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3. Para além do cabra-macho

3.1 Descrição Interpretativa 1: Permanência (2014)

3.1.2 Leonardo Lacca e a encenação

Permanência (2014) é o primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Leonardo

Lacca, mas que anteriormente dirigiu cinco curtas-metragens, atuou como produtor, assistente de direção e preparador de elenco em algumas produções, além de ser sócio na produtora pernambucana Trincheira Filmes. Em seu primeiro curta-metragem, Ventilador (2004), Lacca tem como protagonista um ventilador de uma jovem depressiva. Com apenas três planos em oito minutos da duração, o filme segue o ponto-de-vista do ventilador sobre a jovem com a câmera fazendo o movimento mecânico da ventilação enquanto a jovem chora as suas mágoas. O curta é todo filmado em coloração sépia. Em Eisenstein (2006), em que divide a direção com Tião e Raul Luna, Lacca utiliza da experimentação, do humor e referências cinéfilas para apresentar a história de um jovem diretor pernambucano que, após ser rejeitado num teste para diretor (numa evidente ironia aos testes para atores), sonha que vive na União Soviética dos anos 20, conhecendo pessoalmente o cineasta russo Sergei M. Eisenstein e se apaixonando pela neta desde último (interpretada por Rita Carelli, a Rita de Permanência). Num dos planos, a famosa cena da escadaria de Odessa no filme O Encouraçado Potemkin (1925), onde várias pessoas são pisoteadas ao tentarem fugir dos soldados czaristas, é reencenada e transposta para a ladeira da Misericórdia em Olinda, com direito a dançarinos de frevo e um bloco carnavalesco. A sucessão de planos e de sobreposições remete as experiências de montagem dos realizadores soviéticos como Lev Kuleshov, Vsevolod Pudovkhin e do próprio Sergei M. Eisenstein15. É o curta-metragem Décimo Segundo (2007) que mais se aproxima de Permanência (2014), em que o longa-metragem funciona como uma continuação do curta feito sete anos antes com os mesmos atores. A sequência da chegada de Ivo ao apartamento de Rita em Permanência é uma refilmagem, com poucas diferenças no diálogo e no desfecho, do curta-metragem. Filmado com apenas três planos em vinte minutos de duração, Décimo Segundo (2007) se concentra no reencontro entre dois ex-namorados, igualmente interpretados por Irandhir Santos e Rita Carelli, quando Ivo se hospeda temporariamente na casa de Rita durante uma passagem por São Paulo. A grande diferença encontra-se mais no campo técnico e estético pois, da entrada de Ivo ao apartamento até a

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saída de Rita para o trabalho, é filmada em um único plano-sequência com a câmera na mão seguindo os movimentos dos atores pela cozinha. Longe do refinamento da decupagem dos planos e da disposição dos atores e dos objetos do longa, no curta-metragem a câmera praticamente enquadra apenas Ivo, com Rita tendo destaque apenas no diálogo do café. O sentido de movimento e de tensão entre os personagens é muito mais perceptível no curta- metragem por conta dos balanços e dos movimentos rápidos que a câmera faz ao enquadrar o rosto dos personagens e nos momentos de silêncio entre os dois. Toda a nossa atenção no curta se concentra na fisionomia dos atores e menos no cenário aparentemente simples. Segundo Anne Goliot-Leté e Francis Vanoye (1994), os curtas-metragens são construídos a partir de configurações retóricas mais simples se comparados com um longa-metragem e por isso:

As obras fílmicas curtas exibem seus dispositivos (narrativos ou discursivos), sua estrutura dramática e rítmica, a forma-sentido que produz seu impacto de maneira mais evidente que os longas-metragens, isso provavelmente porque a apreensão desses elementos não tem tempo de ser diluída nos meandros de uma história ou distraída pela identificação com personagens ou pelas emoções que, se envolvem, fazem-no de maneira rápida, aguda, como se “precipitassem” (GOLIOT-LETÉ; VANOYE, 1994, p. 114).

Isso se torna evidente no contraste entre a agitação da câmera e do movimento dos atores em Décimo Segundo (2007) se comparada com a mesma sequência refilmada em

Permanência (2014). Enquanto a cena da cozinha no curta é feita numa tomada única, no

longa as mesmas ações estão segmentadas em dezoito planos. Porém, essa aparência de “precipitação” no uso do plano-sequência e na câmera na mão, em comparação com a decupagem em vários planos, não se reflete na duração das duas cenas. Enquanto a tentativa de Ivo de entrar no elevador até a saída de Rita do apartamento dura no longa-metragem apenas dez minutos, no curta-metragem todos esses acontecimentos duram o dobro do tempo. Isso se deve, em parte, de que no longa essa é apenas a cena inicial do filme (a introdução aos desdobramentos sentimentais e sexuais entre dois personagens) enquanto no curta é a sua íntegra (cabe o espectador refletir sobre os acontecimentos que viu sem haver um desdobramento deles). Por outro lado, os cortes na montagem do longa-metragem dão agilidade à sucessão de ações dos atores em cada plano, enquanto no segundo, por ser um plano único, precisamos acompanhar todos os movimentos dos atores na mesma duração em que eles acontecem. Em Ela Morava na frente do cinema (2011), Lacca utiliza-se de certas escolhas estéticas que serão aperfeiçoadas em seu longa-metragem. O curta-metragem conta a história de uma garota que após receber de presente uma fita de vídeo ela vai até uma oficina

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de assistência técnica para consertar seu aparelho VHS para ver a fita. Ela encontra uma assistência técnica funcionando onde antes era a casa em que ela morava com os pais e que se localizava em frente de um antigo cinema que fora demolido para construção de um prédio residencial. Ao se utilizar de planos mais abertos para filmar os espaços internos, a profundidade de campo revela o interior da antiga residência, revelando as texturas das paredes em contraste com os aparelhos eletrônicos abandonados.

Se podemos fazer uma ligação entre propostas tão heterogêneas em curtas-metragens como Ventilador (2004), Eisenstein (2006), Décimo Segundo (2007) e Ela Morava na frente

do cinema (2011) é a tendência à experimentação estético-narrativa e na economia dos planos.

Essa economia reflete em planos de longa duração (Ventilador, Ela Morava na frente do

cinema), uso de plano-sequência (Décimo Segundo) e uso constante de close ao enquadrar os

atores sem profundidade de campo (Eisenstein, Décimo Segundo) se diferenciando bastante das escolhas estéticas de Permanência em que a alternância entre planos gerais e planos americanos é acompanhada de profundidade de campo ou da sensação de achatamento dos atores e objetos em cena. Ainda que Permanência (2014) seja uma “continuação” de Décimo

Segundo (2007) o longa-metragem apresenta diferenças técnicas e estéticas consideráveis.

Entre as escolhas estéticas preponderantes no filme de Leonardo Lacca está o uso do efeito “foto de identidade” (mug-shot) ao “chapar” os atores com o fundo do cenário em planos frontais (ex: plano 12), profundidade de campo em planos com movimento de câmera (ex: plano 43) e uso de foque/desfoque em planos mais fechados (ex: plano 7). No efeito “foto de identidade”, o movimento dos atores no plano nos atrai para suas reações faciais e gestuais, mas também para a composição do cenário. Um exemplo está na cena em que Ivo leva sua câmera para consertar. Essa cena é composta por cinco planos: três enquadrando diferentes ângulos da câmera sendo concertada, focando na câmera de Ivo e desfocando o fundo, e dois planos abertos enquadrando e espaço da oficina. No primeiro plano aberto, Ivo está observando a sua câmera ser concertada enquanto uma porta aberta ao seu lado direito emite vários lampejos de um flash (ver figura 112). Ivo está sendo enquadrado do joelho para cima frontalmente, enquanto o homem que concerta sua câmera está sentado de perfil. Desse modo, o plano é composto por vários objetos fotográficos espalhados nas estantes e na mesa de conserto e ao fundo uma janela dá para uma parede branca e para uma planta de porte médio. No plano seguinte, Ivo entra na porta à direita de onde vem os lampejos. Num plano conjunto, a câmera é fixada no lado oposto da porta, captando frontalmente a entrada de Ivo. Ao lado esquerdo um homem de meia-idade de jaqueta vermelha e virado de costas para a câmera conserta o flash de uma máquina sentado numa mesinha (ver figura 113). Todo o ambiente é

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preenchido por máquinas fotográficas, lâmpadas de flash, álbuns de fotografia e outros utensílios fotográficos. O efeito de chapar o fundo possibilita ver por trás de Ivo não só parte do ambiente onde ele se encontrava no plano anterior, mas também um pequeno corredor que dá numa outra porta de um quarto com um espelho na parede. Outro exemplo encontra-se no plano em que Ivo entra com o pai na fábrica tornando nítido tanto o interior quanto o exterior do galpão. Já no uso da profundidade de campo contribuiu para um maior preenchimento da composição do quadro possibilitando perceber não apenas o cenário, mas o volume do espaço cênico, possibilitando o espectador captar outras informações do universo a que os personagens estão inseridos. No plano da chegada de Ivo na galeria vemos com nitidez tanto Laís quando os trabalhadores ao fundo. Um exemplo bastante criativo de meio termo entre “foto de identidade” e profundidade de campo está no plano em que Ivo está no metrô com Laís (ver figura 110). Nesse plano, os dois personagens estão em pé e enquadrados em plano americano. Ao fundo visualizamos à direita um homem lendo um livro, uma mulher de jaqueta vermelha segurando na barra de sustentação e outro homem apontando a câmera do

smartphone para o vidro frontal do trem no momento em que outra locomotiva segue em

direção oposta. Ainda que não vejamos com total nitidez o metrô que segue na direção oposta da linha, percebemos claramente do que se trata, pois o ângulo da câmera enquadra a janela no centro do plano entre Ivo e Laís funcionando como uma metáfora do relacionamento efêmero entre os dois. Nesses planos de grande profundidade (plano-sequência da galeria) ou com efeito “foto de identidade” demonstra que a mise-en-scène é “uma manipulação espacial dentro da projeção geométrica” (BORDWELL, 2008, p. 41).

Fig. 110: Ivo e Laís no metrô. Fig. 111: Ivo na fábrica do pai.

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Segundo David Bordwell (2013), a função da profundidade que compõe seus efeitos na encenação foi questão privilegiada nos debates cinematográficos do pós-Segunda Guerra Mundial pela recorrência em filmes de realizadores hollywoodianos, soviéticos, franceses e italianos nas duas primeiras décadas do cinema sonoro (BORDWELL, 2013). Enquanto os estudiosos anteriores voltavam sua atenção aos filmes do cinema mudo dos anos 20, observando neles a dicotomia entre montagem e encenação, valorizando a primeira como autenticamente cinematográfica em detrimento da segunda, que seria mais “teatral”, estudiosos do pós-guerra, como André Bazin, via na encenação em profundidade de campo e a montagem continuada, exemplos da modernidade no cinema sonoro por documentar um mundo preexistente (BORDWELL, 2013). Para David Bordwell (2013), para além de noções de autenticidade ou modernidade, a encenação “chapada” ou em profundidade tem a função fundamental de induzir o espectador a centrar a atenção em algo em detrimento de outro, afetando a percepção sobre determinado objeto ou personagem (BORDWELL, 2013). Por isso:

Uma grande parte do ofício do diretor de cinema consiste em um entendimento intuitivo de como induzir o espectador a olhar certas partes do quadro em certos momentos. O diretor também aprende que, sendo iguais todas as outras coisas, o espectador tenderá a ficar atento ao rosto do ator, especialmente os olhos e a boca. O diretor também aprende que uma figura imóvel, silenciosa, atenta pode chamar nossa atenção para outro personagem (BORDWELL, 2013, p. 231).

A imobilidade de Ivo na sequência da cozinha centra nossa atenção tanto para as suas reações faciais e seus movimentos com os braços, mas também no desconforto de Rita ao se movimentar forçosamente diversas vezes no mesmo plano, de forma a “deslocar a ação em torno de uma zona central e equilibrar um plano por meio de uma sucessão de poses” (BORDWELL, 2013, p. 266). A decupagem na sequência inicial, ao permitir o espectador ver a ação em diferentes ângulos da cozinha, utilizando a técnica do raccord, isola sequencialmente a personagem de Rita Carelli (plano 8 e 10) e em seguida o personagem de Irandhir Santos (plano 9 e 11),deixando vez um e vez o outro fora de campo. Os gestos, os movimentos, as reações faciais e os diálogos dos personagens formam um todo nas soluções e estratégias de dirigir a cena e por isso:

Entrecortar o movimento de câmera, movendo-a em direção a dois personagens parados, pode ser, ao mesmo tempo, denotativo (ressalta as reações faciais), expressivo (sinaliza uma tensão crescente na cena) e ligeiramente decorativo (cria uma repetição paralela de um dispositivo estilístico) (BORDWELL, 2008, p.61).

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No caso da sequência da cozinha é tanto denotativo, ao ressaltar as reações faciais de desconforto em Ivo e Rita, como expressivo, ao sinalizar uma tensão crescente entre os personagens resultando no clímax entre os dois. O mesmo não ocorre na cena de Ivo conversando com Cristina na galeria ao usar sucessivamente plano e contraplano. Nessa sequência a tensão é causada pela insistência de Cristina em ressaltar o sotaque de Ivo e se referir equivocadamente a Recife, mas também pelo sarcasmo nas respostas de Ivo, e por isso não gera consequências graves no enredo, ao contrário da sequência inicial que emerge um sentimento entre Ivo e Rita. Por tanto, essas escolhas de encenação e o enquadramento constituem no plano elementos de heterogeneidade entre masculinidades (entre Ivo e Mauro), de gênero (entre Ivo e Rita e entre Ivo e Laís) e de região (entre Ivo e Cristina e entre Ivo e Mauro). O teor e a entonação dos diálogos e as reações corporais dos atores formam pares de oposição na encenação, expressando e transversalizando alteridades de gênero e região. O personagem de Ivo torna-se uma representação tanto de gênero como de região para os outros personagens.