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Formação política e intelectual de Paulo Emílio

4. FFCL-USP e Paris: o legado do academicismo francês

A prisão em 1935 e a primeira estadia em Paris, entre 1937 e 1939, retardaram a formação acadêmica de Paulo Emílio, porém, ao invés de prejudicá-lo, tal graduação extemporânea propiciou uma continuidade de sua formação intelectual fortemente influenciada pela cultura francesa.

É inadmissível falar da constituição da USP, em 1934, subestimando e/ou ignorando a importância dos franceses nesse processo. Congregando as já existentes Faculdade de Direito, de Medicina, a Escola Politécnica e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), a criação da Universidade de São Paulo (USP)33 foi proposta por Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de São Paulo, e apoiada por Armando Salles Oliveira, o então nomeado por Vargas interventor de São Paulo, embora tenha participado do Movimento Constitucionalista (1932).

32 Acerca da UDN, Cf. (BENEVIDES, 1981).

Oriunda da iniciativa das elites paulistas, em meio à efervescência do modernismo do decênio de 1920 e do conturbado início do decênio posterior, cujas ―Revoluções‖ de 1930 e 1932 revelaram o malogro político dessa elite, a USP consiste num contragolpe paulistano, pois, para essa elite oligárquica, ―[...] representava a oportunidade de gerar novos quadros intelectuais, funcionando como centro de formação e irradiação de um pensamento de elite‖34

(BERNSTEIN, 2005, p. 61). Para tal finalidade, ocorreu a contratação de diversos professores europeus, entre os quais se destacaram os franceses. Essa missão francesa que se integrou à USP, de acordo com Heloísa Pontes, dever ser entendida,

[...] por um lado, como desdobramento do intercâmbio cultural entre Brasil e França (intensificado com a criação, em 1921, do Liceu Franco-Brasileiro) e, por outro, como consequência da aliança entre educadores profissionais e liberais doutrinários, articulados em torno de Júlio de Mesquita Filho (PONTES, 1998, p. 90).

Como consequência de tal articulação, introduziu-se uma organização mais sistemática da produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, foi instituída a valorização de um repertório de procedimentos, de exigências, de critérios acadêmicos avaliativos, de titulação e de promoção de profissionais que, até então, não fazia parte do cotidiano do ensino superior brasileiro (Ibid., p. 91). A Faculdade de Filosofia, portanto, foi um dos lugares privilegiados por tais alterações.

Inserindo-se nesse processo, que também deve ser pensado tendo em vista as relações de sociabilidade entre os discentes da Faculdade, Paulo Emílio teve oportunidade de atuar ativamente e fazer parte de uma geração cujas marcas profundas recebidas das aulas dos então muito jovens Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, Roger Bastide e Jean Maugüé trouxeram muitos desdobramentos intelectuais. Devido a seus demais parceiros do Clube de Cinema e da revista Clima terem ingressado na Faculdade um pouco mais cedo, o débito intelectual empírico de nosso autor se restringia aos cursos de Roger Bastide e Jean Maugüé. No entanto, a sociabilidade desse grupo — Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, Alfredo Mesquita e o

34 Além de tal interpretação, Roger Bastide, um dos professores que integraram a missão francesa, nos dá um quadro estritamente científico do sentido da constituição da USP, ao afirmar: ―[...] Aqui existia uma formação de técnicos — médicos, engenheiros — e não existia uma faculdade de pensamento e crítica, de humanismo, se assim se pode dizer. Não para dar novos postos, novas situações profissionais, mas para desenvolver um espírito diferente, que existia na Europa, mas que ainda não existia no Brasil. [...] Eu acho que foi primeiro ponto de partida. O segundo ponto de partida foi a ideia, que me parecia boa, de que o ensino médio no Brasil não era bom e que era preciso formar melhor os professores do secundário. E a Faculdade de Filosofia era, mais ou menos, do ponto de vista profissional, como uma escola normal superior‖ (BASTIDE apud CARDOSO, 1987, p. 182).

próprio Paulo Emílio — contribuiu para que as influências do ensino francês na trajetória intelectual do crítico perpassassem o âmbito dos cursos que ele frequentou e alcançassem a circunscrição de seu grupo de amigos.

Tal sociabilidade é assinalada por Antonio Candido, quando revela o cotidiano dele e dos amigos na cidade de São Paulo do período:

Nós levávamos uma vida muito divertida. [...] A gente andava de bonde ou ônibus, ia ao cinema, comprava alguns livros, se reunia na Confeitaria Vienense para tomar chá e refrescos, frequentava concertos e teatro [...] Paulo Emílio costumava localizar filmes importantes em cinemas pequenos ou afastados, e então íamos incorporados vê-los. [...] Os rapazes costumavam frequentar os bares de tipo alemão, com chope e alguns com orquestra: o Pinguim, na esquina da ladeira de São João com a Praça do Correio, o Franciscano e o Brahma, na rua Líbero Badaró, o Hungária, depois Harmonia, na Xavier de Toledo, o Rutli, na Barão de Itapetininga. Líamos muito e discutíamos nossas leituras, brasileiras e estrangeiras (CANDIDO apud PONTES, 2001, p. 19).

Em virtude dessa sociabilidade do grupo, cuja ampla rede de conhecimento apreendido na academia permitia uma expressiva formação intelectual, Paulo Emílio obteve herança dos mesmos professores franceses que influenciaram seus companheiros. Sob esse ponto de vista, os depoimentos dos integrantes do grupo de Clima, da Faculdade e do Clube de Cinema acerca das aulas dos franceses constituem subsídio importante para a demonstração da influência intelectual desses mestres em Paulo Emílio.

Roger Bastide é um caso emblemático, pois todos os companheiros tiveram oportunidade de acompanhar seus cursos. Antonio Candido, exaltando as qualidades do mestre francês, revela suas impressões:

Bastide era um homenzinho com cara de chinês, muito bondoso, generoso, tranquilo, de uma grande sabedoria e professor excelente. Ele não tinha preconceitos teóricos e metodológicos. [...] dizia que era lícito misturar sociologia, história, antropologia, embora fosse cioso do predomínio que a sociologia devia ter nos trabalhos que pertenciam ao seu âmbito. [...] ele dizia: ―O importante não é que a tese seja ou não sociológica, mas que seja boa‖. [...] era um grande professor e um homem adorável, que dava cursos atraentes e imaginativos [...] Nas aulas começava sempre comentando a bibliografia a respeito do assunto, depois passava à crítica e acabava apresentando o seu ponto de vista (Ibid., p. 14-15).

Em termos gerais, praticamente em todos os discentes, o influxo de Bastide girou em torno da concepção de que os métodos de investigação sociológica poderiam e deveriam ser aplicados no estudo de variadas dimensões da sociedade e cultura brasileiras, uma vez que sua iluminação dependia da minuciosa pesquisa às fontes (PONTES, 1998, p. 94). Mais especificamente em Paulo Emílio, tal débito com Bastide se explicita na minuciosa e

sistemática pesquisa de fontes, que, por um lado, pode ser percebida em reminiscências de suas aulas na Universidade de Brasília e na Universidade de São Paulo35, e na leitura de suas críticas, cujo foco primordial foi a análise fílmica e, por outro, em suas pesquisas de maior fôlego: primeiro sobre Jean Vigo, e posteriormente acerca de Humberto Mauro36.

Jean Maugüé, professor de ―História da Filosofia‖, é o mais reverenciado por todo o grupo. O casal formado por Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido reconstitui as aulas e a personalidade de Maugüé de forma peculiar. Para a primeira,

Maugüé não era um professor [...] era um modo de abordar os assuntos, hesitando, como quem ainda não decidiu por onde começar e não sabe ao certo o que tem a dizer; e por isso se perde em atalhos, retrocede, retoma um pensamento que deixara incompleto, segue as ideias ao sabor das associações. Mas esse era o momento preparatório no qual, como um acrobata, esquentava os músculos; depois, alçava vôo e, então, era inigualável (Ibid., p. 94).

Já para o segundo,

[...] realmente a grande influência que eu e meus amigos sofremos foi a do referido Maugüé, que ensinava Filosofia e foi o maior professor que já vi. [...] Era um gênio didático, um expositor elegante, expressivo e penetrante, tinha uma inteligência original, pronta e luminosa, completada pela imaginação fora do comum e o mais incrível senso do auditório (Id., 2001, p. 15).

Afere-se que a abertura de Maugüé à diversidade temática sob um prisma filosófico e ao estímulo reflexivo, a partir de variadas fontes e recortes de orientação — filmes, romances, acontecimentos e ideias políticas —, formou um núcleo central de influência nos membros37 da geração de Paulo Emílio (PONTES, 1998, p. 95). Nesse sentido,

35 Buscando captar o clímax dessas aulas de Paulo Emílio em Brasília, José Inácio de Melo Souza lança luz a agentes que vivenciaram os acontecimentos. Entrevistando Jorge Bodansky, escuta o seguinte: ―Era um acontecimento na Universidade as aulas do Paulo Emílio. Quer dizer, era apreciado não só pelos alunos dele, mas pelas pessoas de Brasília‖. Colhendo depoimento de Rafael Hime, expõe ―[...] consistia em chamar, em torno da projeção do filme, todos os departamentos para depor [...] O Paulo Emílio entusiasta, levava aquela gente toda ali e, depois da projeção, tinha um intervalo, e então as pessoas do dia, os psicólogos, artistas... vinham fazer a sua intervenção, e havia os debates‖ (SOUZA, 2002, p. 422). Obviamente, sem demérito algum às atividades pedagógicas de Paulo Emílio, deve-se notar nesses depoimentos toda uma carga de valoração nostálgica, bem como a força de uma memória histórica construída em torno da figura do crítico.

36 Estudiosa da obra de Bastide, Fernanda Peixoto, no primeiro capítulo de sua tese de doutorado intitulada

Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide (PEIXOTO, 1998), demonstra quanto havia de

diálogo entre Bastide e os modernistas oriundos da semana de 22, sobretudo Mário de Andrade. Tal abordagem lança indícios de que, além da influência modernista absorvida diretamente pelo contado com Oswald, Mário e outros, Paulo Emílio pode muito bem ter recebido influxo modernista indireto via Roger Bastide. Diga-se de passagem, uma preocupação comum, tanto em Bastide quanto nos modernistas, que também perpassou grande parte dos escritos de Paulo Emílio, foi a expressão ―autenticamente‖ nacional, não somente na procura dela (que muito bem pode ser apenas influência dos modernistas no autor), mas também na maneira de o estudioso lidar com esses objetos culturais (que pode ter sido influência de Bastide).

37 O próprio Paulo Emílio lança indícios do legado de Maugüé e a influência em sua formação. Em entrevista, quase no limiar da vida, ele revela a participação do professor nos debates do Clube de Cinema, afirmando: ―Os

concordamos com Ana Bernstein no que tange à afirmativa segundo a qual Décio de Almeida Prado com João Caetano e a arte do ator, Antonio Candido com Formação da literatura brasileira, Lourival Gomes Machado em Retrato da arte moderna no Brasil, Gilda de Mello e Souza em O espírito das roupas e Paulo Emílio com Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte são emblemáticos de uma dupla herança: por um lado, dos modernistas de 1922 e, por outro, dos professores franceses da USP, sobretudo Jean Maugüé, que estimulou o estudo do Brasil no grupo reunido em torno da revista Clima (BERNSTEIN, 2005, p. 172).

A significância dos docentes franceses na formulação de um DNA intelectual e na concepção pedagógica de todo o grupo é sintetizada por Gilda de Mello e Souza. De acordo com ela, as aulas significavam

Não mais a repetição mecânica de um texto, vazio e inatual, cujas fontes eram cuidadosamente escamoteadas da classe, mas exposição de um assunto preciso, apoiado numa bibliografia moderna, fornecida com lealdade ao aluno. Ao contrário da tradição romântica de ensino, [...] o professor consultava disciplinarmente as suas anotações, aumentando com isso a confiança dos alunos na seriedade do ensino (PONTES, 1998, p. 93-94).

De um modo geral, rigor no tratamento das fontes de pesquisa e disciplina conceitual constituíam as bases fundamentais de ensino dos franceses. Isso pode ser claramente percebido em Paulo Emílio, pois, nos depoimentos sobre suas aulas na Universidade, vem para o primeiro plano uma profunda preocupação com as fontes (filmes), bem como o rigor conceitual, tanto na definição quanto no emprego adequado. Essa preocupação pedagógica de matriz francesa também é transportada para suas duas pesquisas de maior fôlego — sobre Jean Vigo e Humberto Mauro—, na medida em que o rigor conceitual e o respeito às fontes aparecem fortemente em ambas.

Em última instância, de modo similar aos amigos fraternais e de geração intelectual e acadêmica, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido, a posterior docência na USP — primeiro, na FFLCH e depois na ECA — exercida por Paulo Emílio seguiu o fluxo normal de uma história de quem havia conquistado profundos conhecimentos sobre o métier acadêmico ali mesmo, sob a tutela francesa. Nesse processo, a capacidade do autor de construir com os alunos (pela exibição e análise das películas) uma visão abrangente dos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais brasileiros, sem perder de vista a especificidade de cada fonte, forneceu os requisitos básicos para tal atividade. Tais requisitos professores estrangeiros que davam aulas na USP se interessaram muito pelo clube. Nas apresentações, os textos eram lidos em francês. Jean Maugüé, um notável professor de ―História da Filosofia‖ que formou muita gente na época, lia os textos e frequentemente, após as sessões, as discussões eram feitas em francês‖ (SALLES GOMES apud BERNARDET & CANDIDO, 1978, p. 21).

correspondiam à própria concepção de docência imperante no interior da Faculdade no momento da formação intelectual de Paulo Emílio.

O interstício da primeira estadia em Paris e a formação acadêmica sob influência precisa dos franceses seria complementado com a segunda estadia do intelectual na França, entre abril de 1946 e maio de 1954. Como salienta Adilson Mendes, no momento da chegada de Paulo Emílio àquele país, o ambiente era muito favorável às questões de estética cinematográfica, uma vez que Paris constituía o epicentro da crítica de cinema no mundo (MENDES, 2007, p. 46). Nesse contexto,

O cinema não era somente concebido no âmbito da produção e da memória, mas principalmente no plano das ideias, já que a reorganização da indústria não é imediata e os primeiros filmes surgem apenas em 1946. O número de intelectuais envolvidos no debate cinematográfico é considerável, o que proporciona à crítica francesa do pós-guerra um enorme salto qualitativo. André Bazin, na esteira da Malraux, busca dar o sentido do destino do cinema, mostrando que sua função social nasce de uma profunda necessidade psicológica. Por outro lado, Maurice Merleau-Ponty louva o cinema por ele apresentar o homem em sua exterioridade, expondo nos gestos o pensamento. Enquanto isso, Georges Sadoul, preconizando a história do cinema por meio dos gêneros nacionais, defende o cinema russo e o francês, e Sartre, desde os anos 30, classifica o cinema como a arte do nosso tempo. É nessa atmosfera efervescente que o veterano Léon Moussinac afirma que ao cinema é preciso audácia, entusiasmo e independência para a experimentação (Ibid., p. 47-48).

Foi exatamente para usufruir desse clímax o objetivo da viagem do autor. Matriculado no Institut des Hautes Études Cinématographiques38 (IDHEC), que havia sido fundado em 1945, além de frequentar como ouvinte cursos cujas matérias fundamentais eram ―Etnologia‖, ―História do Cinema‖, ―História do Figurino‖, ―História da Vida Social‖, ―Literatura Comparada ao Cinema‖, possivelmente — se a matriz curricular de 1946 não sofreu muitas alterações até 1956, data da fonte utilizada por seu biógrafo — também cursou Estética, que compreendia matérias interessantíssimas, entre as quais figuravam ―História do Cinema Mudo‖ e ―História do Cinema Sonoro‖ (SOUZA, 2002, p. 292).

A ―excessiva‖ carga teórica no IDHEC era complementada com o debate e a fruição estética, tanto na Cinemateca Francesa e suas Sessões de Formação e Ilustração,

38 Fundado sob a tutela de um órgão estatal francês — Direção Geral de Cinematografia —, o IDHEC era voltado para a formação de quadros para as principais funções em que se divida a indústria cinematográfica: diretor, diretor de produção, câmera, montador, engenheiro de som etc., bem como atribuía bastante ênfase à carga teórica (MORAIS, 2010). Paulo Emílio, em artigo no Suplemento Literário, caracteriza a carga de aulas teóricas da IDHEC nos seus primeiros anos como ―excessiva‖ e um ―perigo‖ (SALLES GOMES, 1981, p. 106, vol. 1).

quanto nas dependências do Cercle du Cinéma. Em síntese, além das atividades formativas supracitadas, segundo Souza, entre 1946 e 1950, o crítico

Tinha visto 175 filmes de longa-metragem pelo menos duas vezes, pois seguia tanto a primeira quanto a segunda sessão. Em 1948-49 acompanhou os programas do ciclo ―Chefs d‘Oeuvre du Cinéma‖, composto de 150 filmes, analisando cada um três vezes. Viu ainda outros 250 filmes de arte e vanguarda projetados no verão de 1949, seguindo da mesma forma o programa ―50 Anos de Cinema‖. Na Sorbonne, cursou História do Cinema, ajudando na correção dos erros de programação. Fez os cursos de História do Cinema da Cinemateca dirigidos aos professores de liceus de Paris. Esteve presente às sessões do Comitê de Pesquisas Históricas, da Cinemateca, além de estudar longamente os diferentes serviços e arranjos do Museu do Cinema (Ibid., p. 357).

Paralelamente, como assegurou Claude Lefort, o crítico acompanhou os cursos de Merleau-Ponty no Collège de France (LEFORT, 2009, p. 220), pois a Filosofia e a Psicanálise emergiam como humanidades fundamentais à reflexão fílmica. Em suma, não há como segmentar todo esse processo de formação, sendo possível mesmo é afirmar que todo esse aprendizado já vinha sendo colocado em prática desde sua chegada a Paris, em 1946.

Com efeito, a pesquisa sobre o cineasta francês Jean Vigo — diretor de A propósito de Nice (1929), Taris ou a Natação (1931), Zero de comportamento (1933) e Atalante (1934) — e a relação poética de seus filmes com seu pai Eugène Bonaventure de Vigo, vulgo Miguel Almereyda, transformou-se efetivamente na experiência mais significativa de Paulo Emílio em terras francesas.

Iniciada em 1949 no intuito de redefinir o papel de Jean Vigo na história do cinema francês, nessa empresa Paulo Emílio se propunha à análise político-estética dos filmes de Vigo, mas foi conduzido à reminiscência dos acontecimentos políticos e sociais franceses da virada do século XIX para o XX, momentos precisos que marcaram profundamente a vida do pai de Vigo, o anarquista Miguel Almereyda, tornando o processo de pesquisa muito mais amplo do que o previsto. Nos dois primeiros anos o crítico teve acesso aos arquivos de Claude Aveline (testamentário de Vigo) e Henri Storck (que trabalhou com o cineasta), inclusive aos quatro filmes de Vigo. Nos anos subsequentes tomou depoimentos de contemporâneos do cineasta, tendo acesso a documentação fotográfica, como também estendeu sua exploração a outras cinematecas europeias (SOUZA, 2002, p. 331). Evidentemente, a ligação com Aveline e Storck, bem como a insistência e a dedicação exploratória típica dos grandes pesquisadores contribuíram para que a pesquisa do crítico, em 1952, já estivesse terminada.

Apesar de em 1954, após tomar contato com os manuscritos de Paulo Emílio, François Truffaut salientar no Cahiers du Cinéma se tratar do mais belo livro de cinema que

já havia lido (TRUFFAUT, 2009, p. 376), os originais ficaram parados por um bom tempo nas edições Arcanes. No entanto, em 1957, com diminuição considerável na parte referente ao pai anarquista de Vigo, Miguel Almereyda, a pesquisa foi publicada pela Éditions du Seuil39. Laureada com o prêmio Armand Tallier no mesmo ano, a proposta analítica de recuperar nas películas de Jean Vigo, sobretudo em sua inclinação poética, o ímpeto revolucionário de seu pai anarquista Miguel Almereyda, foi muito bem recebida pelos especialistas, tanto na França quanto no restante da Europa40.

As opiniões de três especialistas traçam um quadro interessante sobre a pesquisa de Paulo Emílio. De acordo com José Inácio de Melo Souza, o autor, com Jean Vigo, se mostrou dedicado e metódico com relação a seus objetos de pesquisa, a ponto de estabelecer um padrão intelectual que seria precioso no período em que voltou para o Brasil (SOUZA, 2002, p. 334). Por outro lado, Adilson Mendes destaca que a obra é resultado do confronto direto entre a linguagem cinematográfica do cinema mudo e as grandes obras do cinema americano, mas que o elemento de maior destaque é

[...] a capacidade do autor em nos devolver um poeta, suas fontes de inspiração, uma certa estrutura de sentimentos que se congela nos filmes, e principalmente nos mostrar a maestria com que Vigo articula sua obra ao desenvolver gradativamente, de filme a filme, um estilo poético por meio de imagens (MENDES, 2007, p. 61-62).

Por fim, João Carlos Soares Zuin opina:

39 As publicações em português foram respectivamente: em 1984, pela Paz e Terra, para a qual a publicação