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Feminismo comunitário e ecofeminismo: manobras pelas matas de nossas avós e bisas

Os caminhos são tortuosos pelas brechas dos canaviais, mas a Cabocla guerreira em evolução segue. A luta feminista avança, e as conquistas são às vezes tímidas, frente a resistência da escancarada e espaçosa dominação masculina. Porém não são menos

54 Em um dos protestos contra o aumento do preço dos combustíveis, foram distribuídos adesivos de

Dilma com as pernas abertas, que eram colados nos automóveis na região de entrada para a mangueira de abastecimento.

importantes e operam em modificações significativas, lentas e fundamentais para uma possível alteração no modo de vida sexista e machista da sociedade.

Para além dos avanços e feitos políticos da mulher que está na vida pública, há ainda o feminismo que consta na vida privada, ou na vida comunitária. O feminismo que encontrei e identifiquei durante a vivência com as caboclas guerreiras de Nazaré. Paredes aborda o termo e o conceito de comunidade afirmando que ele vai além de grupos rurais ou indígenas como é de costume pensar. Para a autora, comunidade:

É outra maneira de entender e organizar a sociedade e viver a vida. Quando dizemos comunidade, nos referimos a todas as comunidades da nossa sociedade. Comunidades urbanas, comunidades rurais, comunidades religiosas, comunidades esportivas, comunidades culturais, comunidades políticas, comunidades de luta, comunidades territoriais, comunidades educativas, comunidades de tempo livre, comunidades de amizades, comunidades bairristas, comunidades geracionais, comunidades sexuais, comunidades agrícolas, comunidades de afeto, comunidades universitárias, etc. É compreender que de todo grupo humano pode-se fazer e construir comunidades. É uma proposta alternativa à sociedade individualista55

(PAREDES, 2014, p. 86).

A autora abre a sua obra “Hilando fino – desde el feminismo comunitário” com uma afirmação categórica: as mulheres são a metade da população56. Essa informação pode parecer

óbvia ou descartável a um primeiro olhar, no entanto se torna indispensável ao indagarmos porque afinal metade da população segue sendo oprimida sistematicamente há tantos anos. Prossegue: somos a metade da população e parimos a outra metade. Portanto, ao violentar e subjugar as mulheres, o patriarcado ataca a própria comunidade, já que no ideal comunitário, não devemos nos dividir entre dois grupos opostos, contrários e hierárquicos e sim como grupos que se complementam.

“Hilando fino” vai além de teorizar e conceituar o feminismo. Ele aproxima-se de um manifesto, com propostas concretas, que indicam novas formas de driblar e modificar não apenas a organização social no que concerne às relações de gênero, mas a partir da mudança dessas relações, a alteração de todo um modo de vida, oposto ao que foi estabelecido pelo neoliberalismo desenfreado e seu consequente individualismo. Pensar o feminismo comunitário partindo da ideia de que é necessário resgatar os saberes tradicionais, a ciência produzida por nossas avós e tataravós, que foram se perdendo ao longo do tempo a medida em que memórias foram apagadas e conhecimentos foram desprezados em decorrência do avanço

55 Tradução minha.

da supremacia masculina sobre a Natureza e sobre as mulheres. Tomar nas mãos os fios que coseram as lutas de nossas lanceiras ancestrais.

Trabalhando a partir de movimentos sociais, a autora propõe que o combate à subordinação das mulheres se dê através da ressignificação e recuperação de cinco aspectos da vida: tempo, espaço, corpo, movimento e memória.

Nosso marco conceitual é dinâmico e interativo, uma vez que as mulheres estarão permanentemente nutrindo-o, porque nos abre a possibilidade interativa de construção e apropriação, procedente das mulheres de diferentes organizações sociais que vão amontoando este mesmo marco conceitual, no balaio de suas próprias realidades e reivindicações específicas, para aportar as soluções de sua própria realidade e defendê-la frente qualquer ameaça.57 (PAREDES, 2014, p.

96-97) .

Apropriar-se de seu tempo, que é desvalorizado em detrimento ao tempo do homem. Tomar de volta as rédeas de seu corpo, compreendendo seus ciclos e resgatando formas de cuidados da saúde e da alimentação. Conquistar e construir espaços, recuperando a relação com a terra e seus recursos naturais, apropriando-se da produção e cultivo de alimentos. Fundar possibilidades de ações em movimentos sociais que busquem garantias de direitos, organizações, representação e auto representação diante do governo. E por fim, reconstruir

memórias de nossas antepassadas, afim de fortalecer laços identitários. Esses são os

fundamentos básicos do feminismo comunitário que, segundo Julieta Paredes podem libertar a mulher e o homem do princípio opositor entre esses dois grupos que compõem, juntos e colaborativamente, os povos, as nações, as sociedades.

Na AMUNAM, esses conceitos estão em prática, atrelados às ações e realizações diversas da Associação. Quando acontecem as rodas de conversas sobre assuntos que aquelas mulheres têm em comum (sobre seus corpos e as barreiras nas criações dos filhos), quando elas se reúnem para promover debates e campanhas contra a violência doméstica, quando elas praticam as tradições culturais, com suas rodas de coco e com o próprio maracatu, quando elas realizam oficinas de confecções de golas e fantasias, repetindo ensinamentos ancestrais através da experiência e da oralidade. A própria permanência da sede, uma casa que representa o espaço das mulheres daquela cidade, são formas de por em prática esse feminismo específico, comunitário, ligado à terra e à quem dela vive.

Como foi falado no início desse capítulo, a monocultura e o sistema de agro- exportação eliminam os princípios da vida e da agricultura familiar e sustentável bem como o possível crescimento das concepções comunitárias. Ora, se o cuidado da família no tocante a alimentação, criação das crianças, da saúde familiar, da casa e a consequente relação com os recursos naturais locais está sob a responsabilidade das mulheres, somos nós quem sofremos primeiro as consequências dessa devastação dos bens que a terra oferece. Exatamente por isso nos deparamos com a presença maciça das mulheres na resistência contra ações do governo que atacam diretamente a Natureza. O feminismo comunitário e o eco feminismo nos ajudam, portanto, a entender que é necessária uma retomada da relação de nós mulheres com a Natureza, já que a exploração de ambas se dá de maneira desenfreada e estão relacionadas.

Neste sentido, a recuperação e atualização do pensamento feminista, incorporando as reflexões ecofeministas ou ambientalistas e as contribuições das mulheres indígenas e dos conceitos do “bem viver” andino, foram uma necessidade surgida da prática de resistência do movimento de mulheres a um modelo de desenvolvimento insustentável que está impactando cada dia mais fortemente as próprias bases da sobrevivência comunitária sadia e digna (RODRIGUES, 2015, p. 4).

Em 2015 a Barragem do Fundão, utilizada para conter os dejetos e rejeitos de minério de ferro explorados pela empresa multinacional Samarco rompeu-se, espalhando mais de 55 milhões de metros cúbicos de uma lama tóxica que chegou rapidamente ao vilarejo Bento Rodrigues, pertencente ao município de Mariana/MG. Em poucos minutos a comunidade se viu soterrada pela lama, que matou 19 pessoas imediatamente e ainda hoje segue deixando rastros de destruição e morte e seguirá, por um tempo que ainda não se pode contar ao certo. Todas as casas da comunidade foram destruídas e durante 16 dias a lama percorreu mais de 600km, seguindo seu curso enquanto matava peixes, aves, pequenos mamíferos, árvores e pessoas, pela bacia do Rio Doce, até chegar ao oceano, atingindo corais, recifes e animais marinhos.

Foram 26 espécies imediatamente desaparecidas, fora as que irão desaparecer por consequência do contato com o alto teor tóxico, ainda inestimável por biólogos e pesquisadores atualmente. A Samarco alegou inocência e luta na justiça brasileira para fugir da responsabilidade frente ao crime ambiental, apesar das vistorias da barragem estarem atrasadas e desatualizadas. Até hoje as famílias e comunidades ribeirinhas que foram desalojadas e atingidas por esse crime não foram devidamente indenizadas. Os danos

causados pelo contato com o material tóxico alteraram imediatamente a saúde respiratória principalmente de crianças e bebês. 58

As mães e mulheres responsáveis pelos cuidados destes não recebem nenhum tipo de auxílio médico para os exames, medicamentos e tratamentos necessários para manter seus filhos vivos. Muitas tiveram que abandonar o trabalho, já que as crianças precisam de cuidado por tempo integral, por passarem por crises respiratórias diariamente.59

Essa lamentável e recente passagem histórica de nosso país é apenas um dos exemplos de como a mulher é diretamente atingida pelo caráter destruidor e cruel da lamentável relação devastadora que o patriarcado e o capitalismo estabelecem com a Natureza e consequentemente com a vida. Por isso, é compreensível que elas estejam inseridas na linha de frente de muitas ações de lutas locais territoriais contra construções de barragens, hidroelétricas, privatizações, uso de agrotóxicos, usinas nucleares, etc.

A degradação ambiental e os impactos da contaminação de águas e solos, como também as consequências das mudanças climáticas que já se deixam sentir estão sendo enfrentadas de fato pelas mulheres, que sentem profundamente afetado seu cotidiano de produção e reprodução da vida humana. A agenda da exploração dos recursos naturais (mineração, matriz energética, desmatamentos etc.) e sua vinculação com a vida cotidiana da população (direitos humanos, soberania alimentar e água, cuidados e serviços públicos etc.) tem sido especialmente assumida e visibilizada pelas mulheres. Enfatizar os impactos que o modelo de desenvolvimento provoca sobre a vida cotidiana da população é tarefa carregada permanente pelos movimentos de mulheres. Nesse sentido, visibilizar e dar o rosto humano, familiar e comunitário às consequências da atuação das mineradoras, do uso dos agrotóxicos, da contaminação e dificuldade de acesso a água, entre outras, tem sido preocupação das mulheres (RODRIGUES, 2015, p. 4 -5). Relacionar a mulher à Natureza, no entanto, é uma aproximação rechaçada por grande parte do movimento feminista, e encontra bastante resistência para se desenvolver nas discussões e debates. De fato, devemos ser cuidadosas. Atribuir a nós e ao nosso universo tudo o que diz respeito à Natureza pode reforçar a concepção do ‘biologismo’, genialmente diagnosticado por Simone de Beauvoir, como uma das principais causas do machismo, em que a condição de submissão da mulher é justificada e fundamentada sobre uma base imutável: o seu sexo (BEAUVOIR, 2016). Nesse caso, restaria a nós mulheres aceitarmos

58 Dados retirados de reportagem disponível no portal G1: https://g1.globo.com/mg/minas-

gerais/noticia/2019/01/25/ha-3-anos-rompimento-de-barragem-de-mariana-causou-maior-desastre- ambiental-do-pais-e-matou-19-pessoas.ghtml. Acesso: 28/12/2018.

59 A matéria completa sobre esse crime encontra-se disponível em:

com resignação a nossa condição “natural”. Aquela visão clássica “das mulheres ligadas ao “natural” e ao âmbito do privado, enquanto aos homens o mundo da cultura e do público” (RODRIGUES, 2015, p. 8). Logo, é relevante dizer que essa aproximação procurada pelas vertentes do ecofeminismo não deseja a repetição errônea dessa visão clássica, mas sim negar a supremacia do homem sobre os recursos naturais e sobre a vida das mulheres; traçar novos caminhos e maneiras de se relacionar com a natureza, buscando uma relação mais harmoniosa “das mulheres com o meio ambiente e com seu próprio corpo enquanto “natureza”” (RODRIGUES, 2015, p. 9).

Outra forma de opressão que nós mulheres compartilhamos com a Natureza é a desvalorização e invisibilidade de nossos trabalhos, ou o usufruto deles como fontes inesgotáveis e gratuitas.

Já inseridas no mercado, muitas vezes com salários menores para mesmas funções, as mulheres enfrentam longas jornadas de trabalho e passam pelas opressões fora e dentro de casa trabalhando gratuitamente e sem reconhecimento em seus lares, já que as tarefas domésticas ainda não saíram de suas alçadas. O trabalho doméstico é concebido como algo naturalmente delegado a nós, que temos a ‘benção’ de sermos responsáveis pela organização de toda a logística familiar e domiciliar. Vestimentas e alimentação dos maridos e dos filhos, limpeza da casa, educação e socialização das crianças, acompanhamento da vida escolar, itens que devem ser comprados no mercado, idas ao varejo, a feiras, a lojas, ao dentista, ao médico. Todo o cuidado que diz respeito à manutenção básica de um ser humano está “naturalmente” nas mãos das mulheres e não são vistos como algo que mereça ser remunerado. Graciela Rodrigues novamente traça um paralelo entre a gratuidade no trabalho da mulher e a ideia de fonte inesgotável sobre a Natureza:

De fato, o papel do clima, dos ventos, da chuva, e até da fotossíntese realizada pelas plantas, ainda que imprescindíveis à manutenção da vida, são trabalhos invisíveis e gratuitos, igual que o trabalho de preparação dos alimentos, de socialização das crianças e de atenção aos doentes e idosos, atividades realizadas geralmente pelas mulheres dentro dos seus lares – as chamadas atividades do cuidado da vida humana. Nenhum de tais trabalhos se veem refletidos nos custos econômicos ou nas contas nacionais, como parte da produção de riquezas. O esforço que historicamente tem sido realizado pelas mulheres e o trabalho silencioso que acontece na Natureza não contam economicamente, já que eles não passam pelo mercado, único espaço que confere valor no sistema capitalista. Esta completa falta de assinação de valor a uma e a outra destas atividades compõe no capitalismo o elemento básico da construção das relações de gênero e das relações com a Natureza (RODRIGUES, 2015, p.10).

Entender e valorar o trabalho diário feito pelas mulheres e que não é valorizado pelo mercado tem sido um dos feitos importantes do feminismo. Esse trabalho, que é constante, cotidiano e repetido historicamente contém técnica, conhecimento, sabedoria e ciência. Repassado pela tradição oral, está enraizado em comunidades e famílias. É parte integrante das famílias, propicia a manutenção básica delas. É esse trabalho, realizado por mulheres, que cria e mantém a saúde de toda a sociedade. Que possibilita a manutenção e a reprodução da vida.

Silvia Federici, em seu livro “Calibã e a bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva” relaciona a divisão sexual do trabalho ao surgimento do capitalismo e sua lógica de acumulação primitiva. Na transição do feudalismo para o capitalismo, findada a economia de subsistência e revelada a necessidade da produção para obtenção de lucro, terras e rios foram contabilizados e cercados, gerando a necessidade de produzir (entendendo ‘produção’ como o trabalho que gira e gera capital) ao máximo e atribuindo ao trabalho de reprodução (entendendo ‘reprodução’ como o trabalho que é cíclico e fundamental, mas que acontece no âmbito privado e não gera lucro) um caráter desimportante. Nesse momento histórico, as mulheres foram sujeitadas ao trabalho reprodutivo não remunerado. O que a autora revela, porém, é que ainda antes desse momento de transição, por mais que as mulheres participassem da economia familiar de maneira mais ativa e conjunta, a divisão sexual do trabalho já existia e não necessariamente alimentava a desigualdade entre elas e o seu enfraquecimento. Pelo contrário:

Se também levarmos em consideração que, na sociedade medieval, as relações coletivas prevaleciam sobre as familiares e que a maioria das tarefas realizadas pelas servas (lavar, fiar, fazer a colheita e cuidar dos animais nos campos comunais) era realizada em cooperação com outras mulheres, nos damos conta de que a divisão sexual do trabalho, longe de ser uma fonte de isolamento, constituía uma fonte de poder e de proteção para as mulheres. Era base de uma intensa sociabilidade e solidariedade feminina que permitia às mulheres enfrentar os homens, embora a Igreja pregasse pela submissão e a Lei Canônica santificasse o direito do marido a bater na sua esposa (FEDERICI, 2017, p.56).

Portanto, o que impõe a mulher a condição de trabalho não remunerado no lar não é a divisão sexual do trabalho em si, mas sim o advento do capitalismo, que tratou de buscar novas “formas de dividir e arregimentar a força de trabalho” (FEDERICI, p. 126). A autora prossegue:

(...) junto com a contínua privatização da terra que se forjou uma nova divisão sexual do trabalho ou, melhor dizendo, um novo “contrato sexual” (...) que definia as mulheres em termos - mães, esposas, filhas, viúvas – que ocultavam sua condição de trabalhadoras e davam aos homens livre acesso aos seus corpos, a seu trabalho e aos corpos e trabalhos de seus filhos (FEDERICI, p. 191).

O capitalismo, a acumulação, a priorização e hiper-valorização do lucro e da propriedade privada mantêm-se como pilares firmes da sociedade atual e isso nos leva a ver, como expus nesse capítulo, que a situação das mulheres só se agravou com o crescimento do capitalismo desenfreado, somado às práticas neoliberais.

De volta aos canaviais, por ser uma monocultura, a cana abarca trabalhadoras e trabalhadores que têm sua força de trabalho igualmente exploradas pelo sistema vigente. No entanto, dentro do Maracatu Rural, só o homem pode brincar. A AMUNAM, ao reunir em sua história e razão de ser a luta para a libertação da mulher e equalização dos direitos, age como uma associação combatente dessa lógica. Se ambos têm sua força de trabalho esvaída pelos canaviais, ambos devem ter também o direito de se manifestar e brincar nessa forte tradição.

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