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A intepretação histórica de Paulo Emílio: postulados epistemológicos

2. Uma visão pormenorizada

A interpretação histórica composta por Panorama (1966) e Trajetória no subdesenvolvimento (1973) é estruturalmente organizada com base nos paradigmas de uma análise histórica aos moldes marxistas, que dão ensejo ao recorte produção cinematográfica de longas-metragens ficcionais e sua decorrência na organização de etapas em que ocorre a alternância de surtos produtivos e improdutivos, cuja divisão respeita seis épocas: 1896-1912 (produtiva); 1913-1922 (improdutiva); 1923-1933 (produtiva); 1933-1949 (improdutiva); 1950-1965 (produtiva); 1966-1973 (improdutiva). Já sob o aspecto temático e conceitual, a legitimação e difusão do nascimento do cinema brasileiro e da Bela época, a categoria histórica subdesenvolvimento e o recorte de ciclos regionais também são dignos de nota. Coadunando-se a todos esses elementos, também se destaca a valorização estética da produção fílmica do diretor Humberto Mauro, bem como a supervalorização do cinema novo, que são alicerçadas em apreciações e propostas político-ideológicas de sua conjuntura histórica, trabalhadas conceitualmente com base no binômio dialético ocupado-ocupante12. pesquisa de mestrado, Cf. (XAVIER, 1978). Em 1976, mesmo ano em que finalmente Vicente de Paula Araújo publicou A Bela época do cinema brasileiro (1976) — pesquisa que já passara pelas mãos de Paulo Emílio na metade do decênio anterior —, na ECA o crítico ofereceu cursos sobre as relações entre cinema e sociedade, reiterando sua interpretação histórica e, na FFLCH, se dedicou a um projeto de reflexão sobre cinema e suas interlocuções com a literatura, tomando como objeto de pesquisa a fortuna literária de Machado de Assis. Em 9 de setembro de 1977, Paulo Emílio faleceu vitimado por um ataque cardíaco fulminante.

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Paulo Emílio traça um esboço do corpo social brasileiro em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento (1973) com base na polarização entre ocupados e ocupantes. ―Escrevendo em um período em que a população nacional chegava à marca de aproximadamente 100 milhões de habitantes, todos considerados ocupados, em sua ótica havia dois estratos populacionais. Por um lado, trinta por cento dessa parcela teve impregnação de ocupantes (as elites brancas), chegando a confundir-se com eles, especialmente pela congruência de interesses e, por outro, o restante dos setenta por cento, eram ignorados no corpo social brasileiro, ‗abandonados ao Deus dará em reservas e quilombos de novo tipo‘ e mobilizados conforme os interesses dos trinta por cento que defendiam os interesses dos ocupantes. Seguindo essa linha de raciocínio, os ocupantes podem ser considerados pertencentes à burguesia, enquanto os ocupados formam o exército de mão-de-obra necessária, por exemplo, na construção de

Com efeito, Paulo Emílio partiu para a análise do passado do cinema brasileiro munido de dados já organizados, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, no fito de promover uma narrativização — organizar novamente os dados cronologicamente — e uma semantização — edificar um sistema de sentido — que respeitassem postulados epistemológicos que serão discutidos a partir de agora.

Com a própria organização de sua interpretação, o crítico já demonstrava recorrer ao postulado epistemológico da transcritibilidade de linguagens já codificadas, pois, concordando com Sheila Schvarzman,

O modelo é certamente a História Econômica do Brasil de Caio Prado Jr, de 1938, um dos livros que, segundo Antonio Candido, inventaram o Brasil. Paulo Emílio pensa o desenvolvimento do cinema brasileiro da mesma forma que a economia brasileira da colônia à industrialização foi pensada por Caio Prado Junior em 1938: como ciclos onde está implícita a ideia de um começo, um apogeu e um fim que assinala o esgotamento (SCHVARZMAN, 2007, p. 31).

Essa asserção de Schvarzman pode ser complementada à luz de outra obra de Caio Prado Junior: Formação do Brasil Contemporâneo ([1942] 1977). Nela, o historiador enfatiza que a tendência nacional a exportar de matéria-prima e importar produtos manufaturados tem como consequência final e mais grave uma evolução econômica cíclica, tanto espacial quanto temporal, ―[...] em que se assiste sucessivamente às fases de prosperidade estritamente localizadas, seguidas, depois de maior ou menor lapso de tempo, mas sempre curto, do aniquilamento total‖ (PRADO JUNIOR, 1977, p. 127).

Destarte, imediatamente já se faz pertinente observar que Paulo Emílio se mune de tal visão de história caiopradeana para edificar um sistema de sentido para sua interpretação. Contudo, essa visão que consubstancia a organização de uma temporalidade diacrônica para a história do cinema brasileiro — na qual épocas prósperas e degradadas se sucedem no fluxo histórico —, ganhará a companhia, em determinado momento de sua construção, de uma abordagem mais ampla do fluxo histórico — um suprassumo temporal da história —, que sinaliza sincronicamente um telos para nossa cinematografia. Em vista disso, é preciso refletir época a época da interpretação histórica do crítico de maneira mais profunda.

Brasília e do ‗monstro urbano paulistano‘. Assim, os interesses dos ocupantes, personificados na invasão do mercado interno pelos filmes estrangeiros, devido aos seus efeitos mercadológicos contrários, se demonstram um entrave à industrialização do cinema brasileiro e ao desenvolvimento de seu mercado interno, reprimindo a verdadeira manifestação cultural nacional: aquela do ocupado‖ (MORAIS, 2010a, p. 135).

1ª época: dezesseis anos medidos por três anos produtivos

Perseguindo a edificação de um sistema de sentido, a chave-mestra com a qual o Paulo Emílio abre as portas da história do cinema nacional é a categoria histórica subdesenvolvimento. O crítico, em seu Panorama (1966), inicia a 1ª época (1896-1912), salientando:

Em 1896, o cinema chega ao Brasil. Ignora-se o nome do empresário, mas a máquina chamava-se Omniographo, sendo que as exibições desenrolaram-se numa sala da Rua do Ouvidor, coração do velho Rio antes da inauguração da avenida [Central]. A primeira sala de exibição fixa foi instalada no nº. 141 da Rua do Ouvidor, em 31 de julho de 1897, e chamou-se ―Salão de Novidades‖. Cinema era novidade francesa e o local passou a ser o ―Salão Paris no Rio‖, nome que cumpriu seu papel na história do cinema no Brasil e do filme Brasileiro (SALLES GOMES, 1980, p. 39).

Em Trajetória no subdesenvolvimento (1973), frisa:

Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países subdesenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes (Ibid., p. 85).

Existe uma relação de complemento entre essas duas asserções. Paulo Emílio pensa o início do cinema no Brasil a partir da ideia de que ocorre já em 1896, um ano depois de a novidade cinematográfica ser apresentada pelos Lumière em Paris, uma rápida invasão dos produtos importados no incipiente mercado exibidor brasileiro. Aplicando um tratamento descritivo às principais salas nas quais o cinema estrangeiro conquistava o gosto da população local, sobretudo o Salão Paris, na então capital federal, o autor procura demonstrar que a exibição cinematográfica de filmes estrangeiros em solo nacional representa um momento de nosso mercado interno de filmes que é inaugurado enquanto desdobramento do mercado externo, pois, num campo histórico subdesenvolvido, o cinema adentra o país já subjugado pelos interesses econômicos dos países desenvolvidos13.

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Em Pequeno cinema antigo (1969), texto pouco difundido, o crítico colabora para deixarmos mais claro nosso argumento, ao afirmar: ―O aparecimento do cinema na Europa Ocidental e na América do Norte na segunda década dos anos 90 foi o sinal de que a Primeira Revolução Industrial estava na véspera de se estender ao campo do entretenimento. Esse fruto da aceleração do progresso técnico e científico encontrou o Brasil estagnado no subdesenvolvimento, arrastando-se sob a herança penosa de um sistema econômico escravocrata e um regime político monárquico que só haviam sido abolidos respectivamente em 1888 e 1889. O atraso incrível do Brasil, durante os últimos cinquenta anos do século passado e outro tanto deste, é um pano de fundo sem o qual se torna incompreensível qualquer manifestação da vida nacional, incluindo sua mais fina literatura e com mais razão o tosco cinema‖ (SALLES GOMES, 1980, p. 27-28).

Esse procedimento, que demonstra a inclinação de Paulo Emílio a uma visão de história marxista de viés nacionalista, historicamente possui pertinência. Isto é, uma semantização referencial, cujos referentes remontam a meados dos anos de 1940. Nesse contexto, a problematização da nacionalidade na América Latina é debatida sob diferentes matizes, sendo um deles a reflexão em torno das categorias históricas desenvolvimento- subdesenvolvimento. Tanto no Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social (ILPES), ligado à Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), quanto no Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO), da Universidade do Chile, surgem iniciativas de análise com o fito de atualizar os estudos analíticos do capitalismo e seu avanço nos países periféricos à luz de perspectivas de cunho histórico-econômico. No caso brasileiro, pedra de toque nas reflexões que envolveram inúmeros intelectuais no debate teórico e ideológico atinente às nossas relações sociais, políticas e culturais das décadas de 1940, 1950 e 1960, a categoria histórica subdesenvolvimento foi difundida e fruto de maior investimento na discussão de nacionalidade por estudiosos, como Caio Prado Junior e Celso Furtado, que se propunham a uma abordagem histórico-estrutural.

A par desse quadro reflexivo, a interpretação histórica urdida por Paulo Emílio continua recorrendo ao postulado epistemológico da transcritibilidade de linguagens já codificadas, que não é livre de ambiguidade14. Por um lado, o autor dialoga novamente com Caio Prado Junior. Esse historiador, com base na ideia de uma formação econômico-social brasileira voltada para atender os interesses dos países desenvolvidos, em Formação do Brasil contemporâneo ([1942] 1977), ressalta:

Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ―sentido‖. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos que a constituem num largo período de tempo. Quem observa aquele conjunto [...] não deixará de perceber que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação (PRADO JUNIOR, 1977, p. 22).

Algumas páginas depois destaca:

Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção e considerações que não fossem o interesse

14 Essa ambiguidade, que não é a única, pode ser entendida, com as outros que demonstraremos mais adiante, em função da não preocupação com finesas teórico-metodológicas, uma vez que os textos do crítico não constituem numa monografia científica, mas, sim, um ensaio cujo destino é a publicação na imprensa escrita.

daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras (Ibid., p. 32).

À luz de uma visão de história que o autoriza pensar o resultado de nossa evolução histórica na longa duração e com um certo sentido, Prado Junior postula que ―os descobrimentos‖, especialmente o do Brasil, são oriundos de uma empresa capitalista comercial europeia, portanto, externa, a que se dedicaram os países do continente a partir do século XV. Dessa maneira, se torna perceptível ao historiador que a linha mestra da evolução histórica nacional consiste na subordinação de nossa infraestrutura econômica ao mercado externo, oriunda de uma formação econômico-social totalmente voltada para os interesses desse comércio.

Por outro lado, Paulo Emílio aproveita as análises cepalinas, sobretudo de Celso Furtado, que adere à tese de Caio Prado Junior segundo a qual a formação econômico-social do Brasil constitui-se num desdobramento da empresa capitalista europeia15, mas esclarece, em Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961), afirmando que ―O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento‖ (FURTADO, 1961, p. 180)16. O economista, desse modo, reflete acerca do subdesenvolvimento pensando-o como resultado da penetração das empresas capitalistas modernas em estruturas produtivas arcaicas, porém como outra forma de capitalismo, não como uma etapa necessária pela qual teriam passado todos os países desenvolvidos, mas, sim, como um processo histórico particular17. É justamente com base nesse postulado que Paulo

15 Em Formação econômica do Brasil ([1959] 2001), logo nas primeira linhas do capítulo inicial, Furtado ressalta: ―A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa‖ (FURTADO, 2001, p. 5). Cabe ressaltar que não entraremos no debate mais acurado atinente às diferenças de tratamento da categoria histórica subdesenvolvimento por Caio Prado Junior e Celso Furtado, pois nossa intenção primária é demonstrar a ambiguidade dos argumentos de Paulo Emílio. Para uma reflexão apurada acerca das junções e disjunções das teorias de Caio Prado Junior e Celso Furtado, Cf. (CÊPEDA, 2005, p. 55-77; LEÃO & SILVA, 2011, 99-106).

16 Esse argumento pode ser complementado com base na argumentação presente em Subdesenvolvimento e

estagnação na América Latina ([1966] 1968), quando o economista enfatiza: ―A formação das modernas

sociedades industriais é mais facilmente compreendida quando estudamo-la simultaneamente do ângulo de desenvolvimento de suas forças produtivas e do da transformação das estruturas sociais e do marco institucional dentro dos quais operaram essas forças. O afastamento crescente desses dois enfoques, causado pela falsa especialização das ciências sociais, é responsável pelas dificuldades que hoje enfrentamos para equacionar problemas do desenvolvimento, com respeito aos quais perdem validez os critérios tradicionais que permitiam diferenciar variáveis econômicas de não-econômicas‖ (FURTADO, 1968, p. 3).

17 Ademais, Furtado traz para o centro do debate o mote da dominação internacional a partir da situação de dependência nacional, recriada constantemente por nossa dependência tecnológica, financeira e cultural, marcante nos hábitos e comportamento das classes dominantes brasileiras e suas elites dirigentes (TAVARES, 2000, p. 130). Com base nisso, de imediato convém assinalar que, para Paulo Emílio, o cinema, enquanto tecnologia importada dos países desenvolvidos, constitui-se num exemplo típico da dependência tecnológica do

Emílio pensa o subdesenvolvimento cinematográfico brasileiro não como uma etapa ou um estágio, mas como um estado.

Em termos gerais, o que caracteriza o estado de subdesenvolvimento, na concepção do crítico, é sua relação com o produto externo advinda de um movimento que possui raízes no processo de colonização. Concordamos com Kátia Maciel, quando a pesquisadora enfatiza que, na proposta do autor, o processo de colonização teria determinado não somente a estrutura econômica dos países subdesenvolvidos, mas também subjugado toda a cultura de forma a torná-la simples reprodutora das formas impostas pelo colonizador (MACIEL, 1997, p. 38).

Com base nisso também é inegável outra semantização referencial estabelecida por Paulo Emílio, sobretudo por seu flerte com as proposições saídas do Instituto Superior de Estudo Brasileiros (ISEB)18. Conforme expressa Caio Navarro de Toledo, os termos semicolonialismo e/ou subdesenvolvimento presentes nas obras isebianas se confundem com a expressão situação colonial, não sendo feita uma distinção substancial entre elas, sobretudo porque independência política é tomada como uma formalidade que praticamente não alterou o processo estrutural a que foram subjugados os povos da América Latina (TOLEDO, 1982, p. 68). Dessa forma, Paulo Emílio, com sua interpretação histórica que aloca a expressão cinematográfica nacional no subdesenvolvimento, não se furta a travar diálogo preciso com seus contemporâneos adeptos das proposições isebianas, uma vez que não o distingue da noção de situação colonial já expressa em forma de ―rascunho‖ nas páginas do Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, como demonstrado no capítulo anterior.

Sob esse prisma analítico, no Panorama (1966), após se ater ao papel desempenado por Afonso Segreto no ramo de entretenimento da então capital federal, bem como em algumas exibições cinematográficas ocorridas no país, o crítico lança luz ao nascimento do cinema brasileiro, afirmando:

Brasil (país subdesenvolvido), que também não deixa de reverberar, com veremos mais adiante, em questões de dependência financeira e cultural.

18 Neste trabalho tomarmos o órgão enquanto uma ―fábrica de ideologias‖, como sugere Caio Navarro de Toledo (1982). Não desconsideramos as controvérsias políticas, ideológicas e teóricas existentes entre os sujeitos envolvidos no ISEB, bem como os diversos choques de interpretações a posteriori atinentes às proposições surgidas em seu interior. No entanto, ao lançarmos luz a alguma proposição surgida no interior o órgão, nosso intuito é sobremaneira evidenciar os diálogos travados por Paulo Emílio e, simultaneamente, demonstrar a atmosfera na qual estava envolta significativa parcela de sujeitos ligados à atividade cinematográfica nacional, especialmente os que tomaram contato com a interpretação histórica do crítico. Ademais, é necessário também ressaltar a ambiguidade desse flerte, já que as teses nacionais-desenvolvimentistas difundidas pelos isebianos são, em diversos aspectos, veementemente refutadas por Caio Prado Junior em algumas obras e na Revista

Em 1898, voltando ele [Afonso Segreto] de uma de suas viagens, tirou algumas vistas da Baía da Guanabara com a câmara de filmar que comprara em Paris. Nesse dia — domingo, 19 de junho — a bordo do paquete francês ―Brésil‖, nasceu o cinema brasileiro. Daí por diante sucederam-se as filmagens (SALLES GOMES, 1980, p. 40).

Acerca desse mesmo acontecimento, em Trajetória no subdesenvolvimento (1973), Paulo Emílio não se aprofunda, mas abre margem para um debate mais amplo, ao sublinhar:

Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional. A invenção nascida nos países desenvolvidos chega cedo até nós. O intervalo é pequeno entre o aparecimento do cinema na Europa e na América do Norte e a exibição ou mesmo a produção de filmes entre nós nos fins do século XIX (Ibid., p. 88).

As duas passagens merecem ser pensadas de modo mais acurado separadamente, mesmo que não se possa negar sua relação de complementaridade. Na primeira, observa-se que o nascimento do cinema brasileiro em 1898 é defendido por Paulo Emílio e aparece como sinônimo de uma filmagem (produção cinematográfica) nacional, especialmente por ter sido feita na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Por outro lado, emerge o fato de que o autor abre uma nota de rodapé, com os seguintes dizeres: ―Esse e muitos outros dados relativos aos primórdios do cinema brasileiro se encontram no importante trabalho, ainda inédito, de Vicente de Paula Araújo, O Cinematógrafo no Rio de Janeiro (1896-1912)‖ (Ibid., p. 40). Em vista disso, é oportuno remontar à fonte citada por Paulo Emílio e mesmo a possíveis dados em outros trabalhos, que certamente também passaram pelas mãos do crítico.

Publicada após dez anos do Panorama (1966) e três de Trajetória no subdesenvolvimento (1973), versando A Bela época do cinema brasileiro (1976), a pesquisa de Vicente de Paula Araújo traz a seguinte colocação baseada em notas da imprensa brasileira do final do século XIX:

No dia 19 de junho chegava ao Rio de Janeiro o navio francês Brésil — o mesmo navio que trouxera ao Brasil, em 1896, o português Aurélio da Paz dos Reis — trazendo a bordo Afonso Segreto, irmão de Pascoal, que regressava da França. Fomos encontrar na secção marítima de um jornal carioca a seguinte nota: ―Entradas no dia 19-6-1898 — Bordéus e escalas, 16 dias (8 dias de Dakar), paquete Brésil, comandante Le Troadec, com 18 passageiros de 3ª classe e 47 em trânsito‖. Na lista de passageiros constava o nome de ―A. Segreto, italiano‖. Antes de desembarcar, Afonso Segreto, ainda a bordo do navio, fotografou, com um aparelho Lumière que trazia, o primeiro filme nacional. A filmagem foi feita em um domingo, dia 19 de junho, e é esta a notícia que consideramos, até certo ponto, como uma

espécie de certidão de nascimento do cinema brasileiro: ―Chegou ontem de Paris, o sr. Afonso Segreto, irmão do proprietário do salão Paris no Rio, sr. Gaetano Segreto. O sr. Afonso Segreto há sete meses que fora buscar o aparelho fotográfico para preparo de vistas destinadas ao cinematógrafo e agora volta habilitado a montar aqui uma verdadeira novidade, que é a exibição de vistas movimentadas do Brasil. Já ao entrar à barra, fotografou ele as fortalezas e navios de guerra. Teremos para dentro em pouco verdadeiras surpresas‖ (ARAÚJO, 1976, p. 108).

Araújo é enfático ao ponderar que, ―até certo ponto‖, considera a notícia transcrita como a certidão de nascimento do cinema brasileiro. Não é uma exclamação