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Caboclas de lança e flor na boca: experiência artetnográfica na cena das mulheres do Maracatu Coração Nazareno-PE

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MONIQUE LUCA MARITAN

CABOCLAS DE LANÇA E FLOR

NA BOCA

Experiência artetnográfica na cena

das mulheres do Maracatu Coração

Nazareno-PE

NATAL/RN

2019

(2)

NIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNCIAS

Caboclas de lança e flor na boca

Experiência artetnográfica na cena das mulheres do Maracatu Coração Nazareno-PE

MONIQUE LUCA MARITAN

Natal – RN

2019

(3)

MONIQUE LUCA MARITAN

Caboclas de lança e flor na boca

Experiência artetnográfica na cena das mulheres do Maracatu Coração Nazareno-PE

Dissertação de mestrado apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Orientação: Profa. Dra.Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra.

Natal-RN 2019

(4)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Maritan, Monique Luca.

Caboclas de lança e flor na boca: experiência artetnográfica na cena das mulheres do Maracatu Coração Nazareno-PE / Monique Luca Maritan. - 2019.

174f.: il.

Dissertação (Dissertação)-Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,

Departamento de Artes, Programa de Pós-gradução em Artes Cênica, Natal, 2019.

Orientadora: Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra.

1. Maracatu rural - Dissertação. 2. Brincadeira - Dissertação. 3. Feminismo - Dissertação. 4. Cabloca de lança - Dissertação. 5. Artetnografia - Dissertação. I. Lyra, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. II. Título.

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Ao Simão Cunha, meu parceiro de vida, de luta e de brincadeira, que hoje faz suas pisadas em outros terreiros.

À minha mãe, Isabel. Às minhas avós, Isabel e Déia.

Às minhas bisas e suas mães. E a todas as caboclas que vieram antes de nós.

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AGRADECIMENTOS

A toda a minha família, em especial: mamãe, papai, Hique e Gum, pela minha existência e vida. Também à Tia Daia, Teit e vovó Déia, pelo suporte vital, pela bagagem, pela base, por quem eu sou.

À minha outra família, escolhida por mim e pelo universo. Irmãos e irmãs da vida, parceiros de caminhada: Stella Garcia, Pedro Stempniewski, Tato (Ricardo Inhan), Junia Magi e Larissa Bonfim, pelo mesmo suporte vital preenchendo os espaços e me ajudando a me constituir enquanto ser vivente nesse mundo.

Aos meus parceiros do Poleiro do Bando, Bruno Avoglia, Juliana Jardim, Mariana Vaz, Ariane Cuminale, por cada aprendizado na caminhada artística.

Às minhas eternas mestras: Juliana Monteiro, Cuca Bolaffi, Cris Lozano, Lucia Gayotto, Mariana Senne e Mirella Guilhen, pelos ensinamentos que me acompanham diariamente.

À Aninha e à Gabi, irmãs sempre comigo, sempre ao meu lado, na luta e na sororidade, desde sempre e para sempre, tenho certeza disso.

À Eliza Garcia por se fazer morada, resgatar o amor que eu devo ter por mim mesma, por ter jogado a corda na hora do naufrágio, pelo acolhimento e pelos passos que demos juntas adiante. Sempre presente, sempre companheira, sempre compreensiva.

À Larissa Nalini, Raquel Nunes, Aretha Belini, Flávia Prazeres e Flora Milito, pelas ajudas pontuais em conversas, sempre aliviando tensões que só elas poderiam aliviar.

Ao Aender Guimarães, por ter me dito: “presta, faz o projeto, você vai passar!” e pela necessária ajudinha resgatando o universo acadêmico dentro de mim e me fazendo ver que era possível.

Ao Bruno Ribeiro, por tudo. Todos os papos, todas os trabalhos que eram festas, todos os devaneios, tão essenciais pro meu crescimento ideológico, político, social. E por aquela última e secreta ajudinha na reta final, claro.

À Thais e ao Léo, pela companhia em momentos de angústia e também pelos bons momentos de troca que compartilhamos em João Pessoa.

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À minha turma, PPGArC 2017, especialmente aos meus parceiros ‘Bromados’: Rodrigo, Horus, Raiana e Janine, pelos alívios nos bares e pelas mensagens de socorro.

À Ludmila, Manu, Lelê e Adriel, pelo essencial amparo, lar e alimento. Pelas rodas de jongo e pontos cantados nos quintais de Natal.

Aos meus pareia do Boi da Praça, em especial Alan Monteiro, Duda e Ramon.

Às companheiras de luta e de caboclagem no carnaval: Luana Aires, Maluá Munt, Luciana Portela, Luana Flores e Milena Medeiros.

Ao Coletivo Maracastelo, pelos momentos em que o amor à cultura e a coletividade sobrepuseram outras coisas, menos importantes.

À professora, mestra e mentora Marli, por me ajudar a manter a minha sanidade e o auto-conhecimento.

À Mika Costa, pela presença de todas as formas, mesmo à distância. Pelas surpreendentes conexões. Por me fazer enxergar que os encontros acontecem para além desse tempo e desse espaço. Por ter me ensinado a não ter medo da correnteza.

Aos residentes da Residência de Pós-Graduação ‘Pouso’, em especial à Tarcy, por ter me encorajado a tentar a vaga, à minha parceira de quarto Raille da Silva, minha mineirinha Josi Simões e minha princesa fina rainha classuda Ben-Hur Bernard, por tantos papos, divisão das aflições e imprescindível apoio.

À Neide, Neidoca, Neidinha.

Ao Felipe Scapino, Joice Temple e Juliana Amorim, pelas belas fotos e pela filmagem realizada no carnaval de 2018.

Ao João Paulo Rosa. Ao Bui Caboco. Ao mestre Aguinaldo.

Às professoras Teodora Alves e Carolina Laranjeira pelas valiosas contribuições na banca de qualificação desse trabalho e à professora Maria Brígida Miranda, por ter aceitado o convite para a banca de defesa.

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Ao Bruno, secretário do PPGArC, pelas ajudas sempre pontuais, pela disponibilidade e sincera vontade de ajudar e tornar as coisas mais viáveis.

À PPGArC da UFRN.

À minha orientadora, Luciana Lyra, que começou a caminhar ao meu lado bem antes da ideia desse mestrado e por ter acreditado em minha capacidade. Sempre compreensiva e consciente quando nos deparávamos com as dificuldades sociais, políticas e financeiras que enfrentei durante o tecer desse trabalho.

Ao fundamental apoio da CAPES (Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior), sem o qual essa dissertação não seria possível.

Enfim e especialmente a todas as mulheres do Coração Nazareno, pela entrega, pela recepção, pelo carinho, pela confiança, troca, integridade e disponibilidade inesquecíveis. Em especial à Dona Eliane, Rayanne e Lucicleide.

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Esse grupo sem igual Aqui, força é da mulher É o destaque de Nazaré No Maracatu Rural.

(10)

RESUMO

Esse trabalho dissertativo analisou a cena e as relações de gênero do Maracatu Rural, expressão artística presente majoritariamente no município de Nazaré da Mata – Pernambuco, com foco no grupo de mulheres, intitulado Maracatu Coração Nazareno (2004). A dissertação traz à tona os aspectos das dimensões estéticas (cena, personagens/figuras, figurinos, máscaras, música, dança, textualidades), que definem o Maracatu Rural como ‘Brincadeira’. O trabalho aborda também a existência de elementos rituais e sagrados na cena performática do Maracatu Rural. Na discussão de gênero, compreende os lugares ocupados pelas mulheres do grupo e as consequentes ressignificações das relações que envolvem gênero e poder, provocadas, em especial, pela performance da Cabocla de Lança, uma releitura do

caboclo de lança, figura fundamental do Brinquedo, de tradição masculina e patriarcal. Por meio do trabalho de campo, buscou-se vivenciar as consequentes reverberações provocadas pela transgressiva ressignificação proposta pela tomada e ocupação das mulheres nesses novos espaços e cargos dentro da tradição. O caminho metodológico utilizado na investigação em campo foi a Artetnografia (LYRA, 2009; 2013; 2015), que sugere que o encontro entre artistas e contextos de alteridade se configure como um contato intenso e subjetivo, chegando à complexidade das estruturas e organizações dos símbolos que habitam a sociedade e regem suas relações.

Palavras-chave: Maracatu Rural; Brincadeira; Gênero; Feminismo; Cabocla de Lança;

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RESUMEN

La siguiente disertación analizó la escena y relacción de género del Maracatu Rural, expresión artística presente mayoritariamente en el condado de Nazaré da Mata – Pernambuco, con enfoque en el grupo hecho sólo por mujeres, nombrado Maracatu Coração Nazareno (2004). El trabajo estudia los aspectos de la dimensión estética (escena, personajes/figuras, vestuario, máscara, música, danza, textualidad), que definen el Maracatu Rural como “Brincadeira”, un juego tradicional. El trabajo aborda también la existência de elementos rituales y sagrados contenidos en la escena performativa del Maracatu Rural. Sobre la discusión de género, se comprende los lugares ocupados por las mujeres del grupo y las consecuentes resignificaciones de las relaciones que envolven género y poder, provocadas, sobre todo, por el actuar de la Cabocla de Lança, una relectura del caboclo de lança, figura fundamental del juego, de tradición masculina y patriarcal. A través de la investigación de campo, se buscó vivenciar las consecuentes reverberaciones provocadas por la transgressiva resignificación propuesta por la ocupación de las mujeres en estos nuevos espacios y renovadas posiciones dentro de la tradición. El camino metodológico utilizado en la investigación de campo fue la Artetnografía (LYRA, 2009;2013;2015), que sugiere um encuentro entre artistas y contextos de alteridad que se configure como un contacto intenso y subjetivo, llegando a la complejidad de las estructuras y organizaciones de los símbolos que habitan la sociedade y rigen sus relaciones.

Palabras clave: Maracatu Rural; Juego tradicional; Género; Feminismo; Cabocla de lanza, Artetnografia.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Ponte sobre o Rio Grande, o berço da minha trajetória com a arte. Foto: Paulo Fontes ... 16 Figura 2 - Apresentação de Carnaval em Recife/PE. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 31 Figura 3 – Casa grafitada com Caboclos de Lança, na entrada de Nazaré da Mata/PE. Foto: Monique Luca Maritan, junho de 2018. ... 38 Figura 4 – O verde resistindo em uma casa abandonada na estrada de Recife para Nazaré. Foto: Monique Luca Maritan, junho de 2018. ... 40 Figura 5 – Vista da janela de minha primeira estadia em Nazaré da Mata/PE. Foto: Monique Luca Maritan, janeiro de 2018. ... 40 Figura 6 – Menino Caboclo em Nazaré da Mata/PE. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 41 Figura 7 - Monumento em Parque dos Lanceiros, Nazaré da Mata/PE. Foto: Monique Luca Maritan, janeiro de 2018. ... 41 Figura 8 – Um mestre antigo, empunha seu bastão enquanto rima sobre o palco: arte e sacralidade. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 54 Figura 9 – Uma Dama do Paço antiga em seu posto e sua Calunga sagrada antes do cortejo. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 57 Figura 10 – Retratos da Mata Norte: trecho da estrada entre Aliança e Nazaré/PE. Foto: Monique Luca Maritan, junho de 2018. ... 61 Figura 11 – Obrigações do carnaval: um caboclo indo cumprir sua obrigação. Foto: Monique Luca Maritan, fevereiro de 2018 ... 64 Figura 12 – Mateu de um maracatu masculino. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 67 Figura 13 – Catita de um maracatu masculino. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 67 Figura 14 - Caboclos do Maracatu Águia Dourada caminham para se apresentar. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018 ... 69 Figura 15 - Caboclos de um maracatu masculino em evolução: destreza e habilidade. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 71 Figura 16 - Terno e caboclaria do Águia Dourada, rumo à apresentação. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 73 Figura 17 - Sombrinha da corte do Coração Nazareno. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 74

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Figura 18 - Queimada em canavial. Foto: http://www.sitracom-ro.com.br ... 75

Figura 19 - Incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro/RJ. Foto:Uanderson Fernandes, setembro de 2018. ... 80

Figura 20 - Nono Ugo e Nona Amália. Arquivo familiar. ... 83

Figura 21 - Vapor San Gottardo. Arquivo Museu do Imigrante. ... 83

Figura 22 – Alexandrina (com a criança no colo), bisavó baiana com seus filhos e netos. Arquivo familiar. ... 84

Figura 23 - Vovó Isabel aos 17 anos. Arquivo Familiar. ... 85

Figura 24 - Vovó Isabel, sua irmã e sobrinhos. Arquivo familiar. ... 85

Figura 25 - Maracatu Coração Nazareno após apresentação em Recife/PE. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 87

Figura 26 – Guerreira: uma baiana do Maracatu Águia Dourada. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 94

Figura 27 - Chitas ao vento no varal da AMUNAM. Foto: Monique Luca Maritan, maio de 2018. ... 108

Figura - 28 Slogan e logotipo da Associação. Fonte: site da AMUNAM. ... 110

Figura 29 - Coliseu na área externa da AMUNAM, um espaço de confraternização. Foto: Monique Luca Maritan, maio de 2018. ... 111

Figura 30 – Livro AMUAM – Deixando marcas. Arquivo pessoal. ... 113

Figura 31 - Livro AMUNAM –Com a cara e a coragem. Arquivo pessoal ... 113

Figura 32 – Livro AMUNAM – Educar para transformar Arquivo pessoal. ... 113

Figura 33 -. Adesivo na janela da Rádio Alternativa AMUNAM. Foto: Monique Luca Maritan, maio de 2018 ... 113

Figura 34 – Livro AMUNAM – Uma história de amor à vida. Arquivo Pessoal. ... 114

Figura 35 - CD A rosa do maracatu. Arquivo pessoal... 117

Figura 36 - CD Terno, apito e bengala. Arquivo pessoal ... 117

Figura 37 – Esquema de formação do cortejo Coração Nazareno. Fonte: Elizangela dos Santos Garcia... 121

Figura 38 – A Cabocla Luana Aires com a flor na boca e outras Caboclas de Lança em formação. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018... 124

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Figura 40 - Eu-Caboca - entre uma pisada e outra. Foto: Pedro Stempniewski, fevereiro de

2018. ... 125

Figura 41 – Um pôr-do-sol na estrada pernambucana. Foto: Monique Luca Maritan, julho de 2018. ... 126

Figura 42 - Caminhos da Zona da Mata: um dia de minha jornada. Foto: Monique Luca Maritan, julho de 2018. ... 131

Figura 43 - Sambada de aniversário Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré. Arquivo Pessoal. ... 133

Figura 44 - Oficina de Cavalo Marinho e Maracatu Rural com mestre Aguinaldo em Campina Grande/PB. Arquivo pessoal. ... 133

Figura 45 – Capitão (Eduardo Alves) e Mana Nega (Luciana Portela) – Registros de estudos do Boi da Praça ... 134

Figura 46 – Banco (eu e Luciana Portela) e Capitão (Eduardo Alves – Registros de estudos do Boi da Praça ... 134

Figura 47 - Chamada para encontro – Material de divulgação - Boi da Praça, maio de 2018. ... 135

Figura 48 - Chamada para encontro – Material de divulgação - Boi da Praça, abril de 2018. ... 135

Figura 49 -Crianças com as máscaras em vivência do Boi da Praça na praia de Ponta Negra – Natal/RN. Arquivo pessoal, outubro de 2018. ... 136

Figura 50 - Eu-Caboca. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 138

Figura 51 - Thina – Caboca de Lança. Foto... 142

Figura 52 - Estandarte e terno do Coração Nazareno ... 142

Figura 53 - Rayanne, Dama do Paço segurando Paulínea, Calunga. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 143

Figura 54 – O estandarte, Mestra Cristiane e as Damas de Paço Rayanne e Lulu. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 143

Figura 55 - Josiane, Cabocla de Lança, se maquiando pré apresentação. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 144

Figura 56 - Thina e o poder de sua guiada. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 145

Figura 57 - Eu-Caboca e minha guiada: enfrentando olhares inquisidores. Foto: Felipe Scapino, fevereiro de 2018. ... 146

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Figura 58 - Eliza, Monique e Ana pós apresentação em Buenos Aires/PE ... 149

Figura 59 - Luana Flores e Luciana Portela, em trânsito com o Coração Nazareno ... 149

Figura 60 - Dama do Paço, Burrinha e Caboclaria ... 150

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SUMÁRIO

A MENINA NA PORTEIRA, O RIO E O CORTEJO ADIANTE ... 17

1 - NA MATA NORTE TEM: MARACATU E LUTATAMBÉM ... 32

1.1–Maracatu Rural: a Brincadeira ... 32

1.2 - Estrada de terra, terreiro, nascente do Maracatu Rural ... 38

1.3– Da Jurema Sagrada ao Carnaval: o secreto e o público no Maracatu Rural ... 53

1.4 - Corpos do canavial: o Caboclo de lança, seu corpo sua dança. ... 64

1.4.1 – Aspectos e elementos estéticos: cena, figuras, música, dança e indumentária ... 65

1.4.2- A caboclaria ... 68

2 – CABOCLAS DE LANÇA: EMPUNHANDO LANÇAS, RESGATANDO MEMÓRIAS ... 75

2.1 – Uma queimada de histórias e memórias... 77

2.2. Feminismo: as estradas percorridas por elas... 87

2.3. Feminismo comunitário e ecofeminismo: manobras pelas matas de nossas avós e bisas .. 97

2.4. AMUNAM: cosendo nossas próprias golas, batendo nossos próprios surrões ... 104

2.4.1 Do silêncio nasceu um grito ... 104

2.4.2 - Coração Nazareno – a rosa do maracatu ... 114

2.4.3 - Igualdade diferente: sim, seremos Caboclas! ... 118

3- CABOCLAS DE LANÇA E FLOR NA BOCA ... 124

3.1 – Eu-Caboca: uma experiência artetnográfica ... 124

3.2 – “Moça, não pode, tu é mulher!” – as barreiras que as Caboclas de Lança encontram .. 138

3.2.1 – Surrão: a bagagem da caboca ... 139

3.2.2 – Gola: cada história, uma lantejoula ... 141

3.2.3 – Guiada: lança que guia e luta ... 148

3.2.4 – Cravo: flor na boca ... 150

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 153

REFERÊNCIAS ... 156

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A MENINA NA PORTEIRA, O RIO E O CORTEJO ADIANTE

“Não bata forte quando passar na porteira, que a pancada da madeira machuca o meu coração Lembra a batida que alguém deu na despedida, fazendo da minha vida morada da solidão” (Zé Miguel)

A minha primeira memória de atravessamento pela arte foi através de uma canção. Uma música que contava uma história. A história de um boiadeiro viajante que teve que lidar com a face da morte em uma de suas versões mais incompreendidas: a morte de uma criança.

Eu estava sentada em um pesqueiro feito pelas mãos de meu avô, na beira do Rio Grande, que banha quase toda a fronteira do estado de São Paulo com Minas Gerais. Esse rio foi onde eu cresci, onde aprendi a pescar, onde aprendi a amar a água doce e o nado e onde eu aprendi a amar as histórias. Foi lá que eu ouvi, da boca desse mesmo avô, além das histórias de terror, as histórias de batalhas (o pesqueiro do meu avô fica em frente a uma ponte da desativada linha férrea Mogiana, que cruzava o Rio Grande e que, por sua característica de fronteira, abrigou algumas das batalhas entre os estados de São Paulo e Minas Gerais durante a Revolução Constitucionalista de 1932 – rememorada no feriado estadual paulista de 09 de julho) e também as modas de viola, as lindas canções que narravam histórias da vida e da cultura caipira, da vida na roça, de boiadeiros, viajantes, amores perdidos, assassinatos passionais, em sua maioria, feminicídios.

Eu tinha 08 anos e ouvia meu avô dedilhando o violão com seus dedos grossos e cantando a ‘terça’ da nota que seu irmão cantava ao seu lado enquanto dedilhava um copo de cachaça. A música era “O menino da porteira”. Um clássico sertanejo. Uma expressão da cultura do caipira. Meu coração de criança não passou incólume a essa narrativa. Quando a música acabou, as lágrimas banhavam meu rosto.

Essa é a minha primeira lembrança de um atravessamento artístico. A primeira vez que enxerguei e experienciei na arte o poder da narrativa. Trato a narrativa aqui como um elemento agregador da comunidade, da família (não enquanto instituição religiosa, mas como um grupo de indivíduos conectados social e emocionalmente), de resgate da memória coletiva, de pessoas que buscam a troca de experiências, um elemento transmissor de tradições, que por vezes extrapola os limites das regras sociais específicas de cada grupo e age como um perpetuador da humanidade, na medida em que o ser que narra transmite a cultura

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oral de seu povo (micro) e histórias e mitos que retratam de um modo geral a humanidade (macro). Assim sendo, a narrativa aqui perpetua a experiência, aos moldes de Benjamin:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos (1994, p. 2).

Eu cresci entre a roça e a cidade, entre o samba e a moda sertaneja. A música e a vida no campo foram elementos constitutivos da minha infância e história de vida. Os momentos de reunião com família e amigos alimentaram em mim o senso de coletividade que hoje é essencial nos meus trabalhos teatrais. Passava férias, feriados e finais de semana me sujando até os joelhos na terra roxa da região de Franca (SP) e Sacramento (MG) e as imagens do cenário de minha infância são compostas pela combinação de rios, cachoeiras, cafezais e cana-de- açúcar, que teve e tem forte influência na economia agrícola de Franca e região.

A chegada da cana-de açúcar na cidade de Franca se deu tardiamente, se tivermos como ponto de referência cronológica o Ciclo do Açúcar, no Nordeste (ocorrido entre o início do século XVI e meados do século XVIII). No ano de 1996, após o resgate do projeto Próalcool (incentivo do governo para a produção de álcool por conta de uma queda do petróleo), as terras ao redor de Franca puderam contar com a presença do seu primeiro hectare de plantação de cana:

Ao analisar os dados fornecidos pelo IBGE, percebe-se que até o ano de 1995 não existia plantação de cana de açúcar na cidade de Franca. A partir de 1996 que começa a surgir plantações de cana na cidade. Os dados extraídos no IBGE mostram que no ano de 1996 a área colhida de cana foi de 900 hectares. No período aqui analisado nota-se que houve um aumento de 188,89% na área colhida, passando de 900 hectares em 1996 para 2.600 hectares em 2010 (LESSA; SILVA. 2012, p. 101).

Desde então, a paisagem rural de Franca e região passou a sofrer grandes transformações. Campos e áreas anteriormente livres e arborizadas ou com o cultivo variado da agricultura deram espaço ao verde hegemônico e dominador dos canaviais. Com eles surgem os trabalhadores da cana, inseridos em um ritmo e condições de trabalho árduas: muitas horas sob o sol, alimentação no ambiente de trabalho (também sob o sol), grande exigência de esforço físico, inalação da fumaça e toxinas provenientes das queimadas, baixos salários. Solos destruídos e inutilizados para outros cultivos, o cheiro acre da queimada, a poluição do ar e o corte da cana invadem a cidade e região, me colocando em contato visual

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com esses corpos do canavial1, corpos esses que atualmente compõem o quadro de meu estudo nessa dissertação: o Coração Nazareno, grupo de Maracatu Rural, nascido em 08 de março de 2004, formado exclusivamente por mulheres e ainda ativo em Nazaré da Mata, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, sobre o qual entrarei em detalhes nesse trabalho.

Foi seguindo o meu encanto pelos acontecimentos históricos, pelas narrativas das batalhas feitas e vividas por homens, que iniciei o meu percurso acadêmico no ano de 2005 ingressando no curso de História da Universidade Estadual Paulista-UNESP – em Franca/SP. Nesse período eu já fazia teatro e nunca deixei de fazer, durante toda a graduação. Foi então que eu comecei a encontrar um jogo interessante entre a História e as Artes da Cena. O entrecruzamento dessas duas áreas foi inevitável e ainda me acompanha em meus estudos, escritos e apreensões. Importante salientar que esses ‘homens’ os quais me refiro, os protagonistas dos acontecimentos históricos, são homens brancos, colonizadores e ocidentais. Faço a ressalva, por se tratar do sistema educacional dos anos 90/2000, período anterior ao sancionamento e publicação da Lei 10.639 (2003)2, que incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”. Portanto se tratava de um sistema educacional extremamente excludente no que diz respeito às histórias dos povos dominados, explorados e dizimados, bem como às histórias das mulheres. Atualmente, após a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018, os direitos assegurados por essa lei encontram- se ameaçados, já que se trata de um presidente que ignora os princípios de um estado laico, pregando a ideia de devoção e adoração a um deus único e hegemônico, deixando de fora grande parte da diversidade cultural e religiosa que habita nosso país.

A minha graduação foi extremamente masculina. A maior parte dos meus colegas eram homens. Dos professores também. O movimento estudantil: masculino. Os grupos de extensão: masculinos. As instâncias do machismo se davam de maneira demasiadamente alargada e a discussão feminista no meio acadêmico ainda se fazia tímida às minhas percepções. Eu e as minhas colegas de turma falávamos menos, tínhamos menos espaços. Nas salas de aula, nas reuniões do centro acadêmico, nas assembleias, na mesa de bar, os teóricos que estudávamos, todos (ou quase todos) eram homens. As professoras que compunham o quadro docente, ou cumpriam o papel de “loucas”, ou de “mulher-macho”, para poderem alcançar um lugar de fala minimamente respeitado entre os homens que

1 Grifo meu, pois mais adiante, vou desenvolver esse conceito. Aqui, o importante é a reincidência

desse referencial de um mesmo “tipo” de corpo, notado por mim, repetido pelo elemento do trabalhador da cana de açúcar.

2 A Lei 10.639 foi decretada e publicada no dia 9 de janeiro de 2003. Fonte:

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dominavam o programa educacional universitário. Eu não me dava conta dessa situação com o discernimento de hoje. Apenas tentava me igualar a eles, para conseguir conquistar meu pedacinho de terra na ‘homenlândia’.

Hoje, olho para esses fatos e volto para a imagem inicial desse escrito. Eu só citei dois homens à beira do Rio Grande, não é mesmo? Mas tinha também uma mulher. A minha avó. A minha avó, nessa cena, não canta. Ela assobia. Ela está lá, presente. Ela é a base daquela reunião. Ela conhece a música, ela sabe a letra, ela é tocada pela história, mas ela não canta. Ela assobia. Ela faz o plano de fundo. Ela faz a cama. Ela secunda. Ela não protagoniza. Esse lugar de cantoneira ocupado pela minha avó, refletido em todas as outras mulheres de minha família e em mim, sempre me intrigou. Porque, apesar de declarada a importância das mulheres nos ambientes e apesar de fazermos sempre todo o trabalho de base e sobrevivência familiar, estávamos sempre fora do protagonismo, eu me perguntava. Segundo Simone de Beauvoir3, que desenvolve a ideia de que somos seres sociais, as diferenças entre homens e mulheres são muito menos biológicas e, portanto, muito mais construídas socialmente.

É, portanto, à luz de um contexto ontológico, econômico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados da biologia. A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades individuais são fatos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa nesse mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta para fornecer uma reposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o

Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história;

trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana (BEAUVOIR, 2016, p65, grifo da autora).

Sob as égides do patriarcado e sendo mulher, foi no teatro que encontrei meu espaço de fala. Ou ao menos a possibilidade de cavar o meu espaço de fala. Com as diferenças entre seres e corpos confluindo para a criação, foi no teatro que entendi que eu poderia cantar, se quisesse. E não apenas assobiar a vida toda, atrás de uma voz, outras vozes, mesmo sendo mulher.

O meu primeiro contato com algumas Brincadeiras do Nordeste se deu ainda em Franca, durante o período da graduação (no entanto, fora do ambiente acadêmico) através do meu encontro com meus conterrâneos Pedro Fonseca e Priscila de Col que, após concluírem seus estudos acadêmicos em Musicoterapia e Pedagogia na Universidade Federal de São

3 Simone de Beauvoir (1908 – 1986), escritora francesa, filósofa e crítica social, grande responsável

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Carlos – SP (UFSCAR), retornaram à Franca com o objetivo de fundar o Centro Cultural Cangoma4 e assim passaram a transmitir os conhecimentos e contatos que eles tiveram com os mestres e mestras de Maracatu Nação5 (nesse período, início da década de 2000, o Maracatu Nação passava por um processo de difusão nacional), Coco de roda6, Cavalo Marinho7, Jongo e Batuque de Umbigada8. Assim, através de oficinas abertas, iniciei meu contato e participação no Grupo Cangoma. Foi no Cangoma que eu peguei pela primeira vez uma alfaia9 em 2005. Foi também com meus parceiros do Cangoma (em 2009) que eu tive a oportunidade de participar de uma vivência com o Mestre Walter Ferreira de França e o Mestre Maurício Soares10 (da Nação Estrela Brilhante do Recife) ocorrida em parceria com o Rochedo de Ouro (grupo de Maracatu), em São Carlos / SP. Nesses dias em que estive com outras batuqueiras e batuqueiros, percebi que a tendência “natural” dos participantes era deslocar as mulheres para os agbês11 ou para a dança (coordenada por Maurício), deixando o manuseio das alfaias (tanto os baques quanto a afinação, que requer alguma força física) para os homens. Eu queria a alfaia. Recebi um olhar desafiador de alguns homens que estavam em volta que, enquanto eu colocava a alfaia no ombro, faziam a ressalva do quanto aquele instrumento era pesado.

Ao findar a minha graduação em 2009, constatando que a minha cidade tinha as limitações características de uma cidade de interior em relação a possibilidades de formações artísticas e teatrais, preparei a minha ida para a capital, São Paulo. Romper com a família e com a cidade natal: uma passagem.

4 O Centro Cultural Cangoma existe há 13 anos e tem a sua sede em Franca, atuando como um espaço

voltado para a divulgação, sensibilização e produção artística e cultural, fomentando através de oficinas e atividades diversas o contato e a valorização com as artes do povo.

5 Maracatu Nação ou Maracatu de baque virado é outro tipo de maracatu, presente na zona urbana da

Grande Recife. Ao longo do Capítulo I dessa dissertação, ele será abordado mais profundamente.

6 Coco de Roda, manifestação cultural presente em muitos estados da região Nordeste. Nesse caso, se

trata do coco pernambucano, cantado e tocado em roda, com homens e mulheres dançando ao centro, com movimentos que fazem menção à umbigada.

7Cavalo Marinho, manifestação cultural dos estados de Pernambuco e Paraíba. É uma festa de Boi, que

celebra os três reis do oriente. Configura-se na junção de várias linguagens, como dramaturgia, teatro, dança e música.

8 O Jongo e o Batuque de Umbigada estão presente exclusivamente na região sudeste, mais

especificamente nos estados de SP e RJ, são dançados em roda, com tambores e têm em comum a umbigada, símbolo da fertilização. São práticas culturais de herança afro.

9 Grande instrumento feito de madeira e couro, que compõe um dos naipes do Maracatu Nação. 10 Mestre Walter é o ex- regente dos batuqueiros da Nação Estrela Brilhante e o Mestre Maurício é o

responsável pela dança dos membros da corte que compõe o maracatu.

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Cheguei a São Paulo e ingressei na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT)12. O espaço educacional que conseguiu o que poucos espaços educacionais conseguiram: fomentar a minha autonomia nos processos artísticos e criativos e – consequentemente - na vida. A ELT é um emaranhado de saberes, teorias e práticas, mas eu poderia simplificar dizendo que ela baseia seu sistema pedagógico em dois conceitos: autonomia e horizontalidade. Luis Alberto de Abreu, autor, dramaturgo e um dos idealizadores do projeto ELT, em um relato feito em 2000 sobre a escola, diz que sua experiência naquele lugar foi “absolutamente fascinante” e afirma que a Escola Livre “não se reduz a uma escola de teatro como tantas outras. É muito mais. É uma ‘experiência artística’ pela qual ninguém passa incólume”13.

A ELT não fornece o DRT, não tem um quadro fixo de componente curricular, não é reconhecida pelo MEC. Se propõe a ser uma escola de teatro orgânica, viva e em constante movimento, tendo como objetivo principal fomentar o fazer artístico em processos colaborativos, trazendo as figuras mestre/aprendiz e suprimindo a ideia de professor/aluno- quando esta está ligada a processos pedagógicos verticais, em que o professor detém todo o conhecimento e o aluno é apenas um receptáculo de informações. Assim, fomenta a horizontalidade ao tratar a aprendizagem e o ensinamento como fluxos de trocas múltiplas, levando-se em conta a bagagem histórico-social do indivíduo e analisando especificamente sua existência em grupo.

(...) os discursos que a própria ELT enuncia em suas publicações, na produção artística, nas memórias e esquecimentos de seus sujeitos, assim como as enunciações outras – classe artística e imprensa são fios de uma trama que se sobrepõem para o entendimento de uma escola de teatro (LEITE, 2010, p. 32).

Ela é uma fenda no espaço-tempo da educação. É singular. Se você passa por baixo de suas águas (turbulentas, eu diria) você sai transformado. Foi na ELT que eu aprendi a trabalhar ‘o’ e ‘no’ teatro e entendi que o teatro é um ofício. Foi na ELT que eu me deparei novamente (depois da vivência com mestre Walter) com a figura de um mestre. E para a minha surpresa: com uma mestra. Uma não. Duas, três, quatro, várias mestras. Lucia, Juliana,

12 ELT – Escola Livre de Teatro, fundada em 1990, mantém núcleos de formação artística variados,

tendo como formação mais longa o Núcleo de Pesquisa Continuada com duração de 04 anos. É localizada na cidade de Santo André, região do ABC Paulista.

13 Trecho do texto: “Escola Livre: volume e profundidade de uma experiência artística” localizada na

biblioteca virtual da ELT, no endereço eletrônico: https://portallivredeteatro.com/textos/ (acesso: 02/11/2017).

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Cris, Mariana, Verônica, Tata, Cuca.14 Artistas e educadoras. Mulheres que me ensinaram, através do aprendizado artístico, que eu poderia sim deixar de assobiar pelos cantos. Que eu iria cavar meu espaço. Foi em um processo da Escola Livre de Teatro de Santo André que se deu o meu primeiro encontro com a artista e mestra que iria mudar para sempre a minha relação e o meu entendimento de ‘corpo’. A minha orientadora Luciana Lyra. A passagem de Luciana Lyra pela ELT levou para escola o universo das Brincadeiras15 do nordeste. Atuando como preparadora corporal de minha turma (Formação 15), por exemplo, sempre aquecíamos dançando o Coco de Roda pernambucano, ou brincando o passo do “mergulhão”, do Cavalo Marinho.

Quando meus estudos e processos na ELT terminaram, eu já havia formado o coletivo teatral que integro ainda hoje, o Poleiro do Bando. O Poleiro é um coletivo de amigos e parceiros na vida e na arte e lá começamos a experimentar projetos e desejos artísticos que colocassem em prática as lógicas e os mecanismos da coletividade e da criação colaborativa em processos criativos. Como não poderia deixar de ser, os meus trabalhos dentro do Poleiro trouxeram à luz as questões de gênero. Com integrantes mistos (homens e mulheres), nós fizemos a maioria dos trabalhos com direção feminina. O espetáculo Família Formigueiro Casa Condomínio é um infantil com temática LGBT que foi contemplado pelo ProAc-LGBT16 para abordar a família e suas diversas possibilidades de configuração. Foi dirigido por uma mulher, Mariana Vaz17, e fizemos o treinamento de atriz/ator com outra mulher Beatriz Coelho18, que nos trouxe seu trabalho de treinamento corporal através das danças dos Orixás. Logo após cumprir o ProAc, fomos contemplados também pelo Prêmio Zé Renato19 e pudemos assim transitar por São Paulo com o nosso projeto “Desconstructo”, que colocou em circulação mais dois de nossos trabalhos além do infantil (Playground e Tão Pesado Quanto o

14 Lucia Helena Gayotto, fonoaudióloga, diretora vocal e interpretativa da Companhia Livre de Teatro

e docente na ELT; Juliana Monteiro, professora de teatro na UFSJ, atriz e diretora; Cris Lozano, diretora da Companhia Livre de Teatro e docente na ELT; Cuca Bolaffi, atriz, diretora, pesquisadora das máscaras da Comédia Dell’Arte e docente da ELT; Verônica Nobili, atriz, diretora, professora, contadora de histórias e dubladora; Tata Fernandes, cantora, instrumentista, atriz e professora;

Mariana Senne, professora, atriz e diretora integrante da Cia São Jorge.

15 Brincadeira foi um termo adotado por mim para referenciar as manifestações culturais tradicionais

Existem outros termos utilizados por pesquisadores, como folguedo e cultura popular. . A discussão e reflexão sobre a escolha desse termo está explícita no início do 1º capítulo.

16 Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo. Lei de incentivo cultural do estado de São

Paulo.

17Mariana Vaz de Camargo, é artista, com ênfase em intervenção urbana, performance e direção teatral. Compõe

o Núcleo Tríade de pesquisa em performance e dança.

18Beatriz Aranha Coelho é artista do corpo, educadora, produtora e preparadora corporal. Atua como

artista educadora de dança para crianças na Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA-SP).

19 Programa de apoio, criado para fomentar a produção e o desenvolvimento da atividade teatral para a

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Céu) que – mesmo não tendo como temas principais – abordavam minimamente as questões conflituosas de gênero e o lugar da mulher na sociedade, o feminicídio, o machismo e o patriarcado.

Como parte das ações do Prêmio Zé Renato, promovemos três mesas de debates com convidadas para tratar essas questões, mediadas por nós: Mc Linn da Quebrada (parceira da ELT), Fala Guerreira, Lauren Zeytounlian e Amara Moira20 estiveram presentes conosco, debatendo as questões de gênero e do lugar da mulher nas artes e sociedade. Assim, minha aproximação com essa temática e a necessidade de fazê-la sempre presente em minha ótica de trabalho foi se tornando mais clara em meu percurso artístico.

Quando decidi sair de São Paulo em busca da pós-graduação em Artes Cênicas, sabia que meus pés me guiariam para o caminho das Brincadeiras, esboçando um ato de retorno àquele pesqueiro na beira do rio (estando eu agora, desaguando à beira mar), dando vazão aos ecos que a figura desse narrador (meu avô) pode ter em outras regiões do país. Sabia igualmente que, após ter caminhado por essas estradas, eu não seria capaz de tratar de nenhum tema sem aplicar a lente do feminismo, sem dar mais luz às possíveis ‘avós’ que estão por aí sem o reconhecimento do protagonismo nas cenas da vida, da cultura e da arte. A presença esmagadora dos homens no centro das tradições culturais atrai meus olhos para as mulheres que estão ali, às margens (mas talvez não tão à beira assim),fazendo o trabalho de base, sustentando as manifestações. Cosendo, cozinhando, tecendo, carregando, assobiando.

Meus sentidos começaram a se voltar justamente para estes corpos de base, olhando para as mulheres partícipes destes brinquedos, tomando o Maracatu como deságue de minhas reflexões, já que o Maracatu (como muitas outras Brincadeiras) apresentava nuances da reprodução do sistema patriarcal, hierarquizando funções conforme o gênero. O Maracatu Nação e o Maracatu Rural (ou Maracatu de Baque Virado e Maracatu de Baque Solto) apresentam diferenças fundamentais, sendo que em sua origem, um se desenvolveu na zona urbana e outro na zona rural. Apesar de ambos apresentarem elementos coincidentes, como a coroação, a corte, e a própria Calunga (boneca protetora), os instrumentos são outros e a base

20Linn da Quebrada, artista trans, performer e cantora de funk, se considera terrorista de gênero. Lauren Zeytounlian, doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas na área

de Estudos de Gênero e membro do Pagu-UNICAMP. Tem como interesses principais de pesquisa: gênero e sexualidade, relação entre mídia, ativismo, marcadores sociais da diferença e mercados do sexo. Fala Guerreira, coletivo feminista que age nas periferias de São Paulo, promovendo encontros, rodas de conversa e debates sobre a temática feminista. Amara Moira, é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e autora do livro autobiográfico "E se eu fosse puta" (hoo editora, 2016).

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das toadas, as vestimentas, algumas figuras21, a movimentação cênica e até mesmo os fundamentos religiosos não são os mesmos. Atualmente, em ambos se vê a presença feminina. Com a discussão feminista avançando, vemos mais mulheres batuqueiras nas nações de Maracatu de Baque Virado e vemos mais mulheres ganhando espaço nas cortes dos Maracatus de Baque Solto, mas nunca nos importantes cordões dos caboclos de lança22. Nunca, até o nascimento do Coração Nazareno, em 2004.

Tradicionalmente compostos por homens, os Maracatus Rurais da Zona da Mata Norte do estado de Pernambuco vivenciam um movimento recente: a presença feminina no brinquedo. O Maracatu Rural sempre foi caracterizado pela forte presença masculina. Por muitos anos, somente os homens podiam participar do brinquedo e até mesmo as figuras femininas (as baianas) sempre foram representadas por eles, como citado anteriormente. Segundo alguns brincantes23, essa restrição ocorria porque além do peso das roupas e dos surrões24 carregados pelos folgazões, o brinquedo se fazia muitas vezes agressivo e perigoso:

Aos poucos, o espaço para a participação feminina no maracatu rural foi-se abrindo. Antes, nenhum pai de família em sã consciência permitiria que sua esposa ou filha participasse de uma brincadeira que, muitas vezes, transformava-se num campo de guerra. O próprio Joãozinho Padre, ex-presidente do Maracatu Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, afirma, em depoimento dado ao Canal 03, quando da gravação do DVD “A Cambinda do Cumbe”, lançado em 2006, que “naquele tempo era muita violência... só brincava cabra que era preparado pra cacete... era época que tinha isso... o maracatu não podia se encontrar no caminho com outro maracatu, era pra se acabar no cacete” (BATISTA; MOURA, 2016, p.96-97).

Após horas dançando, tocando e bebendo muita cachaça, no clima do festejo do carnaval, os grupos saíam às ruas e se ocorresse um encontro entre grupos distintos, os caboclos de lança entravam em embates que partiam para a agressão física. Segundo Valéria Vicente, dançarina, passista e professora pesquisadora em Artes Cênicas da UFPB (Universidade Federal da Paraíba), a antropóloga estadunidense Katarina Real (que estudou o maracatu pernambucano nas décadas de 60 e 90) relacionou a existência desse caráter

21 Figuras, aqui, correspondem ao que seriam personagens no teatro convencional. É um termo

utilizado também pelos folgazões de outra Brincadeira pernambucana, o cavalo marinho, em que as figuras são representadas por máscaras e roupas caricaturais de tipos e arquétipos clássicos da arte de rua, como o Valentão, a Véia do Bambu (uma velha), o Soldado da Gurita, o Dotô (um doutor), como também de tipos locais e regionais, como o mané Taião, Mané Chorão, Empata Samba e outros.

22 Caboclo de lança é uma das figuras centrais do Maracatu de Baque Solto. Será amplamente

abordado ao longo da dissertação.

23 Brincante, brincador, folgazão, sambador, são termos que se referem às pessoas que sambam

maracatu.

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combativo dos caboclos de lança com os quilombos da região e “resgatou documentos que falavam do Quilombo de Catucá, localizado nas proximidades de Goiana, cidade da Zona da Mata Norte, por volta de 1828” (VICENTE, 2005). Pela apreensão da antropóloga, os caboclos seriam descendentes (não apenas de laços sanguíneos, mas também dos traços culturais e comportamentais) desses quilombolas, que tinham o hábito guerreiro de atirar-se contra os povoados vizinhos, sempre agressivos, pois sempre em estado de alerta na resistência e na luta contra o estado ou qualquer um que pudesse ameaçar a existência do quilombo.

Para além da herança histórica de inclinação à peleja, esse caráter sempre manteve afastadas as mulheres, que dentro da organização patriarcal, deveriam necessariamente ocupar a esfera privada, cuidando da casa e dos filhos, não podendo arriscar sua integridade física. Entretanto, esse cenário foi-se modificando com o passar do tempo e as alterações relacionais ocorridas na sociedade:

A maioria das mulheres que decidiram quebrar os tabus e entrar nesse universo cultural, dominado por homens, começaram como a Maria José25,

observando, cuidando das fantasias, confeccionando-as e acompanhando de longe as brincadeiras, porém com um desejo latente de participar delas. Enquanto os homens as consideravam frágeis e impuras, as mulheres tinham certeza de sua força e capacidade para enfrentar os desafios de brincar os dias de carnaval com um “surrão” nas costas e sem descuidar de suas obrigações (SILVA; FILHA; PINTO, 2015, p.57- 58).

Sendo um processo relativamente recente, a entrada de mulheres como integrantes de Maracatus e até mesmo a posterior formação do Maracatu Rural Coração Nazareno, esboça uma alteração fundamental no que diz respeito à discussão de gênero na arte.

Fundado em 2004 como uma das ações da AMUNAM (Associação de Mulheres de Nazaré da Mata), o Coração Nazareno é o primeiro e único grupo exclusivamente feminino, trazendo na história de sua existência, a resistência de um grupo fortemente vanguardista. Mulheres passam a brincar o maracatu, indo além dos espaços delimitados e permitidos pelos homens. E isso é inédito. Após o nascimento do Coração Nazareno, pôde-se ver pela primeira vez desfilando pelas ruas tradicionais de Nazaré da Mata, uma mestra, seu terno (o conjunto musical) composto por instrumentistas e, o que mais choca os cidadãos de Nazaré já inseridos na tradição: as Caboclas de Lança.

A AMUNAM surgiu da necessidade de representação feminina no contexto do corte de cana de Nazaré da Mata. Vítimas do patriarcado e da dominação masculina, as

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trabalhadoras não tinham espaço de fala nem poder de voto dentro do sindicato dos canavieiros, podendo estar presentes nas reuniões, porém sendo privadas das decisões que diziam respeito aos seus cotidianos de trabalho. Assim, a AMUNAM age para reunir essas mulheres, criando laços e lutando pela igualdade de gêneros. Falarei mais sobre a história e as ações da AMUNAM adiante, bem como sobre as Caboclas de Lança.

As Caboclas são a base do estudo dessa dissertação. O trabalho tem como objetivo principal compreender como se dá a composição da figura da Cabocla de Lança até então sempre – estritamente – vestida por homens, nos corpos das mulheres do Maracatu Coração Nazareno. Terei como questões norteadoras, decorrentes e complementares da questão principal, o foco em compreender a singularidade de um possível protagonismo artístico feminino como expressão de subversão artística/política, a investigação dos processos criativos e de construção do corpo cênico e como eles transitam entre cena e performance.

O trabalho fundamenta-se em um estudo com bases artísticas, históricas e antropológicas para o desvendamento e discussão sobre o papel ocupado por mulheres em manifestações culturais de cunho religioso/ritualístico/artístico, dando foco ao protagonismo das mulheres na cena do Coração Nazareno.

Para além da revisão bibliográfica acerca da brincadeira do Maracatu Rural, o caminho metodológico que embasou e possibilitou o trabalho foi a Artetnografia, conceito/prática criado e desenvolvido por Luciana Lyra em seu processo de Doutoramento em Artes pela Unicamp, concluído em 2011 e aprofundado no seu pós doutoramento em Antropologia pela USP, concluído em 2013. Com o suporte na Antropologia da Performance e com base nos autores que abordam a pesquisa etnográfica, Lyra propõe o que chama de Jornadas Artetnográficas buscando a compreensão do fazer artístico quando esse passeia sutilmente entre vida e cotidiano, ritual e tradição, criação e performance, revelando uma trama híbrida de limites no que concerne à criação e fazer teatral, performance e vida política e cultural. A Artetnografia “constitui-se como um operador que promove a contaminação entre artistas e comunidades. Sendo que estas comunidades são delimitadas, a partir das dinâmicas pessoais dos artistas no processo de criação.” (LYRA, 2013), propondo assim o encontro do eu (o artista/pesquisador) com o outro (a comunidade), para o retorno ao eu, gerando uma identificação fragmentada da individualidade do artista com a alteridade.

Ao encarar o outro, o artista reconhece a si mesmo, ainda que oriundos e inseridos em contextos sociais distintos, o reflexo se dá na esfera mais sutil e subjetiva do que constrói as complexidades da humanidade. Remetendo à imagem de um espelho quebrado, cacos estilhaçados gerados por esse encontro que complexifica a compreensão do que sou eu e do

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que é o outro. Pela aproximação do campo da antropologia com a arte, apoiada no conceito de Antropologia da Performance, de Victor Turner, a Artetnografia é um mergulho, um contato intenso, inter-subjetivo com o grupo social em questão a fim de compreender como esses sujeitos se organizam e estabelecem seu sistema de significados culturais, viabilizando assim esse pressuposto protagonismo feminino, mas sem deixar de lado o sistema de significados culturais do artista/pesquisador. Sobre o encontro da antropologia com a arte, diz Lyra:

(...) fascinei-me sobremaneira pelo olhar do antropólogo sobre o outro, percebendo pontos de contato entre este olhar e o olhar do ator sobre si mesmo. A meu ver, o olhar do antropólogo na decifração do outro parece construir um mundo de imagens, ideias e sentimentos, que acabam por ganhar expressão de um si mesmo do antropólogo. Ao mesmo passo, o olhar do ator a decifrar-se desvela o outro, mesmo que no seu plano subjetivo, poético. A criação teatral é assim, ato que nos faz sair de nós mesmos, uma exigência do olhar que detona o mundo visível para criar uma nova imagem de mundo (LYRA, 2013, p.12)

Portanto, no decorrer da dissertação, através de minha Jornada Artetnográfica, pretendo compartilhar a prática experienciada por mim ao sambar o Maracatu como Cabocla de Lança26, no período carnavalesco do ano de 2018, juntamente às brincantes do Coração Nazareno. Certamente, por se tratar de uma observação profunda e porosa, o relato da experiência não se restringe aos poucos, porém intensos minutos das apresentações junto ao Maracatu. Fazem parte desse compartilhamento e das reflexões investigativas do eu e do outro as conversas, as refeições, os ensaios, as sambadas, as oficinas de gola e chapéu, os testes de roupas, as viagens de ônibus, os momentos de lazer e as noites passadas durante esse mergulho com elas. Momentos de minha jornada, no ano de 2018, em que eu estive em experiência artística intensa.

Ressalto, no entanto, que mesmo na tentativa de me aproximar e viver a realidade dessas maracatuzeiras me colocando junto a elas, e ao coletivo e compartilhando esses momentos, ainda permanecem a salvo singularidades subjetivas, as divergências históricas, sociais e culturais vindas do fato de eu ser ainda uma artista-pesquisadora externa àquela comunidade. Por mais que essa experiência tenha trazido à tona inúmeras identificações, sentimentos de empatia e compartilhamentos de sentimentos e emoções, eu evidencio aqui, a consciência do meu lugar de fala, uma universitária, vinda da região sudeste do país. A

26 A utilização etimológica do termo no gênero feminino é extremamente atual e singular, já que o

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compreensão do princípio Artetnográfico aqui é fundamental, pois não pretendo tornar a minha passagem por lá e nossas trocas e vivências em conjunto como um retrato fiel e definitivo de suas realidades. As considerações de Lineu Guaraldo, também brincador e pesquisador do Maracatu Rural explicam:

A prática investigativa, qualquer que seja, carrega em todo seu percurso - da raiz aos frutos - as motivações dos sujeitos que as implementam. A consciência desta subjetividade por parte do sujeito que conduz a pesquisa é fundamental para que a investigação desenvolva-se com clareza em seus recortes e objetivos. Mesmo em pesquisas que buscam relações mais horizontais, onde são dinâmicas e movediças as posições ocupadas pelos sujeitos investigadores e investigados, há de se manter a consciência dos interesses que se manifestaram por meio das inquietações iniciais (2017. p.5) Durante a jornada, foram horas de tempo juntas, em conversas conjuntas e individuais com as mulheres, em que eu pude compreender e contrastar suas opiniões, construindo um debate entre pontos de vista envolvendo questões de gênero e as relações sociais provenientes dessas. Assim, pude confrontar nossas histórias, vivências e depoimentos com a discussão histórico-antropológica acerca da dominação masculina inclusive no campo de criação artística. Junto a elas, vivenciando e observando ativamente seus procedimentos cotidianos, pude compreender parte seus processos de organização, abrindo espaço para a descoberta de novas formas do fazer artístico que viabilizem o questionamento do lugar secundário que a mulher pode ocupar em um processo artístico-criativo. Por fim, a experiência em campo por mim vivenciada, que atua como força motora de toda a investigação e que ocorreu entre outubro de 2017 e janeiro de 2019. Sendo agora a AMUNAM uma de minhas casas, pois por mais que as experiência de campo para as investigações do mestrado tenham terminado, nossos laços permanecem e seguimos em contato, sem data para findar, felizmente.

No primeiro capítulo que intitulo ‘Na Mata Norte tem. Tem Maracatu também’, passo pelos caminhos de origem, surgimento, prática e tradição do Maracatu Rural, suas características e sua importância no cenário de resistência cultural rural pernambucana, como um Brinquedo pertencente ao ciclo carnavalesco do Brasil. Desdobro a abordagem passando por seus aspectos estéticos, referenciando-me principalmente nos estudos de Roseana Borges de Medeiros (2003), Valéria Vicente (2005), Marco Camarotti (2011), José Roberto de Feitosa Sena (2012) e Maria Celeste Mira (2016). Ainda nesse capítulo, busco explanar sobre a caboclagem em performance, acerca do caboclo de lança como uma figura que transita entre forças estéticas e rituais na cena do Maracatu Rural, tendo os trabalhos de Luciana Lyra e

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Victor Turner como aporte teórico para tratar dos aspectos performáticos do caboclo. Por fim, ainda nesse capítulo, apoio-me no que nomeei corpos do canavial para compreender a composição cênica desse corpo que dança e brinca. A leitura dos trabalhos “Cravo do Canavial”, de Carla Pires Martins (2013) sobre a mimese corpórea do caboclo, relacionada ao conceito do BPI (Bailarino, Pesquisador e Interprete) de Graziela Rodrigues (1997) e aos trabalhos de Carolina Laranjeira (2013) e Luciana Lyra (2005; 2010) sobre os estados corporais no Cavalo Marinho embasaram meus entendimentos acerca desses corpos do canavial.

O segundo capítulo dedica-se à cena do Coração Nazareno e seus desdobramentos dentro da perspectiva feminista, analisando a singularidade transgressiva de um maracatu brincado exclusivamente por mulheres e como essa subversão no papel da mulher na tradição cultural reverbera na sociedade e relações políticas desenroladas a partir desse agora protagonismo feminino. Foram referências, Simone de Beauvoir (2016) e Judith Butler (2015), como base da reflexão feminista clássica. Vandana Shiva (2002), Julieta Paredes (2014) e Djamila Ribeiro (2017) contribuíram na compreensão de um pensamento mais local e com dimensões da realidade latina no feminismo, proporcionando um olhar menos hegemônico. Endossam a reflexão da prática feminista no Brasil, as autoras Margareth Rago (2013) e Amelinha Teles (2017), além da dissertação de Rosa Ana Gubert (2012), que aborda a cena teatral de mulheres camponesas, embasando a compreensão do lugar de fala de um grupo com a realidade rural.

O Terceiro capítulo é um relato pessoal acerca da jornada artetnográfica experienciada em Nazaré da Mata com o maracatu Coração Nazareno, o imaginário tramado entre mim e as demais Caboclas deste coletivo. Ainda no terceiro capítulo, abordo os processos cênicos criativos pelos quais esses corpos passam para vestir e brincar com figuras que historicamente foram construídos por corpos exclusivamente masculinos, além de relatar a experiência artística intensa, repleta de complexidade e subjetividade através da qual pude encontrar e garantir o meu lugar de fala ao lado dessas mulheres. É base referencial desse capítulo os estudos de Luciana Lyra (2005; 2011; 2013; 2015), orientadora dessa pesquisa, que desenvolveu o conceito da Artetnografia, caminho metodológico do trabalho em campo realizado para a escrita dessa dissertação.

Levando em consideração tantos anos de história (incluindo a história pré-colonial), prática e resistência das múltiplas tradições e Brincadeiras no Brasil, é muito importante frisar que a bibliografia acerca delas é ainda recente e pouco volumosa. Em especial o Maracatu Rural, tem uma bibliografia ainda mais tímida, com trabalhos acadêmicos relativamente

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novos sobre o tema. Acredito que esse trabalho possa somar e fortalecer, semeando as vontades de ver florescendo no campo acadêmico esse assunto, a fim de ramificar e propagar os olhares artísticos dentro do âmbito universitário para essas manifestações, que constituem a história do país em sua origem, raízes. Sobre tantos anos de resistência, temos ainda muito a descobrir, olhar, discutir e principalmente aprender com a sabedoria ancestral das mestras e mestres.

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1 - NA MATA NORTE TEM: MARACATU E LUTATAMBÉM

“O maracatu rural é a minha diversão Quando chega o carnaval palpita meu coração Pelas pancadas do terno que agita minha nação (...) Respeitando o ritual de muitos anos atrás Como era no passado, no presente a gente faz Todo ano nossa peça continua em cartaz” (Loa do Grupo Cultural Caboclo)

1.1–Maracatu Rural: a Brincadeira

Falar sobre tradição é desafiador. Não apenas pelos mistérios que ela sempre apresenta, mas também por suas implicações como um conceito que aparece sempre atrelado a outros tão delicados quanto: folclore e cultura popular27, por exemplo. Pensar e buscar entender uma cultura tradicional pede um olhar minucioso e delicado, já que se trata de uma cultura (em muitos casos, atrelada a religiosidade e espiritualidade) que atravessa os tempos, permeia gerações, resiste a possíveis alterações sociais e organizacionais da sociedade. A tradição, no entanto, permanece porque existe de maneira maleável, não enrijecida por moldes impenetráveis. Porosa, porque precisa ser porosa, para poder resistir, invocando a imagem de uma vara de bambu, que precisa ceder, para não quebrar ao envergar em águas densas de rios, aos puxões violentos dos peixes que devoram suas iscas.

No âmbito da arte, seja na dança, no teatro, na arte dramática, ou em quaisquer outras manifestações artísticas pertencentes a camadas sociais não dominantes, é muito comum encontrar uma classe intelectual que se interessa por essas expressões artísticas ocorridas fora dos espaços oficiais que legitimam a ‘arte’. Vale ressaltar que os aspectos legitimadores da ‘arte’ passam por crivos e categorizações tendenciosas, da hegemonia ocidental, europeia e branca.

O olhar colonizador nomeia “povo” todos aqueles que são subalternos e não figuram nos espaços de poder. No entanto, é fundamental nos conscientizar de que esse “povo”, tratado como minoria exótica e peculiar é na verdade grande parte das populações dos países que foram colonizados. O que o colonizador trata como peculiar e diferente é a originalidade de pessoas que, desde tempos pré-coloniais habitam os países dominados. Assim, ao pensar

27 Por razões que envolvem significados terminológicos, quando fora de citações de terceiros, o termo

‘cultura popular’ aparecerá destacado em itálico durante todo esse tópico, enquanto discutimos os conceitos que o envolvem. Ao final do tópico será explicada a razão de ele não mais aparecer ao longo da dissertação.

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em povo, proponho que a referência não seja a do colonizador e sim a dos colonizados. Povos originários, com suas especificidades étnicas, com suas culturas complexas e tradicionais, detentoras de sabedorias milenares, que habitavam essas terras antes de Colombo e os invasores chegarem. Povos que tiveram e têm seus filhos e descendentes ainda aqui. Com seus hábitos, sua cultura, seu conhecimento e sua arte própria. E, como grupo integrante desses povos, as mulheres, que são ativas, presentes, atuantes e mantenedoras da sociedade tanto quanto os homens e, no entanto, seguem sendo tratadas como “minorias”.

Isso posto, voltemos ao interesse da classe intelectual nas artes populares. O interesse pelas culturas tradicionais é despertado por alguns de seus aspectos genuínos: oralidade, referência à vida do campo e à vida em comunidade, drible aos objetivos e as especulações financeiras que assomam e ditam os rumos de uma arte mais mercadológica. Segundo Maria Celeste Mira, a classe intelectual atualmente trabalha cada vez mais para desvincular a ideia de cultura popular ao folclorismo, e associá-la à ideia de diversidade cultural. Para a autora, o debate sobre o conceito da cultura popular é histórico:

O debate sobre a cultura popular tem uma história. Sua origem remonta à formulação do conceito entre o final do século XVIII e o início do XIX. De acordo com Peter Burke (1989), a ideia de cultura popular começa a se delinear a partir da valorização que os românticos vão fazer da volta à natureza, ao campo, sinônimos da simplicidade e da autenticidade que a nascente civilização moderna começava a conspurcar (MIRA, 2016, p.429). Segundo Peter Burke, foi “quando a cultura popular tradicional estava justamente começando a desaparecer, que o ‘povo’ (folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus” da época (BURKE, 2010). O modo de vida particular, orgânico, comunitário, traz a ideia de um grupo de pessoas mais puras, autênticas. Essa ideia hoje, ainda permeia todo o sentimento de valorização do que ainda não foi massificado pelo mercado, mas carrega também uma grande dose de romantização dessas pessoas, denominadas como ‘povo’. Burke, baseado em seus estudos sobre o que era denominado como ‘canção popular’, em oposição à canção de câmara das elites, discorre sobre a ‘descoberta do povo’, termo usado para nomear o primeiro capítulo de seu livro “Cultura Popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800”. Ele afirma que esse súbito interesse pela poesia presente no popular desencadeou uma forte influência nos grandes clássicos:

Esse interesse por diversos tipos de literatura tradicional era, ele mesmo, parte de um movimento ainda mais amplo, que se pode chamar a descoberta do povo. Houve a descoberta da religião popular. Arnim, aristocrata prussiano, escreveu: “para mim, a religião do povo é algo extremamente

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digno de respeito”. Já o aristocrata francês Chateubriand, em seu famoso livro sobre o “gênio da cristandade”, incluiu uma discussão sobre as

dévotionspopulaires, a religião não oficial do povo, que via como uma

expressão de harmonia entre religião e natureza. Houve ainda a descoberta das festas populares. Herder, que nos anos 1760 morava em Riga, ficou impressionado com a festa de verão da noite de são João. Goethe ficou entusiasmado com o carnaval romano, que presenciou em 1788 e interpretou como uma festa “que o povo dá a si mesmo” (BURKE, 2010, p.30).

Importante lembrar que somada a esse cenário bucólico que pincela a cultura popular, há a história da declarada repressão sistematizada dessas práticas que, por fugir das normalidades e padrões sociais, por atravessar madrugadas, por abarcar diversidades, por acontecer na esfera pública ocupando ruas, praças e parques, por remeter à desordem e perturbação das morais cristãs, enfrentam o preconceito e a intolerância religiosa. Certeau (1995) afirma que “a cultura popular nasceu não apenas da pena dos intelectuais, mas de atos policiais referentes a apreensões e inquéritos sobre as práticas das classes populares proibidas e perseguidas” (apud MIRA, 2016). Os primeiros registros oficiais dessas práticas feitas pelo estado estão exatamente em arquivos de postos policiais e delegacias. A repressão às festas dos brincantes remonta desde os tempos da escravidão, e vinha de pelo menos duas instâncias de poder: a polícia, representando o Estado, e os capitães a mando dos donos de terra, os proprietários:

Reconstruir essa dinâmica social durante o império proporciona um diálogo com os estudos sobre a estrutura policial do período e no momento de composição do Estado Moderno. Os estudos sobre a polícia imperial criam subsídios para compreendermos a fortificação do Estado moderno no Brasil, num período em que as forças policiais são usadas para o controle de grupos e interesses dominados, possibilitando ao Estado o estabelecimento de territórios pacificados subordinados à lei e sua formulação impessoal, subtraindo as relações interpessoais do arbítrio e da instabilidade dos poderes privados (BRUSANTIN, 2007, p. 142-143).

Podemos concluir então, que o que é denominado cultura popular nada mais é que as manifestações artísticas de grupos não dominantes e sim subalternos, submetidos a critérios de avaliação e legitimação hegemônicas, europeias e vindas da classe dominante e exploradora. No entanto a produção artística desses artistas existe consistentemente e atravessa gerações independente do alvará de licença dos paladinos da arte, que muitas vezes apresentam critérios excludentes e limitados, para definir o que é ou não é arte.

No Brasil, após ser ‘descoberta’ pela geração dos folcloristas – a obra “O turista aprendiz” de Mario de Andrade o revela como um dos principais nomes a garimpar manifestações artísticas de todas as regiões do Brasil, a fim de constatar a existência de uma

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