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Pensando gênero a partir de Boi neon e os limites da representação

3. Para além do cabra-macho

3.2 Descrição Interpretativa 2: Boi Neon (2015)

3.2.6 Pensando gênero a partir de Boi neon e os limites da representação

Todos os personagens em Boi neon são inscritos numa horizontalidade nos planos, mas também na narrativa. Eles estão conectados numa rede de afetos e trocas interpessoais tendo os bastidores da vaquejada como cenário principal. Cacá (Alyne Santana) é uma personagem importante na narrativa, pois conecta os outros personagens através de uma rede de sentimentos, cumplicidades e emoções. Com a ausência do pai, ela tem na sua mãe a principal referência. Galega a cria sozinha e muitas vezes surgem pequenos conflitos entre as duas. A filha leva uma tapa de sua mãe por dizer que a calcinha fio dental que ela comprou de um vendedor ambulante é “coisa de puta”. Já Iremar é uma referência masculina importante para Cacá, desconstruindo nela os complexos de ser uma filha de pai ausente e cuidando dela quando Galega fica ausente. Ela também mantém laços com o vaqueiro Zé por conta de suas brincadeiras e seu jeito atrapalhado e descontraído com que leva a vida. Cacá é a primeira a se relacionar bem com Júnior, que substitui Zé no trabalho, ao ficar curiosa com um homem que

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alisa o cabelo e usa aparelho dentário, contrastando com os outros personagens masculinos. A única personagem que Cacá não estabelece nenhuma relação é com Geise, que entra na história oferecendo cosméticos e perfumes aos vaqueiros. A única relação que a personagem de Samya De Lavor mantém é com Iremar e termina nele.

A estrutura narrativa dominante, que leva o espectador “a desvelar uma verdade ou uma solução através de certo número de etapas obrigatórias” (VERNET, 1995, p. 125) são dissolvidos no fluxo de imagens e acontecimentos que não levam a uma resolução pre- estabelecida (happy end ou o final trágico). O conflito entre “herói” e sua antítese inexiste. Segundo Massimo Canevacci (1990), a maioria dos filmes de ficção é dotada de uma qualidade ritual (portanto repetitiva) em suas narrativas. Essa qualidade ritual se deve à presença de uma “estrutura quaternária” que “objetiva a demonização do outro e a beatificação do próprio si mesmo e do próprio grupo” produzindo um arquétipo da alteridade (CANEVACCI, 1990, p. 56). A ausência ou a dissolução dessa estrutura quaternária no enredo de Boi neon contribui para explicar a ausência de uma hierarquia entre gêneros (masculino ou feminino), como também entre masculinidades (hegemônica ou subalterna) dos personagens na narrativa. As diferenças se apresentam a partir de contrastes na própria mise-

en-scène e não por um conflito preestabelecido no roteiro. A chegada de Júnior incomoda

Iremar, da mesma forma que a aproximação deste último com Geise afeta a personagem feminina Galega. Porém, a narrativa em momento algum se centra nas causas e efeitos de um possível conflito ou desafio a ser resolvido entre eles. A relação sexual com Geise não muda o cotidiano de Iremar e nem a narrativa leva a uma reação e solução para o acontecimento (um casamento ou uma separação dolorosa). O ato sexual entre os dois parece possuir uma função mais de provocar o espectador a pensar outras formas de relações, do que desenvolver ou resolver um determinado problema da trama. Ao final, Galega lava seu caminhão com uma mangueira, Cacá observa um boi ser assado numa churrasqueira e Iremar, com olhar distante, tange o gado no curral. A vida continua e o “herói” termina da mesma forma que começou. Se algo se alterou nele, nós não somos informados e só podemos supor.

Masculinidade e feminilidade são apresentadas em Boi neon de forma diversa e criativa, borrando a fronteira de ambos. Por conta de todos de muitos elementos descritos aqui associado as características psicológicas dos personagens, o filme de Gabriel Mascaro tem sido lido de forma a sempre ressaltar o seu lado desconstrutor de uma determinada representação sobre o que é ser homem e mulher no Nordeste. Para citar alguns exemplos, o crítico Silas Martí (2016) destaca em sua crítica para o jornal Folha de São Paulo que “os

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longos planos do filme […] conduzem essa desconstrução dos papéis do homem e da mulher”25

(MARTÍ, 2016). Pablo Villaça (2015) para a Carta Capital escreve que, “ciente de que somos criaturas complexas, o filme parece determinado a subverter nossas expectativas e a fugir de estereótipos e preconceitos”26 (VILLAÇA, 2015). Já o crítico Fábio Andrade (2015) da revista digital Cinética, ao se referir a cena de sexo entre Iremar e Geise e sua longa duração cria “uma verdadeira movimentação política dentro da cena, obrigando […] o espectador a se confrontar com suas expectativas e preconceitos, transcendendo o incômodo inicial como um gesto potente de autonomia”27

(ANDRADE, 2015). Com vimos anteriormente, essas sensações são criadas através de uma série de escolhas e procedimentos técnicos e estéticos como o uso constante de plano-sequência de longa duração, a câmera mais fixa e distanciada, a predominância de planos abertos, o tipo de performance empreendia pelos atores profissionais e dos “não atores, as marcas corporais dos intérpretes, a escolha dos cenários etc. Porém, nessa pesquisa é necessário perfurar a imagem e pensarmos questões um pouco mais amplas, colocando em perspectiva o que já discuti aqui.

A expectativa de um comportamento mais viril e dominador por parte do personagem masculino (comportamento reificado pelos heróis viris do cinema dominante) é contrariada em Boi neon pelo fato de comportamentos atribuídos a determinado gênero o serem. Como vimos o personagem de Iremar, ao mesmo tempo em que subverte certas características do modelo hegemônico de masculinidade, reproduz em seu discurso certos aspectos que subalterniza tanto práticas masculinas não hegemônicas, mas também ao feminino. Porém, as atividades ligadas ao mundo dos vaqueiros e da vaquejada não se apresentam como exclusivas de homens. Da mesma forma, a masculinidade de Iremar e Júnior contrariam o modelo viril dominante, que ao nível regional, historicamente associou identidade cultural, virilidade e papéis sociais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013). Segundo o diretor e roteirista Gabriel Mascaro:

A ideia de Boi Neon foi lançar uma nova luz sobre as transformações recentes do Brasil a partir de um recorte narrativo que se segue da vida de um grupo de vaqueiros que vivem na estrada transportando boi para as festas da vaquejada, um dos maiores eventos de agrobusiness do Brasil. Tendo a vaquejada como palco alegórico destas transformações em meio à paisagem monocromática e industrial do Nordeste, eu pesquiso as cores que reluzem as contradições do consumo e dilato noções de identidade e gênero em personagens que convivem com novas

25 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/01/1729226-em-boi-neon-gabriel-mascaro- mostra-direcao-mais-consistente.shtml Acesso: 19/11/2018.

26 Disponível em: http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/Critica/Filme/8206/boi-neon Acesso: 19/11/2018. 27 Disponível em: http://revistacinetica.com.br/home/boi-neon-de-gabriel-mascaro-

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escalas de sonhos possíveis (MASCARO, 2017, p. 8).

A figura do cabra-macho e suas variações nos tipos regionais estão dissolvidos e transformados nos personagens masculinos. Por isso, os hábitos e papéis sociais que serviram de classificação do homem nordestino em tipos regionais no século XX (jagunço, coronel, brejeiro e etc.) são ausentes, ainda que utilize a heterossexualidade enquanto característica dos personagens. Não é só ausência de masculinidades homossexuais que mantêm certos limites da desconstrução da imagem do homem nordestino. Iremar e Júnior quando se relacionam sexualmente com Geise e Galega, respectivamente, suas performances são infalíveis e mostram a presença de uma potência sexual. Ainda que as personagens femininas tenham um protagonismo importante nas duas cenas (Geise é quem guia Iremar no ato e Galega reivindica sexo oral de Júnior), a performance infalível dos corpos dos dois atores contribuem para reproduzir uma imagem heterosexualizada da masculinidade nordestina tão presente nos filmes que citei no primeiro capítulo seguindo a máxima de que o homem nordestino, apesar das carências sociais e econômicas, é viril. Em sua crítica à noção de identidade de gênero que reproduz a matriz heterossexual, segmentando noções binárias como sexo/gênero e masculino/feminino, que torna o “sexo” a base material e corporal e o gênero como um ato de inscrição cultural, Judith Butler (2003) demonstra que:

como efeito de uma performance sutil e politicamente imposta, o gênero é um “ato”, pois assim dizer, que está aberto a cisões, sujeito a paródias de si mesmo, a autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do “natural” que, em seu exagero, revelam status fundamentalmente fantasístico (BUTLER, 2003, p. 211).

Se o gênero é um efeito performático que revela a desnaturalidade do sexo, o rompimento com suas normas despojam “as narrativas naturalizantes da heterossexualidade compulsória de seus protagonistas centrais: os „homens‟ e as „mulheres‟” (BUTLER, 2003, 211). Nesse sentido, o filme de Gabriel Mascaro não rompe completamente com a matriz heterossexual, mas joga com o espectador no sentido de contrariar expectativas socioculturais do que é ser homem e o que é ser mulher no Nordeste. A particularidade da construção da masculinidade de Iremar e de Júnior, ainda que heterossexual, revela a artificialidade da narrativa naturalizante que liga sexo ao gênero. Por isso, ao nos referimos aos seus hábitos, comportamentos e práticas, precisamos ter em mente aquilo que Miguel Vale de Almeida (1996) chamou de “masculinidade dos homens”, ou seja, que características associadas ao masculino não são exclusivos de homens e o mesmo se dá com o feminino e as mulheres. O cuidado de Júnior com a aparência faz com que Galega passe a cuidar mais da sua. Durante

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todo o filme, o cabelo cacheado de Galega está sempre desgrenhado e com a cor loira sem retoques até ela ver Júnior gastar horas no espelho alisando cuidadosamente o cabelo longo. Por não apresentar desejo sexual por nenhum dos vaqueiros com quem trabalhava até então, a aparência da personagem de Maeve Jinkings refletia a sensação de pouco cuidado, ainda que demonstrasse interesse em roupas e acessórios (como na cena em que compra calcinha fio de dental de um vendedor ambulante). O personagem de Júnior faz dele objeto de desejo de Galega, subvertendo o lugar-comum dominante que objetifica a mulher e sua feminilidade. Essa inversão é provocada também pela presença da nudez masculina na cena em que os vaqueiros tomam banho juntos ou quando a câmera enquadra Iremar urinando tornando visível seu pênis.

Nesse sentido, os personagens de Geise e Galega cumprem uma função importante para aparência desconstrutiva do filme, ao ocuparem funções predominantemente masculinas em nossa sociedade. Galega dirige o caminhão que carrega os bois para as vaquejadas, o que faz com que ela exerça autoridade sobre os vaqueiros, mas também que mantenha uma cumplicidade com eles, especialmente com Iremar. Ainda que o termo “caminhoneira” tenha se tornado sinônimo de lésbica na linguagem comum, aqui, o fato de ocupar uma profissão considerada “masculina” não reflete na sua orientação sexual. Da mesma forma que Geise, mesmo grávida, trabalha como vigilante noturna, Galega contraria estereótipos que associam determinadas atividades e papéis sociais a determinado gênero ou orientação sexual.

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