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CÍRCULO TERCEIRO: (IMERSÃO LITERÁRIA: ODOIÁ!)

3. PRODUÇÕES LITERÁRIAS INFANTO-JUVENIS NO BRASIL

3.4 FICA COMIGO (MARTINS, 2001)

Em Fica comigo, de Martins (2001), o espaço social não é africano, nem se pode identificá-lo, ao certo. A história gira em torno da carência do filho que dialoga com a mãe, exprimindo o medo de ficar sozinho.

O protagonista é uma criança de tenra idade, do sexo masculino, como pode ser observado através da ilustração (Fig. 19). O texto verbal, diferente das demais narrativas, é estruturado em forma de diálogo, sem a presença de um narrador a conduzir as falas dos personagens. Utiliza-se, para tanto, o discurso direto, indireto e indireto livre, iniciando- se por meio da voz da criança, sucedida das respostas da mãe.

A capa do livro apresenta o personagem principal de braços estendidos em direção à mãe que está de costas, saindo. A criança está ao centro, do seu lado esquerdo aparecem mãozinhas em sua direção, como se tentando pegá-la (Fig. 19). A imagem expressa uma cena cotidiana, como se a criança pedisse para a mãe não deixá-la; daí o título: Fica comigo.

Na contracapa há a ilustração de um dragão, um monstrinho e, ao centro, uma bruxinha bem alinhada, vestindo roupa rosa, de sapatos altos, com sua vassoura. Ela tem nariz

comprido, que nos lembra mais o personagem Pinóquio (Fig. 20).

A direção do olhar da bruxinha e a do monstro estão focadas para o lado direito da página, como se desejando adentrar o livro. Logo a seguir há uma ilustração do protagonista, exprimindo fragilidade, pois está de cueca, descalço, de mãos levantadas,

Figura 19

dizendo “ – Mamãe, eu tô com medo! Você me protege?” (p. 5). E se sucede o diálogo entre ambos (fig. 21):

- É claro, meu amor.

- Mamãe, eu tenho medo do escuro!

- Não fique preocupado! A mamãe vai proteger você.

- Mas se ele quiser me pegar, você me protege mesmo? (p. 6)

Os diálogos são complementados com ilustrações, as quais exprimem o ponto de vista da criança, que vê os tais monstros que a assustam, inclusive, atrás da porta, no armário do banheiro. A mãe, carinhosamente, atenta aos receios, tira-lhe a cueca, os sapatos, e vai tentando dissuadir os medos, prometendo proteção diante dos pertigos. A situação inicial, desse modo, resulta do conflito da criança, que se sente ameaçada diante da ausência da mãe.

As cenas se sucedem em ambientes diferenciados do imóvel. Em um primeiro momento, lá está a criança na banheira, sendo ensaboada pela mãe, descalça, com as sandálias ao chão. O motivo da aflição da criança são os dois monstros e a bruxinha, a observá-lo, fora do banheiro, atrás da vidraça da

janela.

Os caracteres dos monstros se associam ao lúdico, ao imaginário da criança que ao terror propriamente dito, pois não são caricaturados, aproximando-se da estatura infantil, através dos traços delineados, tais como os braços, as mãos, os dedos, os olhos, as pernas e, inclusive, a vassoura

da bruxinha. Mesmo assim, para a receosa criança, se trata de um “horrível” monstro, que tem “dentes enormes”. A afetiva mãe tenta dissipar-lhe os medos:

- Meu filho, o escuro nunca vai lhe pegar, não tenha medo.

- E se aparecer um monstro horrível, com uma cara horrível e uns dentes enormes querendo me comer?

- A gente fica bem juntinho, e aí ele vai embora. - Mas e se aparecer uma bruxa e quiser me levar? - A mamãe não vai deixar (p.7).

Figura 21

A cada página se desvelam os dramas do protagonista. Dramas estes que dão um aspecto universal à narrativa, pois as crianças nos primeiros anos de vida tendem a sentir medo dos entes fantásticos que povoam seu imaginário. E o adulto, para mantê- las quietas, costuma reforçá-los. Mas não é isso que

acontece em Fica comigo, pois a mãe ouve, cuida e dialoga, sem desconsiderar a aflição do filho.

A figura da mãe, na narrativa, se aproxima do universo do filho, remetendo-se à fase em que também temia. Mas a astuta criança não se dá por vencida e questiona: - E quando você for trabalhar? A bruxa vai me pegar?” Aparece, assim, a ilustração da bruxinha, atrás da cortina do banheiro (p. 8;10, Fig. 23). E a mãe prossegue buscando remover os receios do filho, garantindo a proteção, mostrando as diferenças entre ambos:

- Não vai, não. Vou dar um jeito de deixar você bem protegidinho.

- Mamãe, eu quero ir trabalhar com você.

- Meu amor, você não pode ir trabalhar comigo. Crianças não podem trabalhar; crianças precisam brincar.

- Quando você sair, onde eu vou ficar?

- Você vai ficar brincando com outras crianças. - E se aparecer um dragão e quiser pegar a gente?

O filho, semelhante à maioria das crianças, tem sempre uma nova pergunta à mãe que, calmamente, cuidando dele, após tirar suas roupas, dá-lhe banho, o seca, penteia os crespos cabelos com pentes grossos, e o conforta:

- Nenhum dragão vai conseguir.

- Por quê?

- Porque vai ter um monte de gente grande tomando conta de você.

- Eu tenho medo de dragão!

- Não precisa ter medo! Os dragões não pegam crianças protegidas (p.13).

Mãe e filho são situados em um ambiente bastante mobiliado e, na hora da refeição, a criança sentada está, olhando o dragão de boca aberta em sua direção. Mas, como a mãe disse, “Os dragões não pegam crianças protegidas”. Durante o almoço, a criança de novo exprime os receios e faz um pedido: “- Mamãe, eu quero que você não

saia de perto de mim, eu tenho muito medo de ficar sem mãe. Fica comigo?” (p. 14). A mãe o chama sempre carinhosamente,

expressanso afetividade entre ambos e a compreensão. Explica-lhe a necessidade de sair devido aos afazeres, mas novos questionamentos são feitos e as explicações se sucedem:

- Meu amor, às vezes, a mamãe precisa sair de perto de você.

- Por quê?

- Porque eu tenho outras coisas pra fazer, além de tomar conta de você...

- Mamãe, eu posso ir com você?

- Querido, nem sempre eu posso levar você.

- Por quê? Já te disse que eu tenho medo de ficar sozinho, assim sem mãe.

- Meu amor, mas enquanto você for pequenininho, você não vai ficar sozinho. Só quando você crescer!

- Não quero! (p. 15)

A criança, atenta, relembra à mãe que já ”disse sentir medo, como se não estivesse sendo ouvida por ela. E, quando esta diz que enquanto ele for “pequenininho” não ficará “sozinho”, e só quando crescer, sua resposta é enfática: “Não quero!” (p. 15). Afinal, deixar de ser pequeno implica em ficar sem mãe. A cena que segue chega a ser hilária, devido ao medo do pequeno de “ficar grandão”:

- Meu filho, quando você crescer, vai gostar de ficar sozinho. - Mamãe, eu tô ficando com medo de ficar grandão.

- Não precisa ficar com medo, eu protejo você.

- Até quando eu ficar grande, assim ó: bem grandão, bem grandão? - Quando você ficar grandão, com certeza vai saber se proteger sozinho (p. 16).

A mãe continua sendo o objeto de desejo do filho, que teme “ficar grandão” por medo de perder a proteção. Ele, sobre a cadeira, como se estivesse grandão, se aproxima da sua altura. Ou seja, o texto não verbal dialoga com o verbal, ampliando-o,

Figura 24

exprimindo os detalhes. Um destes é a mãe recolhendo os restos de comida sobre a mesa (Fig. 26) e sobre o chão (Fig. 27).

De novo os monstrinhos e a pequena bruxa aparecem, agora rindo, voltando a fazer parte das preocupações do pequeno, angustiado também com o futuro. Enquanto isso a mãe está abaixada, catando os restos de alimento no chão (Fig. 27). Essa imagem ilustrada exprime a fala da criança, quando se refere ao

fato de a mãe ficar “velhinha”, “pequenininha” :

- Quando eu ficar bem grandão, você vai ficar pequenininha?

- Não, eu vou ficar velhinha! -Mamãe, quando você ficar velhinha, também vai ficar bem fraquinha, não é? Então, o monstro, a bruxa e o dragão vão querer me pegar!

- Não vão, não! Você não vai mais ter medo de monstros...

- Mas eu quero que você fique comigo para sempre!

- Tá bom! Mas um dia você não vai mais querer e nem vai precisar (p. 19).

O filho faz associações para exprimir as fragilidades da mãe. Ele, “grandão”, e ela, “pequenininha”, “velhinha”; logo, “fraquinha”, portanto, sem poder protegê-lo dos seres fantásticos: o monstro, a bruxa e o dragão” (p. 19). Como o seu olhar exprime o ponto de vista infantil, centrado no presente, através dos medos, mesmo reconhecendo que será “grandão”, prevalecem os receios pelo fato de a

mãe não ter forças na velhice e ambos ficarem desprotegidos, portanto, susceptíveis aos iminentes perigos.

A fala da criança mais parece um lamento para a mãe não sair, como se fazendo uso da carência para mantê-la por perto. E mais e mais perguntas são feitas, evidenciando que estava atenta às ações da mãe, sua arrumação para sair; então, por fim, o apelo dramático:

- Você vai sair agora?

- Vou, tenho um bocado de coisas pra fazer. - Eu acho que tô ficando sem mãe! (p. 20).

Ao perceber que seus argumentos não surtem efeito na mãe, a criança prossegue e, observadora que é, associa “sair agora” a “ficar sem mãe”; logo, desprotegida. Eis o

Figura 26

objeto de temor da criança, sempre reiterado, justificado e dirimido pela afetuosa e

atenta progenitora, que molha as plantas sob a janela. O raciocínio lógico não a surpreende, e novas respostas vão surgindo, sem escamotear, desqualificar ou ignorar os medos do filho:

- Meu filho, você não sabe que eu volto sempre?

- Mas a mãe do Paulinho não voltou e ele ficou sem mãe!

- Ah, meu filho, é que a mãe do Paulinho estava muito doentinha. Foi por isso que ela não voltou (p. 20).

O diálogo avança, conforme as ideias suscitadas pela criança, e a progenitora segue acolhendo os receios entre os afazeres de cuidar da higiene e alimentação do filho. Este não se dá por vencido e novos receios vão se afigurando por meio da linguagem verbal e não verbal. Adentram, assim, em um delicado assunto: a doença e a morte, por meio da associação feita pelo pequeno, ao lembrar que a mãe do amigo não retornou; daí as instigações seguidas de respostas elucidativas:

- Pra onde ela foi?

- Eu acho que agora ela está misturada com a natureza: está na terra, nas flores, no vento, na chuva...

- Em todos os lugares? - Acho que sim.

- Um dia, você também vai ficar misturada com a natureza? - Acho que vou. (p. 20; 22).

A cada resposta da mãe novos questionamentos são feitos. A morte é redimensionada, sem a conotação dramática, pois se associa aos elementos da natureza, como o vento, a chuva, o temporal, as flores, o trovão.

- Mamãe, se você virar vento, não faz vento forte não?

- Pode deixar, meu amor, vou fazer um ventinho bem gostoso. - E se você virar chuva, não vai

fazer temporal, né?

- Não. Vou fazer uma chuva bem fininha, pra você olhar da sua janela e brincar quando ela passar.

- Você não vai virar trovão, vai?

- Meu amor, eu nunca vou assustar você! (p. 22 -23)

As ilustrações enriquecem o texto verbal, apresentando outro plano da narrativa, paralelo ao diálogo entre mãe e filho. Este aparece se deliciando com o vento (Fig 28), brincando com um barco de papel em uma poça d‟água (Fig 29), integrado à natureza (Fig. 30). Assim, o medo esvai-se, e a criança criativa se diverte, em meio às imagens lúdicas, cuja associação aproxima duas ideias: mãe e natureza.

- Se você virar uma flor, eu vou poder plantar você aqui em casa? - Claro!

- Mas como eu vou saber que flor você é? - É só você ir ao jardim e

escolher a flor que mais gostar.

- E se você virar escuridão? Vai me pegar?

- Não, se eu virar escuridão, você vai poder brincar com as sombras.

- De fazer coelhinho, cachorrinho e patinho? - E tudo o que você quiser (p. 24-25).

Todos os receios da criança, a mãe vai dirimindo, apontando para o lúdico. Assim, temos: flor/afetividade, “a que [...] mais gostar”; escuridão/ludicidade: “coelhinho, cachorrinho e patinho”, enfim, “tudo” o que a criança desejar fazer para se divertir, pois em tudo a mãe estará presente, ao transformar-se. E da escuridão emerge a luz, ante a resposta materna (Fig. 31):

- Mas se eu ficar com medo de você sendo escuro? - Quando você chegar perto eu

clareio tudo! (p. 20)

Por fim, há a transformação da criança que, sob as elucidações, confiança e afetividade para com a mãe, aceita o afastamento. Mas, a aceitação traz em seu bojo um pedido, pois, embora demonstrando entendimento em relação ao fato de que um dia ela irá se misturar

“com a natureza”, ele, esperto, demonstra querer tê-la sempre por perto:

Figura 29

Figura 30

- Você não vai ficar misturada com a natureza agora, vai?

- Não, querido. Agora a mamãe vai fazer outras coisas. Daqui a pouco eu volto, tá?

-Você promete que volta mesmo?

- Prometo!

- E aí você me protege de novo?

- Pode ter certeza de que sim, meu amor!

- Mãe, agora eu quero brincar com o Paulinho. Você me leva na casa dele e depois vai fazer outras coisas? (p. 26)

A cada diálogo aparecem imagens com a criança integrada à natureza mãe. A confiança de

que ela o protegerá o leva a perder os medos. À noite a criança aparece brincando com a sombra. A promessa da progenitora dá garantia da sua presença e o faz criar coragem. Então, é feito o pedido inusitado: ir “brincar com o Paulinho”, enquanto a mãe “vai fazer outras coisas”.

Após o diálogo convincente, o medo é dirimido. E a associação criança/herói é sugerida através da ilustração. Afinal, ele venceu o medo, daí a ornamentação heroica. O texto não verbal apresenta a mãe pronta para sair, afirmando que o levará à casa do amigo. Mas, antes, verifica se ele “ainda está com medo”. A resposta exprime a transformação, associando-o à bravura. Assim, simbolizando um herói, a criança, com uma espada em riste, responde: “- NÃO!!!” (p. 28, Fig. 33).

A narrativa não aponta para a questão das relações étnico-raciais, não há qualquer problemática dessa ordem, no entanto, os personagens são negros, conforme podemos perceber através dos seus traços descritivos; afinal, têm cabelos crespos e tez negra. Por outro lado, o problema que os aflige é o mesmo da maioria das crianças que temem perder a mãe quando elas saem. Esse fato dá uma dimensão universal à história, não se resumindo a um determinado segmento étnico-racial. Nesse aspecto, nos diálogos efetivados entre ambos, redimensionados por meio das ilustrações sem caricaturas, assim como pelo ambiente doméstico em que são situados, inferimos que o livro Fica comigo apresenta indícios inovadores no tocante aos personagens negros.

Figura 32