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3. Para além do cabra-macho

3.1 Descrição Interpretativa 1: Permanência (2014)

3.1.3 O Nordeste como referência e São Paulo como cenário

Permanência é filmado na cidade de São Paulo e tem como cenários mais recorrentes

o apartamento de Rita e a galeria de Cristina. Os dois cenários são onde ocorrem os acontecimentos mais relevantes para a narrativa. O apartamento de Rita é o cenário de importantes conflitos. É lá que Ivo tenta reacender em sua ex-namorada sentimentos do passado, mas se vê interrompido pela presença de Mauro que tenta insistentemente interferir em momentos de maior intimidade entre eles. É nesse mesmo apartamento que o personagem de Irandhir Santos percebe que Rita mudou muito desde que se separaram, ao desistir da carreira de artista visual para buscar uma estabilidade financeira proporcionada pelo casamento com Mauro. Ivo, ao tirar uma foto do casal, registra a infelicidade de Rita ao lado do seu novo marido e de uma possível crise no casamento dos dois. A incomunicabilidade entre os personagens é marcada pelos momentos de silêncio entre eles e reforçada pelas cores frias e tons pastéis em todo o cenário, como também pelo figurino dos personagens. Nos cenários internos, as cores frias e os tons pastéis do figurino e dos objetos em cena reforçam a atmosfera de impessoalidade desses espaços. Quando Rita e Mauro voltam de viagem e percebem a ausência de Ivo, a câmera capta um quadro no fundo do corredor de uma propaganda antiga de um hotel espanhol onde a figura de um homem encontra-se com a mão

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no queixo sentado numa cama num quarto grande e vazio, como se estivesse solitário e pensando. Em alguns planos anteriores a esse, Ivo encontra-se em posição parecida com a figura ao se hospedar num hotel após deixar o apartamento de Rita. O quadro funciona como um elemento cênico que representa ao mesmo tempo a solidão de Ivo causando pela dificuldade de comunicar sentimentos com sua ex-namorada e a impessoalidade das relações na capital paulista.

Desde o momento em que chega a São Paulo, Ivo tem como principal marcador regional o seu sotaque. Ao se referir a chuva por “toró” com Rita, acentuar o „i‟ ao falar cedinho com Cristina e chamar adultério de “gaia” com Laís, o sotaque torna-se elemento distintivo do personagem de Irandhir Santos em relação aos personagens paulistas (Laís, Cristina e Mauro). Ainda que Cristina, Mauro e Laís não se refiram diretamente ao Nordeste, utilizam outras estratégias linguísticas como uso do “lá”, impondo ao mesmo tempo uma distância geográfica e uma distinção cultural. Quando Ivo conhece Laís na galera (plano 43) ela diz tê-lo reconhecido pelo sotaque. Já Cristina faz questão de lembrar que de onde ele veio o cumprimento é com dois beijos e não um. Mauro, ao demonstrar raso conhecimento sobre o local de origem de Ivo, faz uma inusitada sugestão de abrir uma tapiocaria em São Paulo. Todos esses discursos demarcam uma distinção regional a partir de referências materiais e imateriais mais genéricas, como a tapioca, o calor e as praias, e outras mais especificas como o carnaval pernambucano e o conjunto arquitetônico do Recife Antigo. Nesses discursos, Ivo é a alteridade, o diferente, ainda que seu modo de vestir, seu comportamento e sua atividade profissional não expressem essa distinção. Porém, seu sotaque torna-se um ativador de representações mentais sobre o Nordeste que se reflete no discurso dos personagens paulistas. Segundo Pierre Bourdieu (2001):

a procura por critérios “objectivos” de “identidade regional” ou “étnica” não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios (por exemplo a língua, o dialecto ou o sotaque) são objecto de representações mentais, quer dizer, de actos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações objectais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou em actos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores (BOURDIEU, 2001, p. 112).

Ivo, apesar de raramente expressar em seu discurso o lugar de onde veio (afinal os outros personagens já o fazem), ao se referir ao estado onde vive o faz de forma orgulhosa como no diálogo com Mauro e Rita em que lembra que o pai dessa última falou certa vez que se a maconha fosse legalizada Pernambuco seria uma potência econômica. Essa fala gera

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ciúmes em Mauro devido a aparente intimidade que Ivo tinha com o pai de Rita e que ele lamenta não ter. Mais indiretamente o personagem de Irandhir Santos fala com orgulho com Laís que é filho de uma “gaia” após a degustação de um “camarão delicioso” se referindo ao fato de ter nascido após o pai ter traído a esposa numa viagem ao Nordeste onde se relacionou sexualmente com a mãe dele. Em todo o longa, as referências sobre o Nordeste, ainda que mantenha a estrutura do estereótipo, tendem sempre a serem positivas, muitas vezes pautadas a partir de experiências igualmente positiva dos personagens no lugar como é o caso de Rita e Cristina. Rita comenta sobre o sol de Recife e a saudade que tem das comidas locais. Cristina lembra do carnaval que passou na capital pernambucana e do encantamento que teve com a beleza do conjunto arquitetônico do Recife Antigo. Em nenhum momento há uma referência a seca, ao Sertão, a pobreza ou a violência, ou seja, as imagens e enunciados que tornaram o Nordeste conhecido nacionalmente. Porém, o Nordeste, enquanto região social e cultural “diferenciada” é referenciada na própria presença de Ivo nos espaços. O personagem de Ivo, ao ser de classe média e trabalhar como fotografo, faz da ida à São Paulo apenas uma passagem rápida com a justificativa da inauguração de sua primeira exposição individual. Após a exposição ele volta para Recife sem nenhuma expectativa de retorno a capital paulista ao não conseguir reaver o relacionamento com Rita. O enredo já conhecido da figura do retirante que vai a São Paulo fugindo da seca e da miséria, é contrariada pela passagem rápida de Ivo pela cidade tendo objetivos mais sentimentais do que interesses econômicos. Seu principal está em rever Rita na tentativa de reatar um sentimento antigo do que de fato se interessar em viver em São Paulo ou mesmo uma ambição real em fazer carreia como fotografo na maior cidade do país.

Pelo enredo se passar inteiramente na capital paulista, esta é filmada a partir de espaços de passagem (estação de metro), espaços de consumo (cafeteria, lanchonete, galeria de arte, cinema) ou em espaços internos e neutros (a galeria de Cristina, vagão de metro, a oficina de máquinas fotográficas), em outras palavras é ausente em todo o filme pontos turístico da capital paulista que a diferencie, particularize ou a identifique. Na sua visão da metrópole multicultural contemporânea, Richard Sennett (2016) aponta que “a rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus são lugares para passarem a vista, mais do que cenários destinados a conversações” (SENNETT, 2016, p. 360). Isso se evidencia no fato de Ivo utilizar sempre o metro para se locomover e no silêncio que o personagem se encontra nos espaços de multidão, aprofundando a sua indiferença à cidade e nos lugares em que se encontra. Segundo Marc Augé (1994) “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como

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relacional, nem como histórico definirá um não-lugar” (AUGÉ, 1994, p. 73). O modo como Leonardo Lacca filma São Paulo faz da cidade um “não-lugar” em relação ao Nordeste que é sempre identificado pelos personagens por elementos de identidade e memória como o sotaque, a culinária, a paisagem natural e o patrimônio arquitetônico. Porém, o único momento em que imagens da região Nordeste aparecem é no plano em que Rita revela o rolo de negativo que Ivo deixa de presente antes de voltar para Recife. São fotos que remetem a uma viagem feita pelos dois quando ainda namoravam. Nas fotos se vê rostos de pessoas comuns, de praias e de Rita anos mais jovem. Ao guardar por anos o rolo de negativo é possível supor que tenha sido nessa viagem que os dois romperam a relação, pois é com esse mesmo filme que Ivo tira fotos de Rita com Mauro em que ela aparenta tristeza enquanto abraça o marido. Nesse sentido, são imagens que refletem a memória de um lugar e de um tempo-espaço que é confrontada pelas imagens da vida atual de Rita. Da mesma forma, é a Rita daquelas fotos que Ivo buscava reencontrar em São Paulo, ou seja, é a Rita que ele conheceu e amou no Nordeste e com quem viajou pela região. Rita chora ao vê-las, pois percebe que mudou muito desde então, ao buscar um cotidiano estável emocionalmente e financeiramente num casamento com um homem bem-sucedido, abandonando o sonho de ser artista visual.

De certo modo, Rita, Laís, Mauro e Cristina são diferentes representações da metrópole multicultural contemporânea. Enquanto Rita parece buscar estabilidade nas convenções do casamento, Laís, ao contrário, busca a instabilidade, relacionamentos amorosos curtos e satisfação sexual que se refletem nas intervenções visuais que faz na paisagem urbana ao colar fotos em paredes. Imagens que vão descolorir rasgar e desaparecer com o tempo, ou seja, refletem a impermanência da vida urbana. Já Cristina é uma mulher de negócios, séria, prática que racionaliza os potenciais e os lucros nas obras de arte que seleciona, apostando em artistas novos e independentes, como Ivo, fora do eixo Rio-São Paulo. Mauro é o homem individualista e dominador, mas que tenta ser simpático passando uma aparência desinteressada e diplomática quanto na verdade esconde seu lado arrogante e ciumento. Quando Ivo deixa o seu apartamento, Mauro fala para Rita que finalmente ele entendeu que sua presença era inconveniente. O fato do personagem de Irandhir Santos contrariar e desconstruir uma determinada imagem do nordestino não evita que personagens secundários como Mauro e Cristina sejam mais estereotipados ao cristalizarem certos comportamentos e práticas associados a determinada classe ou grupo social de determinada localidade. Ao representarem indivíduos de classe alta e bem-sucedidos seus comportamentos e suas atitudes e posições no enredo impedem uma maior identificação do espectador. Isso é

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reforçado nos diálogos triviais sobre a vida em São Paulo e por se referirem ao Nordeste como se fosse outro país. Mauro e Cristina são representações do indivíduo médio na metrópole multicultural contemporânea, em suas distinções de classe e práticas xenófobas, que, ao não acolherem completamente as diferenças regionais, étnicas e culturais, sua “melhor expectativa está na tolerância” (SENNETT, 2016, p. 360). Essa tolerância à alteridade se reflete tanto na formalidade excessiva de Mauro com Ivo, quanto na ênfase dada por Cristina ao preferir artistas “fora do eixo” em sua galeria, ou seja, oriundos de outras regiões do país que não o Sudeste. Por outro lado, o filme de Leonardo Lacca revela o lado performativo na construção da alteridade regional. Segundo Pierre Bourdieu (2001), o discurso que cria fronteiras simbólicas (sejam étnicas, raciais ou regionais) é um discurso performativo no sentido de “impor como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada” (BOURDIEU, 2001, p. 116). Se Ivo não apresenta hábitos e costumes regionalistas esses personagens secundários reforçam o contraste entre representação e atuação. Segundo Renato Coen (2007), o que caracteriza um espetáculo como representação é o caráter ficcional no sentido de “o espaço e o tempo serem ilusórios, da mesma forma que os elementos cênicos se reportam a uma „outra coisa‟” (COEN, 2007, p. 96), ou seja, representam algo. Essa “outra coisa” no filme de Leonardo Lacca é a representação mental que os paulistas de classe média tem sobre o Nordeste. Nesse sentido, personagens como Mauro e Cristina são uma representação da representação que indivíduos da região Sudeste tem sobre indivíduos da região Nordeste. Não conhecemos, a não ser de modo superficial, os medos, as ansiedades, as fragilidades de nenhum outro personagem que não seja o de Ivo e de Rita. Isso reforça a performance de Irandhir Santos ao interpretar Ivo que contraria tanto representações históricas sobre o nordestino, mas também características de outros personagens nordestinos que ele interpretou anteriormente.