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CONTEXTUALIZAÇÃO DA FIGURAÇÃO SOCIAL NA RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS - RID

3.8 Figurações Sociais das Etnias da Reserva Indígena de Dourados

Neste tópico é importante salientar que a chegada dos primeiros habitantes da RID aconteceu com maior intensidade a partir da segunda metade do século XX. Assim, muitas famílias começaram a se recolher naquele espaço. Conforme Pereira (2006), com a demarcação de oito reservas indígenas pelo SPI, entre 1915 e 1928, as famílias kaiowá e guarani, expulsas das terras onde radicavam suas comunidades, foram se recolhendo nas reservas (PEREIRA, 2014, p. 13).

Para Norbet Elias (2001), o conceito de figuração não é “uma entidade totalmente fechada”, nem “dotada de harmonia, pacífica e amigável entre as pessoas, assim como as relações hostis e tensas” (ELIAS, 2001, p. 155). O pesquisador Levi Marques Pereira (2006) ressalta que estas “são duas características importantes para aprender uma figuração: nelas as pessoas estão ligadas umas às outras a partir de uma cadeia de interdependência; e sua produção e reprodução supõem um equilíbrio móvel de tensões” (p. 45).

Pensando sobre a dinâmica social da RID, a partir da noção de civilidade, Norbet Elias (1993 e 2011), no livro “O Processo Civilizador I e II”, refere-se que a constituição do que normalmente se convencionou denominar de modernidade ocidental, enquanto um conjunto de figurações sociais composto por cidadãos modernos exigiu um longo processo disciplinar de suas emoções e de adestramento comportamental. No pensamento de Elias,

Nosso comportamento, ou o termo “civilizado” e “incivil” não constituem uma antítese do tipo do “bem” e do “mal”, mas representam, sim, fases em um desenvolvimento que além do mais, ainda continua. É bem possível que nosso estágio de civilização, nosso comportamento, venham despertar em nossos descendentes uns embaraços semelhantes ao que, às vezes, sentimos, antes do nosso comportamento e de nossos ancestrais (ELIAS, 2011, p. 70).

Assim, de acordo com Elias (2011), a noção de civilidade é típica e necessária para a sociedade ocidental, pois, dela dependem os processos sociais característicos dessa modalidade de formação social.

Pesquisadores como Pereira (2014), Lourenço (2008), Souza (2013), Urquiza (2013) dentre outros, registram que a história da RID é repleta de eventos marcados por tensões e rivalidades entre os segmentos étnicos, especialmente no que se refere à representação política. Em se tratando das formas organizacionais e sociais, Pereira (2014) afirma que isto demonstra que os Kaiowá muitas vezes reagiram de modo hostil a esses deslocamentos que

reuniam outras comunidades nos espaços que já ocupavam, principalmente no caso de tratar-se de outra etnia.

Hoje a convivência étnica na RID é composta em maior número por três etnias: Kaiowá, Guarani e Terena, juntamente com os não indígenas que vivem na Reserva ou num entorno bem próximo. Esses grupos mantêm muitos espaços de manifestações de suas identidades étnicas exclusivas,

Baseadas em elementos linguísticos, de organização social, de religião e outros componentes da tradição cultural. Isto não significa que cada uma dessas tradições culturais se manteve inalterada no tempo. Pelo contrário, as identidades terena, guarani e kaiowá passaram por significativas transformações, como resultado das mudanças no ambiente de vida e de sua participação no cenário multiétnico indígena e nas relações que cada uma dessas etnias mantém com a sociedade nacional (PEREIRA, 2014, p. 15).

A convivência e as relações de proximidade destas três etnias e com a influência da sociedade não indígena, é possível perceber que as etnias sofreram transformações ao longo dos anos. Ainda assim, não perderam suas identidades étnicas, o que é muito forte dentro da aldeia. Desta forma, Bhabha (2010), refere que o sujeito pode ir de um lado para o outro e que “existe uma ponte que permite que os sujeitos andem de lá para cá entre diferentes culturas e encontrem a margem do outro lado comum”.

A convivência próxima entre os indígenas e não indígenas pode ser evidenciada também em Pereira (2014) quando diz que “Cada uma dessas etnias se percebe e é percebida pelas outras como diferente”, já que o convívio próximo e contínuo não dilui as diferenças na própria vizinhança, ainda que o espaço atualmente na RID acomode uma superpopulação.

As figurações das três etnias se encontram diariamente no convívio social nas escolas, nas várias igrejas existentes na Reserva, nas casas de reza, nas festas tradicionais ou comemorativas da comunidade, nos encontros de reivindicações, nos movimentos de luta pelos seus direitos, nos programas sociais do governo tais como: vacinação, entrega de cesta básica, distribuições de sementes, ação social das Universidades, nos velórios, eventos de recreação comunitária, local de trabalho e de um modo mais específico nos casamentos, sendo que, há muitos casamentos entre as três etnias, e também entre indígenas e não indígenas. Sobre etnia Bhabha (2010) argumenta que:

Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de “um único povo”. A etnia é o termo que utilizamos para nos referimos às características culturais, língua, religião, costumes, tradições, sentimento de “lugar” que são partilhadas por um povo [...] Mas essa crença acaba num mundo

moderno por ser unido [...] As nações modernas são, todas híbrido culturais (BHABHA, 2010, p.62).

Podemos observar que os habitantes da RID, por conta de fatores oriundos do cenário que ali apresentam, acabam se envolvendo em conflitos internos que, na maioria das vezes, são problemas devido à dinâmica do contexto social, como: desnutrição, o uso de bebidas alcoólicas e drogas, problemas no atendimento à saúde, educação deficiente, falta de saneamento básico, dentre outros.

Existe também a diversidade de pensamentos entre as etnias, o que gera violência e desconforto para esses povos. Esses fatores geram alguns resultados nas condições de vida e no impacto social e organizacional das/nas etnias. Esses fatores são apontados, como consequências pela perda do seu território.

A dinâmica da composição atual da RID e a própria situação de área de acomodação, enquanto espaço físico de um grande número de famílias, acaba dificultando o convívio entre elas. O sistema político, e as políticas públicas sociais, não corroboram para com a melhoria desta comunidade. Souza (2013) observa que:

A desterritorialização do povo Guarani resultou num grande impacto social e organizacional, acarretando hoje grandes dificuldades e problemáticas enfrentadas pelo povo, mesmo com alguns apoios da política pública voltada para a Reserva (SOUZA, 2013, p. 3).

Embora a situação supracitada se enquadre em extrema sensibilidade e tende a ser duradoura, Bhabha (2006) entende que a negociação pode explicar o processo de vivência entre diferentes culturas e os conflitos étnicos e raciais que representam as fronteiras culturais de vários povos, onde há evidência esmagadora de uma noção mais transnacional e translacional do hibridismo das comunidades imaginadas. A nacionalidade, para ele, é um conjunto de representações características da cultura de um povo que permite reconhecê-la ou diferenciá-la dos demais.

No âmbito social, o autor mostra, entre outros autores como Fanon e Archer, que povos subordinados lutam por afirmar as suas tradições, as suas culturas e suas lutas e, muitas vezes, o capitalismo não colabora para a estrutura fundamental da identificação cultural dessas minorias.

Exemplo disso são os indígenas que, conforme argumenta Quijano (2005), comparando os Estados Unidos aos países do cone sul da América Latina, afirma que esses países buscam a anulação das etnias através da homogeneização ou nacionalização dos índios.

Para o autor, a saída seria a democratização da sociedade e do estado através da descolonização nas relações sociais, políticas e culturais. O colonialismo se apresenta de várias maneiras, é uma ferramenta de dominação cultural presente principalmente na gestão pública da educação das minorias. Nesse sentido, Casali (2014) menciona que a libertação dessa alienação e a superação do colonialismo são possíveis através dos direitos humanos e da educação crítica. Destaca ainda que,

É um movimento inverso ao da educação - é alienação, pois, se a alteridade é a marca da presença do outro como mediador de um processo de emancipação, a alienação é o seu antagônico: a presença do outro como gerador de submissão, desapropriação de si. Assim sendo, a descolonização como negação da negação equivale ao ato educativo que desaliena, emancipa (literalmente, ex-manu-capere: sai-da-mão-do-outro) e gera autonomia (CASALI, 2014, p. 259).

Para Bhabha (2006), a articulação social da diferença é uma negociação complexa e em andamento na manifestação da minoria, buscando o direito de expressar-se, baseado no reconhecimento da tradição ou invenção da tradição, ou seja, afirmação da identidade, gerando oposições de ideias pela força nas inter-relações sociais. Assim, nas palavras de Pereira (2014), os filhos de casamentos interétnicos, mesmo

Transitando ‟pelas duas etnias dos pais, acabam por desenvolver a preferência por uma delas. As distinções étnicas e essas possibilidades de trânsito fornecem subsídios para a prática política, daí que é impossível entender a composição das etnias na RID, sem levar em conta as representações sobre as identidades étnicas que compõem esse complexo cenário de interação permanente (PEREIRA, 2014, p. 15).

Além, das grandes disputas territoriais, da superpopulação, da proximidade de convivência, dos casamentos interétnicos que ali ocorrem, há fatores que reforçam ainda mais as questões de identidade, mesmo existindo o traslado, ou seja, o trânsito de um lado para outro. Essa prática acaba por reforçar a preferência pessoal por uma ou outra etnia e afirmando sua identidade. As palavras de uma colega de mestrado mostram isso claramente: “sou indígena kaiowá, meu pai é terena. Hoje moro na Jaguapiru, mas vou voltar a morar na Bororó41”.