• Nenhum resultado encontrado

Formação política e intelectual de Paulo Emílio

2. Paris, interstício revelador: a remodelação do marxismo e a descoberta do cinema

A primeira estadia de Paulo Emílio em Paris — de maio de 1937 a dezembro de 1939 —, foi muito significativa no que diz respeito à alteração de suas convicções políticas e à sua relação com a Sétima arte. Apesar de essa descoberta do cinema e da nova visão do marxismo não se dissociarem, nos cabe segmentá-las no propósito de uma exposição mais didática. Primeiramente, nos ateremos à remodelação do marxismo no autor.

Quando o autor desembarcou na capital francesa, de certa forma ela representava um lugar seguro para os intelectuais perseguidos pela repressão na Europa, acolhendo dissidentes da Revolução de outubro e perseguidos políticos, poetas e intelectuais, tanto italianos quanto alemães fugidos do totalitarismo nazifascista. Além disso, como enfatiza Edgard Carone, a editora francesa Éditions Sociales Internationales constituía-se no ponto alto do movimento editorial marxista até a II Guerra Mundial, pois suas edições abrangiam temas variados e foi o primeiro momento de elaboração de um pensamento marxista próprio, tornando-se o centro de interpretação do materialismo dialético e sua tradução como visão de mundo. Desse modo, pode-se afirmar que sua linha editorial abriu novas perspectivas filosóficas e políticas aos militantes dos anos de 1920 e 1930, representando uma janela aberta ao debate e à polêmica. Enfim, uma visão mais humanística do marxismo (CARONE, 1986, p. 40-42).

Aproveitando-se dessas oportunidades, Paulo Emílio, que desembarcara marxista- leninista — na medida em que apoiava o Partido Comunista e seguia sua orientação —, além de ter a possibilidade de ler Trotsky, Arthur Rosenberg, Koestler, Bukarin e Alexandre

16 O autor, nessa fase da vida, parece antecipar um tipo de leitura marxista da realidade nacional, que seria exposta por Nelson Werneck Sodré, Cf. (SODRÉ, 1982).

Barmine, todos críticos dos desdobramentos da Revolução Russa, encontrou a cidade fervilhando politicamente e ainda ligou-se fraternalmente a Victor Serge e Andrea Caffi, socialistas democráticos e exilados políticos (CANDIDO, 1986, p. 56-57). Serge e Caffi foram fundamentais para a nova visão do marxismo de Paulo Emílio.

Conforme salienta João Carlos Soares Zuin, após vários anos exilado na Sibéria, Victor Serge chegou a França em 1936 trazendo consigo pontos de vista demasiadamente críticos acerca da Revolução de Outubro de 1917. Além de suas denúncias acerca da contradição entre a realidade do regime soviético e tudo o que havia sido dito, proclamado, desejado e pensado durante a revolução, com ele o autor, por um lado, conheceu os processos de Moscou, os assassinatos de revolucionários como Zinoviev e Bukharin, o despotismo e o totalitarismo de Stálin e, por outro, manteve apreço pela independência ideológica e alimentou ainda mais a chama do socialismo (ZUIN, 1998, p. 110-111).

O contato com Andrea Caffi não foi diferente, pois Paulo Emílio apreendeu a interpretação construída pelo integrante do agrupamento liberal-socialista e antifascista Giustizia e Libertà, segundo a qual o regime stalinista seria a própria negação do humanismo socialista, constituindo-se com os métodos da carnificina, da centralização burocrática, do militarismo e dos arbítrios policiais (TRANFAGLIA, 1995, p. 723 apud ZUIN, Op. cit., p. 113-114). Em suma, o contato com Serge e Caffi antecipou para o autor em quase vinte anos a publicidade daquilo que ocorria de fato na União Soviética sob a batuta stalinista, pois cabe lembrar que oficialmente a ―caixa de Pandora‖ do regime somente foi aberta no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, por Nikita Kruschev17.

Agora nos concentremos na descoberta do cinema. Uma vez na França, o autor tomou contato com Plínio Sussekind Rocha, que foi o interventor em seu ―despertar para a Sétima arte‖18. Paulo Emílio, já na década de 1970, narra esse processo da seguinte maneira:

O meu interesse por cinema surgiu devido à política, inicialmente. Eu era comunista. Fui para a França devido a uma série de acontecimentos aqui, e lá na cidade universitária onde eu morava tinha um bar dos brasileiros, onde nós nos reuníamos após as refeições. Era a época da Guerra Civil Espanhola. E todos os brasileiros eram a favor de Franco. Naquela

17 Para uma abordagem panorâmica, Cf. (LEWIN, 2007).

18 A referência a Plínio aparece inúmeras vezes nos escritos de Paulo Emílio. Ao falar de seu contato com uma fruição estética mais elaborada e crítica, o autor faz menção ao intelectual como interventor em um ritual de passagem: ―Tudo mudou temporariamente quando fui iniciado em cinema pelo meu mestre Plínio Sussekind Rocha, originário do Chaplin Club. Para ele e seus companheiros, Otávio de Faria e Almir de Castro, Chaplin era a própria encarnação da Arte Cinematográfica. Deslumbrado pelo acúmulo de revelações feitas pelo mestre, e sem tempo para digeri-las, fui aceitando o amálgama‖ (SALLES GOMES, 1981, p. 449, vol. 2).

época, os estudantes brasileiros eram muito reacionários, coisa que mudou muito. Um dia, apareceu na mesa um jovem professor brasileiro que chegara há pouco tempo, Plínio Sussekind da Rocha, e no meio da conversa sobre a Guerra Civil Espanhola, o grande assunto do momento, voltou-se ele com opiniões a favor dos republicanos e, para surpresa minha, vi que ele também era a favor destes. Isto me ligou a ele e em outro dia, conversando, ele disse: ―Você que é comunista, você conhece as fitas russas?‖ Eu falei que conhecia de nome e tal, mas que nunca tinha visto nada. [...] Um dia fui com ele assistir aos filmes [...] Foi nesse tempo que eu vi uma série de coisas, Outubro, etc. Portanto, foi a partir daí que eu, além da coisa política, comecei a interessar-me pela coisa do cinema em si [...] (SALLES GOMES apud CAETANO, 2012, p. 86).

Paulo Emílio, para quem o cinema não era fruto de maiores investimentos intelectuais, consistindo apenas num hábito imposto pelos amigos e namoradas (SALLES GOMES, 1981, p. 449, vol. 2), se ligou ao personagem de proa do Chaplin Club e começou a perambular pelos cineclubes de Paris — Club 32; Cine-Liberté; La boîte à films e, sobretudo, o Cercle du cinéma ligado à Cinemateca Francesa. Nesse processo, entrou em contato com expressiva filmografia e diversos debates de vulto. Por um lado, as produções francesas, soviéticas, expressionistas alemãs e de Charles Chaplin consistiam em objeto privilegiado de fruição estética e, por outro, o debate intelectual após as projeções provavelmente encontrava caminhos interessantes entre debatedores do calibre de André Breton, Jacques e Pierre Prévert, Jean Rouch, James Joyce e Robert Flaherty.

Com base em informações de José Inácio de Melo Souza, acreditamos que Paulo Emílio tomou contato com o universo cultural francês em outros dois flancos, além do político e cinematográfico. No primeiro, por meio de aprimoramento intelectual formal em determinadas instituições, como um curso de férias realizado em 1937, cuja temática consistia no panorama da literatura francesa (do século XVI ao XVIII), e possíveis cursos de sociologia e jornalismo na Escola de Altos Estudos de Paris, na primeira metade de 1938; no segundo, através de trabalhos esporádicos em instâncias culturais, destacando-se a locução em português de noticiários na Rádio Paris Mondial e uma ponta como ator na peça Les mamelles, encenada pelo grupo teatral Groupe des Réverbères (SOUZA, 2002, p. 109-130).

Com efeito, com sua estadia em Paris, do ponto de vista político-ideológico, conforme expressa Antonio Candido, Paulo Emílio

[...] chegou a uma visão fortemente anti-stalinista, que não implicava, todavia, anticomunismo e se combinava com a defesa da União Soviética pelas conquistas feitas, apesar de tudo o que sabia sobre a repressão interna e a interferência na política operária de outros países. Sem prejuízo da admiração pela figura e os escritos de Trotsky, rejeitava também o trotskismo; e passou a ver o marxismo como um corpo aberto de doutrina, passível de modificação segundo a época (CANDIDO, 1986, p. 57).

O marxismo continuou a ser o horizonte político-ideológico do autor, porém com nova roupagem, mais aberta à realidade histórica e inviável pela via da transposição mecânica da análise da conjuntura europeia para a brasileira. No que toca à descoberta da Sétima arte, Paulo Emílio jamais a abandonou, tomando-a para si como condição material de existência, uma vez que iria exercer profissionalmente atividades intrinsecamente ligadas às suas reflexões sobre cinema.

Em síntese, munido de um amadurecimento crítico do ponto de vista político- ideológico e de um arsenal teórico e prático acerca da fruição de uma linguagem artística que recentemente incorporara ao seu arsenal técnico o som, o jovem marxista e agora cinéfilo deixou a Europa devido à eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Na bagagem, muito mais do que lembranças de Paris para os amigos e objetos pessoais, trazia o conhecimento dos processos de Moscou, o repúdio ao stalinismo e diversas revistas e livros sobre cinema.