estes atos, designados atos de gestão, que o ente estatal seria submetido ao regime comum do direito privado então vigente, o da responsabilidade civil subjetiva. O Estado poderia vir a responder civilmente pelos danos causados na realização de negócios jurídicos, tais quais, aquisições, trocas, contratos e alienações.

do Estado foi identificada à simples responsabilidade civil do direito privado, calcada na idéia civilista da culpa individual do seu agente, isto é, quando se demonstrasse que este, no exercício de sua função, procedeu com imperícia, negligência ou imprudência.” (Curso de Direito Constitucional. 2 ed. rev. amp. atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2008, p.324).

Decerto que esta postura consubstanciou um primeiro embrião para admitir a responsabilidade civil do Estado. Porém, ficou ainda longe de consolidar resposta satisfatória.

Em primeiro lugar, a segmentação dos atos estatais entre uma e outra categoria somente apresenta alguma relevância para o próprio Estado, para controle interno. Ao particular afetado em nada importa saber qual a qualidade do ato, mas tão somente ter assegurado o direito à reparação do dano causado.

Ademais, o critério de distinção entre os atos de império e de gestão era genérico, fantasioso e impreciso, deixando grande margem para classificar os atos sobre uma ou sobre outra categoria, o que causava reflexos negativos na jurisprudência.

Por tais razões, não vingou esta tentativa de construir uma dupla personalidade jurídica para o Estado, que somente servia como forma de restringir as hipóteses em que seria admitida a sua responsabilidade civil.

3.2.3.2 Teorias da culpa

Em uma etapa seguinte, aceitou-se que o Estado viesse a responder por qualquer conduta lesiva sua, independentemente dela se classificar como ato de império ou de gestão. Permanecia, todavia, o arcabouço da responsabilidade civil dependente da culpa, que deveria ser aferida a partir da imperícia, imprudência ou negligência da conduta individual de algum agente do Estado.

Restava, contudo, uma questão ainda não bem respondida: como admitir que o Estado, ente despido de individualidade fisiopsíquica, pudesse vir a praticar atos ilícitos e culposos, se este sequer era capaz de manifestar uma vontade plenamente identificável como sua?

A resposta, primeiro, veio por meio da teoria da representação. De acordo com ela, os agentes públicos atuariam como mandatários, prepostos do Estado. O ente estatal seria responsabilizado indiretamente, com fulcro em construções teóricas como as culpas in vigilando ou in eligendo. Em suma, considerava-se a situação como análoga aos clássicos casos de responsabilidade civil por ato de terceiro.

Esta perspectiva evoluiu para uma teoria dos órgãos, a qual consignava que o Estado, assim como as demais pessoas jurídicas, não é representado, mas se materializa no atuar de seus agentes ou órgãos, ao que se confundem as ações. Desde que os agentes do Estado valham-se das prerrogativas públicas, seu atuar em face de um terceiro será

reputado diretamente ao Estado139

Foi na tentativa de resguardar os interesses particulares que mais um passo na evolução da responsabilidade do Estado foi dado: atenuou-se o ônus da prova. Se antes aquele que pretendesse a reparação de algum dano causado pelo Estado tinha de provar a sua culpa ou dolo, demonstrando a falta pessoal de um determinado agente da Administração, agora bastava evidenciar ter ocorrido uma falha genérica na prestação do serviço. Suficiente para imputar o dever de reparação ao Estado a comprovação de que o serviço público funcionou mal, não funcionou ou funcionou atrasado

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No mais, o Estado era posto no mesmo patamar que qualquer indivíduo, fazendo-se necessária a prova da culpa ou dolo na sua conduta – isto é, no proceder do agente público, quando no exercício do munus público – para que viesse a ser responsabilizado pelos danos causados. A grande dificuldade que derivou deste embasamento teórico, sem dúvidas, foi a de deixar a cargo do particular, parte hipossuficiente, o ônus de provar a culpa ou dolo no atuar do Estado. Resultava que a grande maioria das lesões oriundas de condutas estatais restava sem reparação em virtude de óbice meramente técnico, consubstanciado na dificuldade de provar culpa ou dolo.

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Tratava-se da teoria da falta (ou falha) do serviço, que, em realidade, trabalha sobre o arcabouço da presunção de culpa e da conseqüente inversão do ônus probante. Ante a prestação ineficiente de um serviço público, presume-se a conduta culposa de algum agente público, retirando o peso de demonstrá-la, porém, dos ombros da vítima. Demonstrada a falha na prestação do serviço, passava a competir ao Estado o papel de se eximir da responsabilidade, demonstrando ter se comportado com diligência, perícia e prudência

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139 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.129-130. 140 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.237-238, v.2. 141 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.863.

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Também esta teoria não resolveu os problemas, fosse porque a vítima ainda ficasse imbuída da tarefa de comprovar, ainda que de forma genérica, a ocorrência da falta do serviço público, fosse porque o conceito de falta do serviço jamais tenha alcançado precisão suficiente, estimulando grande vacilo jurisprudencial. De todo modo, esta postura foi decisiva para inspirar a adoção das teorias do risco ou objetivas.