• Nenhum resultado encontrado

1 A ARTE CINEMATOGRÁFICA EM BASES REFLEXIVAS

1.1 FILME, FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA: AUTORES E

CONCEITOS

O cinema pode ser considerado um meio criativo, um produtor de novas e diferentes coisas. O que o governa, o que o impulsiona, o que o produz são as questões que muitos teóricos do cinema e filósofos procuraram articular. Cinema envolve também outras formas audiovisuais, tais como a televisão, jogos de computador, indústrias de mídia on-line que remodelam o conhecimento do mundo por meio de várias categorizações, gêneros, campos de investigação, diferentes métodos de representação, intervenção ou provocação. Por meio dos seus vários pressupostos e finalidades diferentes, o cinema mostra e indaga as formas como nós agimos sobre as coisas do mundo, incluindo a própria natureza do pensamento que é, de uma forma ou de outra, uma atividade perceptiva, mas também corpórea e carnal.

Dessa maneira, a pergunta “O que é o cinema?” é uma questão ontológica, já que é uma indagação acerca das formas pelas quais o cinema pode reunir partes diferentes, expressões, tecnologias e eventos e produzir uma unidade inteira: um filme, uma obra audiovisual. Mas é também uma questão fenomenológica, em que estão situadas as explorações de consciência e de ser cinematograficamente produzidas por meio da percepção e do movimento.

No que tange a esse aspecto, a fenomenologia pensada por Edmund Husserl (1988) é uma volta ao mundo vivido, ao mundo da experiência, o ponto de partida de todas as ciências. A fenomenologia propõe descrever o fenômeno, e não explicá-lo ou buscar relações causais; volta-se para as coisas mesmas como elas se manifestam. Voltar às coisas mesmas significa voltar ao mundo da experiência, considerando que, antes da realidade objetiva, há um sujeito que a vivencia; antes da objetividade, há um mundo pré-dado, e, antes de todo conhecimento, há uma vida que o fundamentou.

Husserl faz da fenomenologia uma investigação filosófica que pretende elucidar de que maneira a possibilidade de conhecer eventos e objetos mundanos se funda nas estruturas de consciência. Essa investigação situa-se no conceito de “intencionalidade”. Diz ele: “A palavra intencionalidade não significa nada mais que essa particularidade fundamental e geral que a consciência tem de ser consciência de alguma coisa, de conter, em sua qualidade de cogito, seu cogitatum em si mesma” (HUSSERL, 2001, p. 51).

Esse conceito de intencionalidade indica que o aspecto primordial da consciência é seu atributo de se referir constantemente a algo que não ela mesma: ter consciência é sempre ter consciência de alguma coisa. Explicitando melhor, a consciência é uma atividade composta por atos (percepção, imaginação, paixão etc.), com os quais objetiva algo. A percepção é percepção de um percebido, a imaginação é a imaginação de um objeto imaginado, o desejo é desejo de um desejado. Logo, a consciência somente é consciência estando voltada para um objeto, assim como o objeto só pode ser definido em relação com a consciência (CARMO, 2011, p. 17-18).

É importante dizer que o mundo fenomenológico é composto pelos modos de doação dos objetos em correlação com os atos de consciência. É por essa razão que a investigação husserliana partilha do idealismo transcendental. Em virtude do conceito de intencionalidade, Husserl entrevê, entre sujeito e objeto, ou consciência e mundo, uma correlação mais amplificada que a dualidade sujeito-objeto do pensamento cartesiano. Na verdade, esse filósofo alemão quer demonstrar um método de cognição que, enquanto mantém uma espécie de análise imanente aos conteúdos da consciência, poderia ainda chegar a um conhecimento mais “absoluto” e “universal”.

As noções de Husserl a respeito de uma consciência que não está circunscrita a si mesma, porém relaciona-se abertamente com o mundo, foram compreendidas, por exemplo, por Jean-Paul Sartre como as bases de uma filosofia da ação. Já Maurice Merleau-Ponty (filósofo sobre o qual nos aprofundaremos em capítulos subsequentes) empreendeu uma virada corporal na fenomenologia, ampliando a ideia de intencionalidade, inscrevendo-a como marca de todo e qualquer fenômeno no interior da experiência vivida, enraizando-a na experiência primária, imediata e pré-reflexiva do corpo situado no mundo. Agora, o corpo não mais como mero suporte para atividade da mente, mas como fonte de toda experiência possível (CARMO, 2011, p. 8-9 e 19-20).

O alcance da fenomenologia não se restringiu somente ao campo da filosofia, pois diversos pensadores das ciências humanas buscavam

nela um suporte, um diálogo e subsídios metodológicos. Nesse contexto, autores alemães como Hugo Münsterberg e Rudolf Arnheim, ligeiramente influenciados pela fenomenologia e mais preocupados com as relações entre psicologia e percepção visual, irão tecer relevantes reflexões sobre a noção de cinema.

O filósofo e psicólogo Hugo Münsterberg, em 1916, publicou uma obra intitulada The Photoplay: A Psychological Study, livro que muitos consideram como um inovador trabalho da teoria do cinema e o primeiro a considerar as potencialidades específicas de cinema como uma forma de arte independente (LANGDALE, 2002, p. 2). Infelizmente, a edição do seu texto inovador esgotou-se logo após a Primeira Guerra Mundial e só foi relançada em 1970. Embora ainda hoje pouco conhecido, Münsterberg é considerado como uma das principais figuras intelectuais de sua época, um dos fundadores da psicologia aplicada (ANDREW, 1976, p. 14-15).

O autor em tela foi um incansável defensor do cinema, promovendo-o como uma forma de arte legítima capaz de sintetizar, em seu bojo, fotografia, drama, literatura e música. Como muitos teóricos iniciais do cinema, Münsterberg tentou identificar as especificidades artísticas desse novo meio, defendendo a validade do cinema como uma forma de arte diferente do romance e, de certa maneira, superior ao teatro e à fotografia. Ele também articulou, de forma distinta, dimensões psicológicas da experiência cinematográfica, com o paralelo sugestivo entre técnicas cinematográficas e experiência perceptiva, antecipando assim sua própria estética psicológica do filme (CARROL, 1988, p. 490).

De fato, Münsterberg chamou o cinema, mantendo um paralelo teatral comum em sua época, de photoplay (peça cinematográfica, literalmente uma peça de teatro filmada, ainda que ele argumente que o cinema não pode ser reduzido ao teatro). Sua principal contribuição para a teoria do cinema envolve seu apurado exame do paralelo entre dispositivos cinematográficos (close-up, flashback, movimentos de câmera, cortes etc.) e atos psicológicos de consciência (atenção, lembrança, imaginação, estados emocionais etc.). Podemos, portanto, entender o poder estético do filme, uma vez que assistimos ao modo como ele influencia a mente do espectador, o que significa analisar o processo mental que essa forma específica de atividade artística produz em nós (MÜNSTERBERG, 2002, p. 65).

Nas análises de James Dudley Andrew (2002, p. 30), importante teórico do cinema, nos diz o seguinte:

Münsterberg foi em primeiro lugar um filósofo, um idealista da escola neokantiana. E é a estética kantiana que ele nos entrega pré-embrulhada no início da parte II de seu livro. Seguindo Kant, Münsterberg utiliza um tipo inteiramente diferente de análise quando se volta da psicologia para a estética. A psicologia é parte de um modo de pensar científico. Tenta explicar aspectos do que Kant chamou de “domínio fenomênico”, o domínio do senso de experiência onde as coisas são ligadas no tempo, no espaço e na causalidade. A introdução histórica de Münsterberg descreveu a epiderme do cinema, tratando-o como um objeto

in natura. A parte I concentrou-se na psicologia

porque Münsterberg considerava o cinema um objeto para experiência exigindo que o relacionemos com o local da experiência, a mente (ANDREW, 2002, p. 30).

Para Münsterberg, a história do cinema divide-se entre desenvolvimentos cinematográficos externos e internos, isto é, entre a história tecnológica do meio e o desenvolvimento do uso, pela sociedade, desse meio. A história descreveu o objeto que geralmente chamamos de cinema, e a psicologia revelou como o objeto externo concebe o objeto interno, que é, na verdade, o filme. Juntas, essas explanações elucidam os aspectos “fenomênicos” do cinema. A segunda metade de seu livro vai da ciência para a filosofia, explicando a forma e a função do cinema, isto é, o “domínio numênico”. Ainda que a ciência seja hábil em mostrar como uma coisa ganhou existência e como funciona em nossas vidas, é incapaz de descrever o valor desse objeto (ANDREW, 2002, p. 30).

Dessa maneira, o autor combina, em sua obra, uma abordagem de “atitude estética” kantiana, com uma metafísica da arte schopenhaueriana, como que nos permitindo transcender nosso imediato contexto espaço-temporal. Ele começa explanando que a tradicional abordagem mimética – a arte como imitação da natureza – é claramente inadequada para dar conta dos aspectos da arte. Essa arte não pode ser simplesmente imitação, já que a imitação como tal não é necessariamente agradável esteticamente. Além do mais, muitas das artes mais esteticamente impressionantes são não miméticas, como a arquitetura e a música, ou envolvem decididamente técnicas ou

mecanismos estéticos não imitativos, como o discurso poético e a performance dramática (MÜNSTERBERG, 2002, p. 113-115).

Por essa razão, o filme tem sua própria estética, que não pode ser importada da pintura, da literatura ou do teatro. Tanto das perspectivas estéticas como das psicológicas, o filme narrativo apresenta uma história humana “superando as formas do mundo exterior, ou seja, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os eventos em relação às formas do mundo interior, isto é, a atenção, a memória, a imaginação e a emoção” (MÜNSTERBERG, 2002, p. 129, tradução nossa).2 Em outras palavras,

a abstração inerente da imagem fílmica (especialmente no filme mudo) distancia a performance da tela do reino físico e a traz mais perto das dimensões mentais de experiência.

Podemos dizer, então, que a reivindicação de Münsterberg para com o cinema não é da ordem metafísica ou epistemológica, porém é uma afirmação sobre o tipo de experiência estética que o filme possibilita, em contraste com outras formas de arte, tal como o teatro. A “performance” cinematográfica não é tão ligada ao espaço, ao tempo e à causalidade, como é a performance teatral ao vivo, uma vez que esta última é sempre necessariamente confinada ao espaço-temporal presente de discursos e ações dos artistas. A imagem do artista na tela, por outro lado, pode ser justaposta com diversos números de outras imagens de espaços diferentes, às vezes até mesmo “desafiando” a causalidade comum por meio do uso criativo da montagem e dos efeitos especiais, especialmente hoje com o cinema de animação e o cinema digital, graças a imagens geradas por computador.

Percebemos que o cinema manipula exteriores formas de espaço, de tempo e de causalidade, com o intuito de destacar que não estamos lidando com alegações metafísicas extremamente estranhas ou bizarras. Os dispositivos técnicos e as técnicas estéticas do meio cinematográfico tornam possível uma manipulação estética de espaço, de tempo e de causalidade, de maneira que não estão frequentemente disponíveis para uma performance teatral ou para outras artes. Tal fato é importante, pois tem relação com uma possível transformação de nossa própria experiência cinematográfica. Assim, esse é o legado duradouro do trabalho inovador de Hugo Münsterberg sobre uma filosofia do cinema ou uma estética fílmica.

2 Na versão original: by overcoming the forms of the outer world, namely, space, time,

and causality, and by adjusting the events to the forms of the inner world, namely, attention, memory, imagination, and emotion.

Já o psicólogo e teórico alemão Rudolph Arnheim está interessado no cinema como arte. Para ele, à semelhança de outros meios artísticos, como foto, música, dança e literatura, o filme pode servir a várias funções, uma das quais é a artística. Todavia, a principal crítica feita a esse entendimento do cinema como arte, está relacioanda à caracterização da sua capacidade de representação, isto é, como um meio fotográfico, o filme é meramente uma reprodução da realidade (ARNHEIM, 1957, p. 2).

Como Noël Carroll observa, tal crítica vem da crescente tendência artística no final do século XIX e começo do XX em direção à denominada antimímesis. De Baudelaire a Croce, a principal função da arte, alegam, não pode ser encontrada na imitação da natureza e, portanto, o filme, que se destaca em “re-apresentar” a realidade, é considerado esteticamente inadequado para pertencer ao mundo da arte (CARROL, 1988a, p. 21).

Uma implicação de tal crítica é que os processos mecânicos envolvidos na fotografia e no cinema não permitem controles ou intervenções criativas de seus operadores. Pintores, por exemplo, podem intervir a qualquer momento durante o processo de pintura, desde a decisão do tema, composição, desenho e cor do pigmento. Em contraste, cineastas, fotógrafos têm uma gama limitada de controle – como iluminação e a colocação de objetos durante o processo de filmagem – enquanto o restante é submetido por meio de um processo mecânico mais ou menos automático.

Em sua tentativa de desafiar a crítica estética da fotografia e do cinema, Arnheim primeiro pergunta se o processo de filmagem é realmente automático. Uma imagem fotográfica de um objeto simples, tal como um cubo, observa o autor, não é automaticamente obtida. Pode- se ter sucesso ou falhar na tentatica de elaborar um objeto reconhecível para o espectador e, portanto, requer habilidade do fotógrafo ou do cineasta para encontrar ângulo e iluminação adequados (ARNHEIM, 1957, p. 9-10).

Dessa forma, a capacidade de representação do cinema e da fotografia não é simplesmente dado, mas é algo que pode ser alcançado em virtude das habilidades do cineasta e do fotógrafo. Esse autor alemão não concebe a relação entre uma imagem e seu referente como uma questão de “verdade” ou correspondência. Pelo contrário, está em jogo a sensibilidade estética de um fotógrafo, que pode fornecer uma percepção do objeto. Um artista do cinema captura a essência de um objeto ou um evento, e não há um conjunto de regras a seguir. É uma questão de sentimento (ARNHEIM, 1957, p. 10).

Especificamente em relação ao cinema, Arnheim enumera um conjunto de atributos de uma obra cinematográfica que diferencia a percepção fílmica da percepção natural. Da redução da profundidade, à iluminação, à delimitação da tela, à ausência da continuidade espaço- tempo e à ausência de cor (filme preto e branco), a transformação fílmica da realidade fica aquém de prestar uma réplica exata da percepção natural. Em imagens fílmicas, por exemplo, tamanhos e formas dos objetos não permanecem constantes do modo que normalmente vemos dois objetos distantes. Em vez disso, o objeto no fundo de uma imagem parece desproporcionalmente pequeno, devido à visão monocular da câmera (ARNHEIM, 1957, p. 13-14).

Além do mais, Arnheim destaca um aspecto que ele acredita que distingue o cinema da fotografia e do teatro. O filme produz, no espectador, um singular efeito “espectatorial”. Este autor afirma que a imagem fílmica não é nem completamente bidimensional, nem completamente tridimensional, tornando uma ilusão “parcial” do espaço real. Um dos aspectos relacionados a essa perspectiva está de acordo com alguns princípios da psicologia da gestalt. Mesmo o processo mais elementar de visão não recebe passivamente dados do mundo real, mas criativamente organiza matérias-primas sensoriais em conformidade com um conjunto de princípios. Na percepção natural, não precisamos de todos os detalhes para inferir o todo. Da mesma forma, com poucos aspectos salientes de objetos e eventos representados em um filme, podemos ainda ter um forte senso do real (ARNHEIM, 1957, p. 28-29).

Essas observações ontológicas e epistemológicas de Arnheim sobre o cinema levam-no a afirmar que o filme está longe de ser uma cópia perfeita da realidade, fornecendo ao espectador uma experiência perceptiva como uma alternativa tanto à percepção natural, como à percepção dada por outros meios artísticos. Dessa maneira, o objetivo dos cineastas não é meramente “re-presentar” a realidade, desdobrando- se em frente à câmera, mas transformar suas restrições materiais na chamada “expressão cinematográfica”. Aqui o autor enfatiza a natureza expressiva da percepção visual em geral, considerando que nosso mecanismo perceptual não se limita a registrar os dados dos sentidos, mas reconhece-os como expressão (ARNHEIM, 1974, p. 454-455).

Para Arnheim, expressão é uma característica inerente de padrões de percepção, não é uma projeção ou associação com as qualidades expressivas do ser humano e os seres animados. A expressão cinematográfica, além de envolver o processo fílmico de transformação do real, também reflete e registra a visão artística e a sensibilidade do cineasta. Portanto a representação cinematográfica não é um veículo de

transferência do real, não é apenas um instrumento de observação, mas um meio de traduzir e de comunicar-se através do real. A valorização estética do filme pode, então, incluir o entendimento de conteúdo e sua aparência expressiva (ARNHEIM, 1974, p. 452).

A arte cinematográfica não é uma imitação, mas uma transformação da natureza. Para ser arte, o cinema explora e realça tanto o espaço formal, como o fenomenal entre natureza e cinema, ou seja, quanto mais estreita é a diferença entre a reprodução fílmica e a realidade, maiores são as chances de se tornar um filme de arte. Além do mais, o cinema requer um tipo de agir diferente do que é desejável em teatro, por exemplo, uma vez que o tamanho da tela e o close-up aumentam a legibilidade de ação do personagem. A atuação e os gestos em cinema contêm precisão e clareza, na medida em que eles podem ser vistos como não naturais.

Para Arnheim, as qualidades cinematográficas, isto é, os efeitos produzidos por meio da câmera parecem ter mais significância do que os efeitos produzidos por outros meios, tais como o cenário, os trajes ou mesmo a cor. Esse autor nega o potencial artístico do filme colorido, não só porque ele se aproxima da realidade mais do que o filme em preto e branco, mas também porque a liberdade artística dos cineastas só pode ser alcançada por meio da escolha e configuração da cor através da mise-en-scène. Tal processo é meramente uma “transposição”, não uma “transformação” da realidade (ARNHEIM, 1957, p. 155).

Assim, a importância da teoria do cinema de Rudolph Arnheim reside em sua tentativa de construir sistematicamente uma teoria que se concentra, principalmente, em como a forma fílmica envolve os mecanismos perceptivos e conceituais do espectador e, além disso, ela pretende localizar a fonte de potenciais artísticos nas próprias limitações da obra cinematográfica.

Posteriomente, pôde-se notar uma intersecção mais clara da Fenomenologia com o estudo do cinema, em meados dos anos 1940, na França, com a inauguração do movimento denominado de Filmologie, que durou até a década de 1960 e que teve como tarefa a descrição não só de filmes, mas também de atividades existenciais, psicológicas e institucionais do cinema e exibição de filmes. Esse movimento chegou a publicar uma revista chamada Revue Internationale de Filmologie (1947-1960), com ensaios que enfatizavam a investigação fenomenológica na natureza qualitativa e a psicologia da percepção cinematográfica que diferenciava outras produções de percepção de consciência, tais como sonhos, lembranças e ilusões (CASETTI, 1999, p. 91-92).

Filmologie também forneceu um contexto em que o interesse pelo cinema aumentou entre os filósofos e os estudiosos não diretamente relacionados a esse movimento. Houve, por parte deles, uma variedade de investigações fenomenológicas do cinema que descreveram a sua “ontologia”, manifestando, todavia, dois interesses temáticos muito diferentes: um, em uma antropologia existencial e social focada nos efeitos culturais do cinema como um novo modo de simbolizar o nosso “mundo da vida”; outro, em uma estética transcendental voltada para o cinema como uma forma de expressão e de criação mediada tecnologicamente (CASETTI, 1999, p. 91-92).

Influenciado por Maurice Merleau-Ponty, o antropólogo Edgar Morin, em sua obra: “O cinema, ou o homem imaginário” (1956), foi insistente na lógica corporal e afetiva do cinema. Esse autor abre sua referida obra, chamando a atenção para dois elementos: a fotografia e o cinema, que são precursores necessários para seu tema principal, ou seja, o cinema como um fenômeno que podemos compreender em sua plenitude.

Para ele, as máquinas inovadoras do século XIX de imagens- capturas automáticas colocam o homem em uma nova relação com o mundo e consigo mesmo. No entanto, nenhuma delas carrega as características espaciais e temporais muito mais complexas, específicas do cinema, quando este surgiu pouco antes da Primeira Guerra Mundial, como um espetáculo de massa com potencial mítico (MORIN, 1985, p. 3).

Em suas análises, Morin coloca a reflexão filosófica em diálogo com as descobertas antropológicas. Ele relaciona a ideia da fotogenia com o movimento de certas imagens gravadas mecanicamente. A magia da imagem cinematográfica desdobra-se no próprio tempo do espectador, ou seja, a imagem de um trem move-se rapidamente na tela, enquanto o espectador assiste com espanto, ou corre rapidamente para longe da tela, para se proteger. Não se pode dissociar a imagem da presença do mundo no homem e a presença do homem no mundo, sendo que a imagem pode ser considerada seu meio de reciprocidade. Tanto as imagens fotográficas, como as cinematográficas são avatares modernos (MORIN, 1985, p. 15-17).

Dessa maneira, o cinema introduz uma terceira dimensão, por assim dizer, em que o espectador participa ativamente daquilo que está