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LITERATURA: NEGRA? AFRODESCENDENTE? AFRO-BRASILEIRA? TÊNUES FIOS CONCEITUAIS

CÍRCULO PRIMEIRO

1. TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL: ELUCIDAÇÕES

1.3 LITERATURA: NEGRA? AFRODESCENDENTE? AFRO-BRASILEIRA? TÊNUES FIOS CONCEITUAIS

Em seu livro Literatura negra, Conceição Evaristo (2007, p. 20) ressalta que “Uma plêiade de escritores afro-brasileiros vem gerando textos diversos que traduzem as múltiplas experiências dos descendentes de africanos no Brasil”. Para a aludida escritora e estudiosa de literatura também “se afirma uma crítica literária escrita por pesquisadores afrodescendentes”.

A título de ilustração, é possível perceber no texto de Evaristo mais de uma denominação à produção literária dos escritores negros. Ou seja, se na capa do livro a estudiosa destaca a “Literatura negra”, no corpus textual faz alusão aos “escritores afro- brasileiros”, “descendentes de africanos no Brasil” e “pesquisadores afrodescendentes”. Tais nomenclaturas expressam a indefinição em torno dos produtores das respectivas literaturas e, ainda, das suas produções.

Evaristo (2007, p. 20) ressalta que, “paralelamente [a] uma crítica literária que nega e/ou ignora a existência de uma literatura afro-brasileira”, além dos iniciadores de tal abordagem, a saber: Luiza Lobo, Zilá Bernd, Antonio Candido e David Brookshaw41, na atualidade se destacam: “Moema Parente Augel, Heloísa Toller, Maria

41 É importante citar, ainda, entre os iniciadores, Roger Bastide, Raimundo Sayers e Benedito Gouveia

Aparecida Salgueiro, Sueli Eibig, Eduardo de Assis, Leda Martins, Maria Nazareth Fonseca, Florentina de Souza, Giselda Vasconcelos e outros”. Afinal, é desses estudos, entre outros, que resultam novas possibilidades de se conceber a literatura brasileira que traz como cerne de discussões o segmento étnico-racial negro.

Ao abordar as “expressões”: “literatura negra” e “literatura afro-brasileira”, Fonseca (2006, p. 11) esclarece que, embora sendo “bastante utilizadas no meio acadêmico, nem sempre são suficientes para responder às questões propostas por pessoas cujas atividades estão relacionadas com a literatura, a crítica, a educação”. Para ela, ao fazermos uso dos “vários sentidos contidos nessas expressões, utilizamos argumentos construídos a partir da literatura produzida em outros lugares, geralmente Estados Unidos, Antilhas Negras e África”. Mas, ressalta Fonseca, “quando dizemos „literatura negra” ou „literatura afro-brasileira‟, várias questões são suscitadas”. E são essas questões que a pesquisadora esclarece:

A expressão “literatura negra” presente em antologias literárias publicadas em vários países, está ligada a discussões no interior de movimentos que surgiram nos Estados Unidos e no Caribe, espalharam- se por outros espaços e incentivaram um tipo de literatura que assumia as questões relativas à identidade e às culturas dos povos africanos e afro-descendentes. Através do reconhecimento e revalorização da herança cultural africana e da cultura popular, a escrita literária é assumida e utilizada para expressar um novo modo de se conceber o mundo (FONSECA, 2006, p. 11).

Fonseca (2006, p. 12 e 13) aborda a problematização dos três termos, refletindo sobre a dificuldade em conceituar a produção literária brasileira, cuja temática central gira em torno das questões que afligem o segmento étnico-racial negro. Logo, há escritores que associam sua produção artística a tais questões, outros, “mesmo sensíveis à exclusão” da população negra no país, resistem ao “uso de expressões como „escritor negro‟, „literatura negra‟ ou „literatura afro-brasileira‟ pois, segundo eles, “essas expressões particularizadoras acabam por rotular e aprisionar a sua produção literária”.

Os favoráveis à associação de sua obra à temática negra “consideram que essas expressões permitem destacar sentidos ocultados pelas generalizações do termo „literatura‟; afinal, “tais sentidos dizem respeito aos valores de um segmento social que luta contra a exclusão imposta pela sociedade”, salienta Fonseca (cit., p. 11).

Apesar de ser cautelosa quanto à adoção de um dos termos, a saber: “literatura afro-brasileira”, “literatura afro-descendente” ou “literatura negra”, é possível inferir que Fonseca é favorável ao primeiro termo, pois além de publicações com esse título,

um dos subtítulos do seu artigo no livro em questão é “A produção literária afro- brasileira”, através do qual ela discorre sobre os escritores que têm a causa negra como foco central de sua produção. Seu propósito é a historicidade do termo e os pontos de vista dos críticos em relação aos mesmo.

Fonseca (2006, p. 13) esclarece que “expressões” tais como “literatura negra”, “poesia negra”, “cultura negra” só passaram a circular “com maior intensidade na nossa sociedade a partir do momento em que tivemos de enfrentar a questão da nossa identidade cultural”.

Nesse processo, também tivemos que assumir as contradições acirradas pelo fato de o Brasil querer se ver como “uma cultura mestiça”, “uma democracia racial”42. Quando as contradições afloraram de forma mais

constante, os preconceitos contra os descendentes de africanos tornaram-se mais evidentes, embora tais preconceitos quase nunca sejam realmente contestados, sendo até assumidos como não ofensivos. (FONSECA, 2006, p. 13)

A citação acima é bastante elucidativa quanto à peculiaridade das relações étnico-raciais no Brasil, uma vez que, aqui, conforme ressalta Munanga (1999), prevalece a dissimulação do racismo através do mito da democracia racial. É por conta dessa peculiaridade das relações étnico-raciais em nosso país que os escritores e críticos literários Cuti e Miriam Alves, ambos fundadores dos Cadernos Negros, defendem o termo Literatura negra. A esse respeito, no artigo intitulado Cadernos Negros (número

1): Estado de alerta no fogo cruzado, Miriam Alves traz à tona uma polêmica

instaurada pela crítica Zilá Bernd.

Ao (re)lermos o aludido livro de Bernd (1988, p. 19) é possível identificar o porquê da polêmica, quando ela discute a “legitimidade da expressão”, questionando: o

que é literatura negra? E, para responder, a crítica faz alusão ao contexto histórico da

sociedade (final dos anos 80), partindo da premissa de que se vive a era da

[...] rejeição ao furor classificatório das ciências humanas, em geral, e dos estudos literários em particular, furor este que leva,

42 Fonseca não especifica quais os momentos em que os conflitos raciais se acirraram. Reiteramos alguns

momentos importantes: quando do nascimento e reaparecimento de diversos movimentos negros, a exemplo da Imprensa Negra (PIRES, 2005, p. 69 a 89) e outras organizações, culminando com o fortalecimento e renascimento de outros movimentos, os quais resistiram, dentro de suas possibilidades, à luta antirracista. É a partir daí, principalmente nos anos 70, que se acirram as relações e, consequentemente, as situações de discriminação racial no país. Isso ocorreu ao longo tempo de nossa história, desde o sequestro do povo negro no continente africano, passando pelo contexto da escravidão e pós-abolição, chegando aos dias de hoje, quando da discussão em torno das Políticas de Ações Afirmativas.

necessariamente, ao uso excessivo de rótulos, resultando, muitas vezes, numa compartimentalização inoperante dos fatos literários.

No entanto, prossegue Bernd, “[...] verificamos, igualmente, a ânsia de certos grupos de se autoproclamarem pertencentes a determinada categorias”. Embora evidenciando não ter o “intuito de aprofundar essa polêmica”, a pesquisadora assevera que:

Na verdade, se pode ser nefasto colocar um autor ou um movimento, através de classificações muitas vezes arbitrárias e estereotipadas, em guetos, ou seja, em compartimentos estanques que certamente reduzem a recepção de sua obra, será igualmente nefasto ficar alheio às reivindicações do autor. Isto é, quando o desejo de um rótulo provém dos próprios autores [...] (BERND, 1988, p. 20).

Diante desta crítica é que se instaura a polêmica não resolvida até a atualidade. Tanto é que recentemente Miriam Alves (2002, p. 229-230) se contrapôs à asserção de Bernd. Alegou que a pesquisadora demonstrou desconhecer (ou ignorar) que os “Cadernos Negros, com seu texto-documento [prefácio, volume 1] pleiteava uma transformação sociocultural de valores estéticos e éticos, utilizando a literatura”. Por meio dos Cadernos se visava à relação entre “movimento artístico-literário” e as “efervescências sociais”.

Como prevalece na sociedade brasileira o propalado mito da democracia racial, muito embora se prossiga reiterando a desvalorização e/ou a espetacularização do segmento social negro, surge daí a significativa importância de um movimento artístico que o valorize e o ressignifique, complementa Alves. Eis, assim, a necessidade de se “resistir à negação de uma subjetividade negra, opondo-se à serialização do indivíduo negro, tendo como modelo estético o branco”

Serialização esta que impede uma visualização de si mesmo como sujeito, transformado em mera personagem e/ou espectador das ações alheias. Opõe-se ainda aos enquadramentos estéticos que seguem padrões exclusivamente eurocentristas, delineados na história da escravidão negra e perpetuados, até hoje, por ações e considerações racistas (ALVES, 2002, pp. 224-225).

Mas o fator crucial que gerou polêmicas em torno do movimento foi a

autonomeação, sendo a questão crucial o fato de alguns “escritores negros” produzirem uma literatura denominada “negra”. Isso, prossegue Miriam, “parece motivar um mal estar, uma indignação que pode ser entendida como uma prática de minorização [...] pois, “ao darem visibilidade à vivência negra, tornando assunto, os criadores da

literatura negra são acusados de estarem tratando somente de assunto de negros e, por isso, demonstrando uma forma de pensar desfocada”43.

Para Miriam Alves, “A produção literária de autores e autoras negros vive em verdadeiros sacos de varas. Primeiro é acusada de essencialismo, depois é punida com o anonimato”. Esse anonimato, complementa, é complexo, pois “retira a legitimidade do negro como escritor. Em última análise, reduz-se a capacidade de um trabalho de criação literária”44

O que está em xeque é a “legitimidade” artística do escritor negro por se autodenominar e priorizar as questões que lhes são atinentes, mas não só estas, considerando-se que o racismo atinge a sociedade como um todo. Por outro lado, em grande parte das produções literárias brasileiras, salvo raras exceções, fora reduzido a mero objeto de discurso45, ao outro46 ou, à “[...] personagem rebelde, rude, ora submisso, às vezes com muita musicalidade; às vezes um ser exótico”47

Emergem, das instigações acima, outras questões, a saber: quem faz literatura? Por quê? E, ainda, o que é literatura (negra?!). Em suas contribuições, assevera Alves (ibid., p. 235) “Na verdade, existe a prática de defender o status quo da literatura e a visão de que é um lugar reservado a determinados assuntos, específicos de suas formas de abordagens”. Implicaria, então, em “guetização”, a autodenominação dos escritores? E, mais, esta se restrigiria à cor da tez dos mesmos, conforme cmpreendido por parte da crítica literária? Alves prossegue em suas elucidações ponderando que

Autonomear-se escritor de literatura negra é embrenhar-se nessa selva de significados, relações e inter-relações, procurando uma outra forma de expressão literária. A existência de uma literatura específica se dá através de um conjunto de significados e intenções, símbolos, estéticas e a tradução em arte dessa visão de mundo. Assim, o termo „negro‟ não designa, aqui, a cor epidérmica de alguém. Antes de tudo, era um termo pejorativo utilizado na escravidão para diminuir e inferiorizar. E ainda o é hoje. Ao inverter-se a intenção negativa do termo, a literatura negra obriga-se também a inverter o olhar sobre o brasileiro negro, tirando- lhe a máscara da invisibilidade e dando existência ao que se considerava massa amorfa, sem rosto, sem sentimento, interioridade e humanidade (ALVES, cit, p. 235).

43 (ALVES, cit, p. 234) 44 (Op. cit, p. 235). 45 (PROENÇA FILHO, 1997), 46 (FONSECA, 2002 pp.191-220) 47 (EVARISTO e PASSANHA, 2006, p. 145).

Logo, reitera Alves (cit, p. 237) “a autonomeação” dos escritores negros não se reduz a um viés “etnocêntrico e reacionário”, mas ao propósito de “[...] descobrir-se, redescobrir-se e impor-se”, preterindo-se os recorrentes estereótipos inferiorizantes.

O confronto de citações aqui expostas tem menos o propósito de evidenciar a polêmica em torno da “autonomeação” dos/as escritores/as negros/as que fazem uma literatura assumidamente negra e, mais, extrair das considerações de Miriam Alves, de Zilá Bernd, dentre outros estudiosos aludidos anteriormente, contribuições plausíveis à acepção dessa literatura.

A polêmica instaurada em torno da referida produção evidencia pontos de vista divergentes quanto à denominação da Literatura: Negra, Afrodescendente, ou Afro- brasileira. No entanto, há algumas convergências no tocante à finalidade de tal arte, que é primar pela valorização, ressignificação e ruptura com estereótipos negativos em relação ao segmento negro.

O termo “Literatura negra”, para os respectivos escritores, corresponde à postura estética e política do grupo. Diante disso, entendemos que se trata de uma literatura que se aproxima da acepção de Eagleton (1983), quando ele demarca a correlação entre a teoria literária, a linguagem literária e a política. Seguindo tal viés, podemos asseverar que os mentores da “Literatura negra”, portanto, se aproximam, ideologicamente, dos predecessores da Negritude. São, então, movimentos coerentes com as propostas que defenderam e enredaram esteticamente.

Consideramos significativos, o “reconhecimento e [a] revalorização da herança cultural africana”, através da “escrita literária [...] assumida e utilizada para expressar um novo modo de se conceber o mundo” (CUTI, 2002, p. 28). Mundo esse que, apesar de espoliado e negado, ressurge gritando a negritude que não se deixou calar. Ecoou quase inaudível há séculos e, com uma voz retumbante, chegou a nós. Ultrapassou barreiras. Outras tantas há a ultrapassar e, quiçá, não se perca em meio à confusão conceitual, assim como grande parte das identidades que hoje se busca (re)afirmar e visibilizar, quando da oficialização de uma Lei(10.639/03), ainda restrita ao papel, grosso modo.

É relevante assinalar, então, que assim como na diáspora africana, os mentores da literatura negra e dos movimentos correlatos, no Brasil, em suas frentes de batalha contra o racismo, a discriminação e, por conseguinte, as representações inferiorizadas nos diversos universos artísticos, tomaram a palavra como arma de combate, visando à valorização, à ressignificação e à expressão da subjetividade negra. Eis o que pode ser

observado, por exemplo, nas pesquisas de Mendes (1993) e Martins (1995), em relação ao Teatro Experimental do Negro, e no relato de Abdias do Nascimento (2006) a Éle Semog. Interessará, especificamente, para a análise a ser feita, nesta tese, a maneira de se tecer na linguagem literária infanto-juvenil, a subjetividade impressa nas narrativas e expressa por meio dos personagens.

Em se tratando da literatura que tem como tônica central as questões concernentes ao universo do segmento negro, no que se refere às tensas relações étnico- raciais, as questões existenciais, as aflições, os desejos e anseios, os exprimindo por meio da poesia e/ou da prosa, adotaremos a terminologia dos respectivos mentores: literatura negra, como a denominaram, haja vista a delineação não só de um movimento artístico como, também, a pertinência em se almejar a ressignificação e valorização de uma produção que prime pela linguagem, em seu labor artístico, e pela afirmação do termo negro, destituindo-o das conotações negativas até então predominantes no âmbito da arte literária. Afinal, “A literatura negra brasileira traz também o desafio da primeira pessoa do negro” e, obviamente, seus desejos, anseios, embates e realizações, salienta Cuti (2002, p. 28).

Uma vez discorrendo sobre os movimentos, no âmbito literário, que visaram à afirmação identitária negra cabe-nos, a partir de agora, nos determos sobre a trajetória de nossa literatura infanto-juvenil, de modo a identificar os traços constitutivos dos personagens negros, considerando os escassos estudos na área. Tais traços são de suma importância para, mais adiante, observarmos as rupturas e ressignificações que, a nosso ver, vêm surgindo, a despeito das recorrentes inferiorizações.

1.4 PERSONAGENS NEGROS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL