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3. Para além do cabra-macho

3.2 Descrição Interpretativa 2: Boi Neon (2015)

3.2.5 O Nordeste como cenário

Apesar de os personagens estarem sempre viajando, o filme possui alguns cenários que se repetem: a cabine, a carroceira e o curral. As paisagens contribuem para contextualizar a narrativa no tempo e no espaço. Nas cenas em que Galega conduz o caminhão, há presença de mata verde, largas rodovias, refinarias de petróleo, grandes centros comerciais e indústrias (ver figuras 142 e 143). O uso de plano geral nessas paisagens registra um Nordeste em

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transformação situando o espectador no tempo e no espaço e contextualizando ações e comportamentos dos personagens. Essas paisagens contribuem para a eficácia da performance dos atores/atrizes pois “os cenários forçam-nos a considerar a existência corpórea de todos os participantes” (TAYLOR, 2013, p. 14). Fica evidente de que se trata de um Nordeste que é parte da cultura do consumo e do espetáculo, e por isso marcado pela tecnologia e pela industrialização, o que rompe com a imagem cristalizada do Sertão isolado e tradicional, habitado por coronéis, jagunços e retirantes. Apesar da paisagem predominante rural, as vaquejadas são apresentadas como grandes espetáculos high tech, com direito a telas de vídeos, efeitos sonoros e luz neon (ver figura 144). O entorno da arena de vaquejada é carregado de tendas de música eletrônica, camionetes e grandes paredes de som que muito lembram as festas de rodeio estadunidenses (ver figura 145). Curiosamente, o aspecto high

tech das arenas de vaquejada, contrastam com a precariedade e improviso dos espaços de

acomodação dos vaqueiros. Enquanto os bois estão nos currais, os vaqueiros Iremar, Zé e Mário (e mais a frente Júnior quando este substitui Zé no serviço) dormem em redes na carroceria do caminhão, enquanto Galega e sua filha Cacá dividem o espaço da cabine. Por conta da profissão que exercem, os personagens não se fixam em lugar algum. Não sabemos de onde eles vieram e para onde vão. Tudo é provisório e passageiro. O efeito da fragmentação do mundo globalizado encontra-se presente na atmosfera em que os personagens estão inseridos. Mesmo contendo os elementos culturais mais nordestinos, os mesmos estão dissolvidos nos “excessos da cultura do espetáculo” e da sociedade do consumo. É o caso da cena em que Mário, Galega, Cacá e Zé dançam ao som de “Meu Vaqueiro, meu peão” da banda cearense de forró elétrico Mastruz com Leite.

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Fig. 144: O boi neon Fig. 145: O lado de fora da arena de vaquejada.

Essa junção de elementos culturais locais com produtos culturais globais é a forma estética e sonora do filme registrar certo olhar sobre o Nordeste na contemporaneidade, mas também de dialogar implicitamente com o passado local e as imagens e enunciados, incluindo o cinema, produzidos sobre a região. Nas palavras do diretor Gabriel Mascaro:

Esta região foi apontada por políticos e economistas brasileiros nos anos 60 como a “região problema” do Brasil por causa do histórico de desertificação, fome, sede, fanatismo religioso e das revoltas populares. Na mesma década, o cinema e a literatura foram buscar nesta região a alegoria da luta de classe e a revolução camponesa. O Cinema Novo se apropriou da região enquanto experiência que cristalizou até hoje alguns signos de representação, como a ideia de preservação das tradições culturais, da ideia de valentia quase sacralizada e puritana do homem trabalhador e na possibilidade deste homem culturalmente enraizado trazer novos valores para reparar a crise identitária dos centros urbanos. Hoje temos outro contexto no Brasil. A região cresceu economicamente de forma muito veloz, é cosmopolita, então o filme se alicerça num cenário contemporâneo de prosperidade econômica regendo novos signos, desenhando novas relações humanas, afetos e desejos. É um filme sobre a transformação da paisagem humana (MASCARO, 2016).

Ao documentar essas transformações da paisagem humana, Mascaro retorna a certos aspectos de seus filmes anteriores como Avenida Brasília Formosa (2010) e Ventos de Agosto (2014) já citados aqui. A presença de cenas que descrevem a vida cotidiana dos vaqueiros em atividades laborais contribui para uma dimensão documental do filme. Num plano, Zé e Iremar estão recolhendo com vassouras e com as próprias mãos as fezes dos bois enquanto cantam. Num outro, Iremar e Mário seguram um bezerro no chão para que Galega o marque a ferro quente. A sensação quase documental dessas cenas possibilita contornar os riscos de espectadores/as verem certas situações como inverossímil. É o caso das cenas que beiram o surreal (como a do cavaleiro que inexplicavelmente acaricia carinhosamente seu cavalo ou quando um boi ganha coloração neon). Essas cenas cumprem certos objetivos estéticos:

O filme conta com a ideia de utilizar estas cenas mais oníricas ou “suspensas” para romper com a ideia de um naturalismo que emana das cenas. Apesar de o código de registro se aproximar do olhar documental, se trata de um filme completamente ficcional, onde o próprio surrealismo estético presente no filme é parte da cultura

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do excesso, e às vezes normalizados como se fossem registrados em olhar “observacional”. Por vezes o espectador se pergunta se o Boi Neon existe de verdade, se os tratadores penteiam os cabelos dos cavalos... O surrealismo estético se fundiu com os excessos da cultura do espetáculo. Não saber onde termina um mundo e começa outro é o jogo de suspensão que o filme provoca. (MASCARO, 2017, p. 8)

O surrealismo, ao ser uma corrente artística que se caracteriza pela expressão do inconsciente, proclamando a prevalência absoluta do sonho e do desejo e a renovação dos valores morais, político e filosóficos, contribui para complexificar a atmosfera de Boi neon, contrastando com cenários e situações mais cotidianas e verossímeis, mas também com o próprio interior dos personagens ressaltando seus sentimentos e afetos. Como vimos anteriormente, o fato de uma situação ser mais ou menos verossímil para o espectador não corresponde diretamente à possibilidade de sua realização em nossa vida cotidiana. No filme dirigido por Gabriel Mascaro, não são apenas os comportamentos dos personagens que contrariam uma determinada expectativa social, cultural e cinematograficamente reificada. Como vimos, os corpos dos atores e o tipo de performance empreendida por eles cumprem um papel fundamental nesse processo, associados a aspectos mais técnicos, como o uso de plano sequência e da câmera distanciada e estéticos, como a cor do figurino e dos cenários. Dissecados todos esses elementos, podemos pensar as contribuições e os limites da representação de gênero no filme como um todo.