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2. A emergência do personagem nordestino no cinema brasileiro

2.1 Os primeiros “tipos regionais” nos filmes do Ciclo do Recife

2.1.2 A Filha do Advogado (1926)

Os filmes de enredo do Ciclo do Recife não vão apenas produzir uma imagem rural e exótica do Nordeste, mas, seguindo os filmes naturais produzidos no mesmo período, vão também apresentar uma imagem modernizadora e cosmopolita da capital pernambucana,

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porém ainda permeada pelo tradicionalismo. O maior caso exemplar é o filme A Filha do

Advogado (1926), dirigido por Jota Soares, em que a masculinidade viril permeia todos os

personagens homens. O enredo conta a história de Heloísa (Guiomar Teixeira), filha bastarda do Dr. Paulo Aragão (Norberto Teixeira), que, após morar anos com sua mãe num casarão do interior, se transfere para Recife após o pedido de seu pai que viajará à Europa. Com ajuda do primo Lucio Novais (Euclides Jardim), elas vão morar numa casa num bairro nobre de Recife, porém, Helvécio (Jota Soares), filho “legítimo” de Dr. Paulo Aragão, ainda que noivo da estudante de direito Antonieta Bergmanini passa a cobiçar Heloísa até que, numa tentativa de estupro, mata-o. No julgamento, Heloísa é absolvida após a defesa do misterioso advogado Dr. Henry Valentim que ao final revela-se ser na verdade seu pai, Dr. Paulo Aragão.

Helvécio (interpretado pelo próprio diretor) é um típico playboy sedutor que vive marcando presenças e causando escândalos na vida noturna recifense, sobretudo em bordéis e festas da alta sociedade, e de toda forma busca seduzir Heloísa (ver figura 5). Heloísa se apresenta como a “moça de família”: “feminina”, rural, tradicionalista, limitada à esfera privada, ressaltada sobretudo por seu figurino, seus cabelos longos e a maquiagem que destaca traços delicados e angelicais. A personagem de Heloísa praticamente se compõe tanto da imagem da moça virgem vitoriana, bastante difundida nos filmes hollywoodianos do início do século3, mas também na própria dinâmica social a nível local que sancionou critérios de conduta e moral que restringia a mulher à esfera privada: “Os filmes do Ciclo do Recife mostram, ao menos na ficção, que nessa cidade tão aparentemente moderna, espancam-se homens com cintos como se fosse legítimo bater assim naquele que foge da moral burguesa” (CUNHA FILHO, 2010, p. 131). É bastante evidente a necessidade da manutenção dessa “moral burguesa” na cena em que Dr. Paulo Aragão, em conversa com Heloísa e sua mãe, pede para que sua filha zele “pela sua honestidade” e que essa seja um reflexo de seu “honrado nome” (ver figura 4). Tamanha a necessidade de “honrar o nome” que Dr. Paulo Aragão só divulgará publicamente a paternidade de Heloísa quando a filha corre o risco de ser presa pela morte de Helvécio. Se contrapondo à imagem de Heloísa encontra-se a estudante de direito, e noiva de Helvécio, Antonieta Bergmanini, que se veste com trajes considerados

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Apesar de na Europa o cinema estar em grande ebulição criativa com o expressionismo na Alemanha, o formalismo na URSS e a vanguarda na França, poucos desses filmes chegavam aos cinemas de Pernambuco no início da década de 20 do século passado. Por conta disso, o modelo narrativo e representacional hollywoodiano era predominante tanto nas programações dos cinemas como na preferência do público e portanto na própria referência dos realizadores do Ciclo do Recife. Evidência dessa influência do cinema hollywoodiano encontra-se na própria biografia do ator e realizador Jota Soares em que seu pai fora dono de um cinema em Sergipe que exibia exclusivamente filmes estadunidenses (COSTA DE MELO, 2011).

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na época “masculinizados”, usa cabelo preso e óculos de grau de armação grossa. Aitaré da

Praia já apresentava uma contraposição entre “feminilidades” entre a náufraga da cidade e a

litorânea Cora, porém, de forma bem mais sutil que a dualidade entre Heloísa e Antonieta, onde se destaca nessa última o estereótipo da feminista autoritária e rancorosa que se veste em trajes “masculinos” e ocupa atividades consideradas “de homem”. Ainda que se apresente de forma estereotipada e negativa no enredo (já que a personagem questiona a moralidade de Heloísa no tribunal e defende o noivo assassinado), Antonieta já revela as transformações nas relações de gênero da época tanto por seu comportamento independente e ativo na esfera pública quanto pelo fato de estar noiva de Helvécio (homem de comportamento sexista e malandro) apenas por interesse de seus pais que buscam com o casamento uma forma de evitar a falência econômica da família. A personagem de Antonieta Bergmanini, ainda que não seja um personagem central da trama, é um dos mais interessantes para se pensar as relações de gênero a nível local exatamente por conter essa contradição entre modernidade e tradicionalismo. A escolha dos pais pelo noivo da filha contradiz completamente com a personalidade independente de Antonieta.

Fazendo contraponto ao personagem de Helvécio encontra-se Lúcio Novaes (o mocinho e galã) que apresenta as “qualidades” do modelo viril de masculinidade com sua força física4 e firmeza moral, acompanhado dos hábitos do homem urbano cosmopolita. Lúcio é jornalista e seus artigos são recebidos com grande credibilidade na sociedade pernambucana, sendo evidenciado na cena em que um transeunte se aproxima para elogiar um escrito de Lúcio no jornal em meio ao movimento de uma avenida (ver figura 6). A sua firmeza moral é ressaltada também pelo Dr. Paulo Aragão que confia a ele (e não ao seu filho Helvécio) a missão de transferir Heloísa e sua mãe para Recife sem que seja causa de nenhum escândalo na sociedade recifense se descoberto o segredo da filha fora do casamento. A virilidade de Lúcio é sempre aparente seja nos planos em que ele aparece com os braços e outras partes do corpo em evidência, mas também nas várias cenas em que ele aparece em meio à vida dinâmica recifense: viajando de trem, esperando o bonde na frente de um cinema, lendo jornal, trocando palavras com anônimos. O corpo atlético de Lúcio reflete um próprio desejo de modernidade da cidade do Recife que transcende uma masculinidade provinciana e tradicionalista dos “tipos regionais”. Já Helvécio é filmado sempre em espaços onde a moralidade provinciana é mais permissível (pelo menos aos homens) como bordéis e clubes.

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Nesse quesito a escolha do ator Euclides Jardim não se deu por acaso. Euclides integrava a equipe de remadores do Sport Club do Recife o que explica o seu físico atlético e viril.

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Segundo o Prof. Paulo Cunha5, os filmes do Ciclo do Recife imaginaram uma “utopia urbana” em que se estabeleceu um imaginário de cidade que não correspondia diretamente com o provincianismo e a vigilância moral presente na época, mas um desejo de tornar-se uma capital como Paris ou Nova York. O melodrama era o gênero cinematográfico predominante nesses filmes que se caracterizavam pelo excesso dramático nas atuações, a presença do trinômio mocinho/mocinha/vilão e os enredos envolvendo dramas familiares em que as mudanças sociais e fatores externos eram as causas das tramas e desafetos entre os personagens (COSTA DE MELO, 2011). Daí a presença estilística dos planos abertos do centro moderno do Recife ou da paisagem praieira (apresentando o local e o tempo histórico da trama) e os planos fechados no rosto dos atores e atrizes ressaltando os sentimentos dos personagens.

Uma última questão diz respeito não aos filmes propriamente ditos, mas aos seus realizadores. Todos os filmes desse período terão homens na direção ou em funções de destaque como produção, direção de fotografia e roteiro. Essa predominância reflete em parte a própria dinâmica de produção que privilegia os detentores dos equipamentos técnicos, do melodrama (gênero cinematográfico predominante nos filmes do ciclo), mas também na própria sociedade pernambucana da época:

Na provinciana capital pernambucana nos anos 20, as jovens convidadas para as filmagens corriam o risco de terem a reputação manchada porque, naquela época, „moças de família‟ não atuavam em filmes. Retoma-se o provincianismo de uma sociedade que hoje ainda luta contra diversos tipos de violência contra as mulheres (COSTA DE MELO, 2011, p. 29).

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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yVcs-DQpW6s&t=1643s> Acesso: 26 fev. 2018. Fig. 4: Dr. Paulo Aragão pedindo

a filha Heloísa que mantenha sua “honra”.

Fig. 5: Helvécio tentando beijar a força Heloísa.

Fig. 6: O jornalista Lúcio Novaes numa rua movimentada de Recife.

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Atrizes dos filmes em geral ou eram de fora do estado e já faziam parte de grupos teatrais (Guiomar Teixeira era baiana e foi convidada para A Filha do Advogado quando integrava o elenco do Conjunto Regional) ou tinham alguma proximidade dos realizadores ou atores (exemplo de Almery Steves que foi casada com o realizador e produtor Ary Severo e Olíria Salgado, filha do ator Pedro Salgado). Os equipamentos utilizados nos filmes foram adquiridos de produtoras cinematográficas que se instalaram no Recife para produção de filmes documentais (naturais) de propaganda para o governador Sergio Loreto (ARAÚJO, 2013). Edson Chagas ganhou experiência com os filmes naturais, adquirindo o equipamento de filmagem e depois, junto com Gentil Roiz fundou a Aurora Film que produziu os primeiros filmes de ficção (BERNARDET, 1970, NOGUEIRA, 2014). Ary Severo foi realizador de alguns filmes da Aurora, além de ter se casado com Almery Steves protagonista em vários filmes da época incluindo Aitaré da Praia (1925). Apesar de se contabilizar em torno de mais de cem pessoas envolvidas nas produções, entre técnicos, realizadores e atores, as funções técnicas de destaque foram dominadas por um grupo seleto, geralmente homens, onde foi comum a figura do diretor que também desempenhava o papel de ator (Ary Severo dirigiu e protagonizou Aitaré da Praia). Dentre eles se destaca o sergipano Jota Soares, onde sua biografia se confunde com os papéis que desempenhou num misto de masculinidade viril, violência e tragédia. Seu pai foi jurado de morte em Sergipe ao ganhar a exclusividade de exibir um filme de sucesso em seu cinema, causando a fúria de seu concorrente português, o que o obrigou a vender todos os seus bens e fugir com a família para a Bahia, Alagoas e Pernambuco. Jota Soares foi um aluno desinteressado e rebelde, no colégio foi também militar, jogador de futebol profissional, jornalista e locutor futebolístico, além de ter se autonomeado “homem-memória” da história do cinema do Ciclo do Recife, divulgando curiosidades das produções, sempre numa narrativa heroica, quando escrevia para jornais pernambucanos nos anos 60, quando o ciclo já havia se tornado parte da história (COSTA DE MELO, 2011).

Portanto, os filmes desse período ainda que já apresentam uma tentativa de apresentar um Nordeste enquanto espaço geográfico e cultural diferenciado e inserir alguns “tipos regionais” em suas narrativas (como jangadeiros, canavieiros, senhores de engenho e cangaceiros), a masculinidade dos personagens tem forte influência do modelo de herói viril dominante nos filmes de aventura de Hollywood do início do século XX. Essa estrutura da representação da masculinidade nordestina será mantida e aperfeiçoada com o surgimento do gênero nordestern no período de hegemonia no cinema nacional das produções cinematográficas dos estúdios paulistas e cariocas, visto que nas décadas de 30 e 50 a

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produção cinematográfica na região Nordeste será bastante pontual e quase inexistente, sobretudo pela concorrência com o filme sonoro que se tornará padrão no período subsequente.